quinta-feira, 7 de março de 2019

A ignorância e a bênção (Sobre ter sido EVANGÉLICO parte 3)

Pentecostes, do pintor Jesus Mafa, em Camarões, 1973 

Esse texto é uma continuação de A igreja do medo e A santa cultura

Para quem perdeu o começo, essa é a transcrição de um longo desabafo nas redes sociais, que expõe a situação da 1ª geração filha de pais Evangélicos nascida no séc. 21. Alguns dos comentários que se seguiram também foram recolhidos aqui, com correções de ordem gramatical. O texto postado originalmente foi preservado na íntegra.

-----------------------------

Sobre ter sido EVANGÉLICO e como isso f*d@# minha cabeça

Júlio Victor, 14jan2019

13 - Lendo cada vez mais a Bíblia que entendi que as coisas não faziam sentido entre o livro e a igreja. Nisso me tornei o rebelde, questionador e combativo de rolê por LER a BÍBLIA.

#A Conhecimento pra eles é algo tóxico, por isso eles são fechados pra isso. Quanto mais se sabe, mais se questiona. Eles abominam.

#B Eu questionava pra mim porque a religião que faz bem ao outro é do diabo só pq não é igual a minha; e como Deus queria julgar pessoas se elas não tinham tido acesso à palavra. O pastor uma vez disse que essas pessoas não seriam julgadas da mesma forma, porém pra mim era injusto. Questões do feminino (sempre me defini como feminista), questões da ciência que o povo insistia em desfazer (como a da evolução). E como se não bastasse tudo isso, eu ainda me sentia muito f#ck&ng culpada por estar questionando, porque "os teus pensamentos são mais altos que os meus pensamentos" e eu não teria mesmo como entender. Fora os outros milhares de questionamentos que eu tinha, mas não vou falar porque ficaria um livro de 500 páginas.

#C A prática da Igreja Católica criticada pelos Evangélicos, de não ter livre acesso à Bíblia, e a posição privilegiada do padre em sua interpretação, está aí sendo reproduzida.

14 - Detalhe, livro ou literatura alguma na igreja eram incentivados. Na maioria das vezes era demonizado mesmo e era comum ter amigos que até seus 18 anos não tinham lido um livro inteiro (nem a Bíblia).

#A Toda vez que eu peço um livro pra minha mãe, ela manda eu ir ler a Bíblia.

#B Eu fui fazer um trabalho sobre contos de fadas em artes, na 2ª Série, e foi uma polêmica doida na igreja.

#C Eu sempre amei ler, desde criança. Lembro quando era criança com a febre Harry Potter. Um primo da igreja fez terrorismo, disse que era do demônio. Morria de medo. Um pouquinho maior, com uns 12 anos, comecei a ler emprestado e escondido dos meus pais. Minha mãe, quando descobriu, me deu a coleção toda de presente! Ainda bem que tive uma mãe mais aberta, muitos colegas meus da igreja não tiveram isso.

#D Realmente tem Igrejas que não incentivam a leitura, mas no meu caso foi ao contrário. A Fé e a Igreja abriram minha mente. Cheguei na Igreja com 20 anos. Nunca tinha lido um livro completo. A partir da necessidade de ler a Bíblia e conhecer mais sobre a minha nova Fé, entendia que precisa ler Livros (a princípio relacionados com a minha Fé) e depois o desejo de conhecer mais fez eu ir para o seminário. Fui e me formei, o seminário puxou a Filosofia, entendia que precisava continuar estudando, a filosofia acabou puxando a Antropologia. Fiz a Graduação, mas ainda entendo que preciso continuar estudando... É isso que continuo fazendo: passei a Seleção do Mestrado. Tudo começou com a sede de conhecimento que a Igreja despertou e ainda me ajudou custear a Faculdade de Teologia e Filosofia. A Graduação de Antropologia fiz na UFF.

15 - E digo mais, TEOLOGIA nessa igreja era abominável. Eu sei que em várias outras igrejas não era.

#A Na minha, teologia é "permitida", mas fazem todo um terrorismo de que "afasta as pessoas da fé, blá blá blá", ou seja, é algo que na prática só é acessível aos pastores e quem decide procurar por si só.

#B Passei um tempão sendo agnóstica, até descobrir a teologia. E é exatamente por isso que cogito seriamente mudar de denominação. Tenho a ligeira impressão de que é por isso que fazem tanto medo sobre o assunto: estão mais preocupados com números de fiéis enchendo os bancos (e em muitos casos, até dízimo enchendo o bolso) do que compromisso com a verdade.

#C Na igreja que eu congrego, os pastores nos incentivam a estudar sempre a Palavra, estudar teologia, mas com moderação pra não virarmos fanáticos, mas sábios!

22 - Minha mãe brigava comigo por jogar Diablo, RPG, Magic, YuGuiOh, ver Dragon Ball ou qualquer desenho que tivesse chifres, monstros ou qualquer coisa do tipo. Me deixava de castigo e realmente me impedia de me divertir pela ORDEM ALIENANTE da Igreja.

#A A igreja disse para minha mãe que Pokemon Go tá fazendo os jovens fazerem coisas erradas. Perguntei que coisas e ela “Ah, num sei”. Tentou queimar meus ursos de pelúcia porque recebeu pelo WhatsApp que espíritos possuem a pelúcia. E ficou com paranóia de tomar Coca Cola em março e abril porque falaram no WhatsApp que uma irmã teve a visão de que quem tomasse Coca feita nestes meses seria possuído.

#B Já tive problemas parecidos com minha mãe. Meus livros de RPG eu tive que tirar de casa e deixei na casa de um amigo. A mãe dele também era evangélica, mas não mexia no quarto dele. Numa faxina, achou os livros e colocou no fogo.

#C Eu já fui Cristã, era evangélica, hoje não tenho religião. Acredito que possa existir um Deus, só não o demônio. Meu pai é evangélico, raramente vai para a igreja, porém ama c%g%r regras espirituais, e implica comigo por ter saído da igreja. Numa dessas c%g%d%s, um dia, ele foi ao meu quarto pra arrumar a cortina, e viu um livro com o título "Passaporte para o inferno", da Celhia de Lavarène, e já foi dizendo "Que livro é esse? Tira esse livro daqui, livro de maldição, continua mesmo lendo isso pra trazer maldição pra dentro dessa casa". Eu quase morri de raiva e de rir, porque o livro conta a história de uma mulher que trabalhava pela ONU resgatando meninas que se tornaram escravas sexuais.

#D Uma vez, na escola dominical da Maranata, eu disse que amava o Mickey. A professora da classe disse que eu só podia amar a Deus e que o Mickey era um demônio, porque ele não era parecido com nenhum animal. Eu fiquei triste. Tinha 5 anos. Com 6 anos eu descobri que ele era um ratinho.

23 - Isso me fez ter uma infância onde eu me divertia escondido, estudava escondido, era meio IDADE MÉDIA.

#A Minha mãe tinha neuras como essa. Certa vez me proibiu de assistir Chiquititas porque ouviu um pregador dizer que nesse "Chiquititas" simbolizava "Anjos decaídos"... Eu não faço ideia de onde ele tirou isso. Só sei que ela acatou imediatamente e fez da minha vida um inferno, a partir daí.

32 - O que salvou minha vida pra sair da igreja foi o podcast irmãos.com, que inclusive recomendo até hoje. Ele que me mostrou a vida em outras igrejas, a teologia, os tabus, a desconstrução e entendimento bíblico através do CONHECIMENTO. Foi ótimo. Ouvia escondido também.

#A São os caras que gravam pra galera do Missão na Íntegra do Pr. Ariovaldo, Pr. Paulo Borges Jr., Pr Ed René... Muito legal mesmo os podcast dos caras.

35 - Tudo na igreja é dividido entre a dicotomia: IGREJA e MUNDO. As coisas do mundo são de satanás e devem ser abominadas de TAL maneira que você se aliena e acaba caindo em FAKE NEWS.

#A Não aguento mais! Vivo em uma casa onde minha mãe é evangélica e meu pai nunca vai, mas vive com hipocrisias citando partes da Bíblia onde falam sobre respeito de filho com seu pai. Não posso fazer coisas que não são da igreja, escutar músicas que não são da igreja, vestir roupas que o Espírito Santo vá se entristecer, assistir coisas que não sirvam pra "edificação" ou sair pra lugares em que Deus não habite. Com meus 11 anos, morria de medo de tudo, medo do arrebatamento, medo de Deus me matar porque não estava sendo santa o suficiente. Aos meus 16 anos, me revoltei totalmente após ver que a hipocrisia reinava não apenas na minha casa, mas na própria igreja. Já fui chamada de várias coisas pela minha própria mãe apenas por não seguir os dogmas dela. Esses dias, com 17 anos, fui escondida em uma festa. Quando cheguei, minha mãe cortou todas as minhas costas com uma corda, enquanto ela gritava comigo que o meu lugar era na igreja, e não sendo uma prostituta mundana. A pouco tempo descobri que estou com uma forte anemia, avisei a minha mãe e ela veio me falar que era castigo de Deus por eu não obedecer. Literalmente, não aguento mais ir contra meus ideais.

#B Isso me faz lembrar que, na minha igreja, diziam que as crianças de até 11 ou 12 iriam pro céu com certeza, por inocência. A partir de 12 ou 13, a pessoa já iria precisar se vigiar para se manter no Espírito Santo. Depois dos meus 9 anos, eu ficava pensando em me matar para ir pro céu, porque eu sabia que eu não iria conseguir me manter na igreja depois. Só que também diziam que suicida ia pro inferno, então acabei nem fazendo.

36 - Por exemplo, a gente não comia a maionese Hellmann’s pois significava HOMENS DO INFERNO. Tiraram do C@ essa própria burrice, né?

#A Isso porque não deviam conhecer a teoria de que "'Cola Cola lido de trás pra frente é Alô Diabo" (na logo realmente parece, mas f&d*-s#).

#B Santa burrice. "Hellmann's" nem é inglês. Mesmo se fosse, "MAN" tem um "N" só! Posso estar errado, mas tá muito mais pro alemão "homem (Mann) claro (Helles)", isto é, "maionese do branquelo".

37 - Não podia ter ORKUT também, pois o significado da palavra era alguma coisa relacionada ao demônio lá, sei lá, mentira né.

38 - Mais tarde eu descobri que não podia usar Orkut porque lá tinha uma comunidade de ex-membros onde eles jogavam os podres e o conhecimento pro alto. Certamente se alguém caísse naquela comunidade, sairia da igreja facinho. MANIPULAÇÃO.

-----------------------------

Depois de ler os vários testemunhos de leitores do Júlio Victor, imagino que muitos riram e ao mesmo tempo reconheceram alguma esquisitice com a qual teve contato. Esse misticismo, as revelações e profecias de fato estão sendo fartamente distribuídas em Congregações Evangélicas não só no Brasil, mas em todo lugar onde há o Cristianismo misturado com baixa escolaridade. E não era tão diferente no Oriente Médio por onde Paulo e os evangelistas andaram.

Cristianismo & Bíblia

Eu gostaria de nomear 3 pontos com relação a isso. O primeiro é que a Bíblia se propõe - e sobretudo para o Novo Testamento isso precisa ser efetivo - a ser o cerne do Cristianismo. Isto é, sem doutrina do Novo Testamento, como falamos em um Cristianismo? Faço essa observação principalmente pelo largo emprego do Velho Testamento e fontes extra-bíblicas, tais como textos de religiosos, mídia, etc no funcionamento atual das igrejas brasileiras. Arrisco dizer que boa parte dos Cristãos sequer saberia enumerar os livros ou personagens do Novo Testamento.

O segundo ponto, que enfraquece o primeiro, é a permissão bíblica quanto a uma variabilidade de interpretações. Já houve muitas guerras entre Cristãos por causa disso. Há pontos teológicos contrários no Velho e no Novo Testamento, como por exemplo a graça divina por perfeição comportamental do homem ou como favor imerecido. Sendo Cristão, sou levado a escolher o último, do Novo Testamento. O teólogo estadounidense Wayne Grudem escreveu: “Existem apenas duas causas possíveis para as discordâncias [sobre Deus]: (1) Por um lado, pode ser que estejamos buscando fazer afirmações onde a própria Escritura está em silêncio. Em tais casos, devemos estar mais do que prontos para admitir que Deus não nos deu a resposta para nossa busca e permite as diferenças dentro da igreja. (2) Por outro lado, é possível que tenhamos cometido erros em nossa interpretação das Escrituras.

Sim, há discrepâncias quanto às narrativas dos Evangelhos! Por exemplo, sobre a última ceia: foi uma pregação sobre pão e vinho, como pintado por Leonardo da Vinci - vide Paulo, Marcos e Lucas, todos colegas de viagem - ou uma lição sobre humildade na lavagem dos pés de Pedro - vide João? E também sobre o que Jesus fez depois de ressuscitado: um mandamento sobre pregar a todas as nações, sem (Mateus 28.19) ou com superpoderes (Marcos 16.15-18), aparecendo para jantar e iluminar (Lucas 24.36-45), ou assando peixes para dar as últimas instruções a Pedro (João 21.11-17)?). Paulo, doutrinador registrado das primeiras congregações, dava bastante liberdade aos cultos¹, desde que compreendessem Jesus como perdão dos pecados e conexão entre do Homem com Deus. Como o Protestantismo sempre prezou pelo contato entre os crentes e a Bíblia, devemos estar respeitosamente preparados para tratar com muitas concepções.

O terceiro ponto é a presença, desde o início do Cristianismo, de visões e instruções espirituais aos crentes. Paulo afirma que seu conhecimento do Evangelho não veio por homens, mas pelo próprio Cristo (Gálatas 1.11,12). Ele recomenda examinar as informações espirituais e comparar com o ensino que ele dera as igrejas (mas elas não dispunham de 4 evangelhos e várias tantas cartas apostólicas em mãos, para perguntar "todos esses?"). Se pensarmos em uma fonte comum para todos os textos - inspirados, mas redigidos por homens - e as visões ou inspirações dadas diretamente pelo Espírito Santo, vamos ter de refletir um tanto antes de dizer qual é melhor, no caso de uma discordância. A meditação é válida e recomendada pelo mais sábio dos sábios, o rei Salomão (séc. 10 a.C.). Não podemos simplesmente desprezar as experiências Pentecostais com o divino, ainda mais porque elas pregam uma ação prática de Deus sobre os homens, mas devemos avaliar elas junto dos textos bíblicos antes de simplesmente sair reproduzindo.

Informantes e desinformados

Depois disso, há algo nas conversas dos leitores do Júlio Victor que chama muito a atenção. São as fontes de informação como Whatsapp, 'ouviu uma irmã dizer', etc. É surpreendente a facilidade com que os Evangélicos brasileiros aceitam novas informações religiosas, sendo "meninos inconstantes, levados em roda por todo o vento de doutrina, pelo engano dos homens que com astúcia enganam fraudulosamente" (Efésios 4.14). Não é saudável acreditar em tudo, especialmente em assuntos de fé, que tratam do que não se vê.

Do lado bom da escala de validade das informações podemos colocar em primeiro as Escrituras; depois as obras teológicas de grandes fundadores das igrejas (ex. Lutero, Calvino, Armínio, Santo Agostinho, etc)³; num ponto intermediário estão as pregações e os veículos de mídia oficiais com grande abrangência; e noutro extremo (ruim) ficam os boatos circulando, sem discussão teológica nem nada, e ainda abaixo disso os tabus não comentados, porém praticados. Precisamos nos sustentar nas obras melhores, favorecendo o material de alta qualidade e filtrando severamente as coisas de baixa qualidade (ex. boatos). Mas o acesso a um e outro estão ligados ao nível de escolaridade das pessoas. Lembremos que Paulo, altamente intelectualizado, deixou uma série de cartas normativas das igrejas, enquanto Pedro, pescador, deixou apenas uma tradição.

O grande problema com as fontes de informação de baixo valor é a sua falta de confiabilidade, falta de experimentação ou reflexão, e abundância de achismos tidos como verdade. O célebre Umberto Eco dizia, sobre isso, que a internet elevou todos os discursantes a um mesmo patamar: "Normalmente, eles [os imbecis] eram imediatamente calados, mas agora eles têm o mesmo direito à palavra de um Prêmio Nobel". Talvez não seja só a internet que faça isso, pois muitas conversas repletas de invencionices ganham facilmente valor no universo Evangélico/Pentecostal se vierem associadas às expressões "eis que te digo" ou "Deus mandou te dizer".

A valorização de ensino espiritual ou extra-bíblico (que é algo legitimamente Cristão) e também o desconhecimento da Bíblia, em especial do Novo Testamento, ajudam muito que os blá-blá-blás ganhem força. O jornalista Leonardo Sakamoto, em um artigo, emendou que, ao igualarmos todas as fontes de informação, fazemos com que pesquisas científicas sérias e, no caso, estruturas teológicas centenárias ou construídas por renomados estudioso sejam "derrubadas" pela “verdade” mais conveniente ou mais chamativa.

Ninguém espera que um novo Cristão, ou alguém recém introduzido na Congregação, tenha o entendimento de obras teológicas. Nem mesmo das filosofias que Paulo discute em suas cartas para as igrejas. Mas as pessoas com esse conhecimento devem existir (pode até ser apenas o pastor, numa primeira fase) e devem fazer esse trabalho de "digerir e ensinar" para os demais, para que a congregação cresça em sabedoria. Era isso que Jesus fazia em suas parábolas e foi isso que Paulo fez em suas cartas. Quantos Cristãos tiveram acesso ou conhecem as obras teológicas dos fundadores de suas igrejas? Bem poucos.

Raríssimos Evangélicos brasileiros saberiam dizer o que foi a Reforma Protestante². A maioria se alimenta das informações em sermões e publicações internas (um nível de qualidade mediano) ou de boatos e tabus (nível de qualidade ruim), porque os "doutores na fé" não fazem seu trabalho de educadores da congregação. Enquanto as igrejas Evangélicas deixarem cada um escolher o seu material de estudo ou até investirem nos piores meios, pois são mais fáceis de veicular, alimentaremos uma turba de ignorantes que facilmente ajoelha para orar por qualquer coisa ou toma pedras nas mãos para executar alguém. Não é nem de longe a sabedoria e amor que Paulo aconselhava.

Tentando entender essa busca dos Evangélicos pela revelação extra-bíblica, R. Menezes anotou algumas razões que devem ser lembradas: (1) Influência de elementos paganizados do catolicismo romano; (2) Influência de elementos litúrgicos afro-indígenas; (3) Influência da renovação carismática, subsequentemente dos pentecostais; (4) Analfabetismo total e funcional da nação; (5) Maioria feminina nas congregações; (6) A busca de uma identidade e posicionamento social dos crentes, sobretudo nas classes mais pobres; (7) A busca por soluções imediatas. Eu até adicionaria a estratégia ansiogênica de pregação Evangélica. Isto é, prega-se o perigo iminente do Arrebatamento, do Apocalipse e do mal que anda ao redor, ao invés de apresentar Cristo na solução dos problemas sociais e cotidianos.

A diferença de uma coisa e outra está no fato de que, pregando o perigo iminente, deixamos as pessoas desesperadas por identificar o mal, sem ter uma solução para ele. O mal então pode ser apontado em qualquer um, no título de um livro, num vidro de maionese. Ao não mostrarmos a atitude Cristã na solução de problemas, deixamos ainda as pessoas sem saber “o que fazer com Cristo”. Muitos Cristãos só lembram Dele no culto.

O que fazemos e o que desfazemos

Outro ponto complexo é a exposição às “tentações mundanas”. Mesmo grupos claramente aderentes ao que H. R. Niebhur chama de “a igreja contra a cultura” estão imersos no mundo não Evangélico, não Protestante, e não Cristão. Ao manter os jovens dentro de uma bolha cultural Cristã (imperfeita), acabamos por não deixar aos jovens a opção de serem Cristãos. Simplesmente porque se torna cultural e não opcional.

É quase como enaltecer alguém por ter nascido rico ou pobre, saudável ou doente. Nenhum destes foi escolhido! Além disso, Jesus e Paulo não se opuseram a estrutura culturais mesmo vivendo em sociedades formadas por Judeus Essênios, Judeus Fariseus, Romanos, Gregos, Sírios, etc. A oposição que vemos em Jesus é justamente contra os Fariseus, então líderes espirituais de grande parcela dos Judeus e do próprio templo onde Ele, Paulo e Pedro congregavam. Evidentemente que o Cristianismo traz a premissa de uma Salvação única, um caminho único para satisfazer a Deus e se aproximar Dele, mas esse caminho não é tão estrito (pelo menos a Bíblia traz e permite diversas interpretações) nem é apresentado como algo que deva ser enfiado goela abaixo dos crentes.

Por incrível que pareça, as igrejas em todo o mundo fizeram opções erradas quanto ao que olham em seus fieis. Seria difícil dizer quando isso começou, mas provavelmente foi quando as congregações passaram a conviver (já não como irmãs, antes eram inimigas mortais) e disputar as almas ao redor de si. No 1° mundo, onde as pessoas tem muito mais do que precisam, as necessidades das pessoas tornaram-se desejos e caprichos; a igreja escolhida então é aquela que realiza esses caprichos, para os quais a alma humana é geniosa e prodigiosamente inventiva. No 3° mundo, onde as pessoas vivem com necessidades que provavelmente jamais serão satisfeitas, como segurança, saúde, etc, a igreja escolhida é aquela que se atreve a prometer isso. Mas sempre foram promessas eleitoreiras, mentirosas, do tipo "Deus vai te prover isso", que jogam sobre Ele todo o trabalho a ser feito. E as igrejas com isso?

Para um e outro caso, a ignorância das Escrituras é algo muito lucrativo (e tentador). Nada de ortodoxias, Jesus não era mais ortodoxo que seu pitoresco primo João [batista] vestido com pele de camelo e comendo gafanhotos na beira do Jordão. Mas você já viu alguma igreja que rompesse com a estrutura social ocidental e implantasse residências comuns, onde todos repartem os gastos? Parece estranho, e não digo que seja necessário, mas esse é o modelo "comunista" apresentado no livro de Atos. Não muito diferente do que é praticado tradicionalmente em algumas comunidades no Oriente Médio.

Outra: Jesus fez diversos milagres, mas muito raramente de forma coletiva. O que havia, de modo coletivo, era seu ensino sobre o Reino de Deus (paz, felicidade e justiça, nas palavras de Paulo) e discussões sociais, as vezes com com base em parábolas. Muitas igrejas fazem isso, e muito mais ainda nem sabem do que estou falando. As mais midiáticas, mega-congregações com dezenas de milhares de pessoas que nem se conhecem, estão bem longe das discussões sobre problemas sociais. É como se a idéia principal do Cristianismo tivesse se perdido, e agora o conceito fosse um fast food com brinquedo por só 40% a mais. Só que ninguém vive um fastfood.

Cristãos e mal falados

Com o Cristianismo funcionando segundo a Bíblia já existem muitas criticas, imagine sem ela. Uma dessas críticas é a forte oposição entre o conceito de Deus no Velho Testamento (isto é, uma entidade favorável a matança de estrangeiros, escravismo e ferrenha ao seguimento estrito de normas) e no Novo Testamento (um símbolo de amor, piedade, pacifismo e fé). Não dá para questionar essas diferenças, apesar de falas atribuídas a Jesus indicando que há uma continuidade. Mas essa mudança (e já coloquei antes que, como Cristão, fico com a proposta de Jesus) não justifica fazermos uma nova transformação do Evangelho de modo que ele atenda a interesses comerciais e militares. Não justifica as Cruzadas, nem a Inquisição, nem tampouco o misticismo da Teologia da Prosperidade. O mal uso do nome de Deus sempre pesará contra os Cristãos.

Pesa contra nós, ainda, a persistência em idéias para as quais a Ciência oferece respostas diferentes da Bíblia (a Ciência não estuda Deus, ok?). Isso é bastante sério no que se refere à juventude Cristã. O texto do Novo Testamento tem quase 2000 anos, o do Velho Testamento chega aos 3500 anos. é bastante óbvio que qualquer noção tecnológica ou de entendimento do Cosmos apresentado na Bíblia pode ser classificada como História, a menos que seja de fato uma revelação divina. Só para citar, o Gênesis coloca o que chamamos de Terra como algo plano, que separa as águas abaixo do mundo (de onde vem, de alguma forma, os rios, lagos e mares) e as águas acima do mundo (que tornam o céu azul e de onde vem as chuvas). Sem problemas para o pessoal de Ur dos Caldeus, mas inconcebível nos dias em que lemos isso por um sinal de internet transmitido através de satélites orbitando o planeta. A insistência apesar de provas em contrário é teimosia, não fé.

Não faltam grandes mentes dentro do Cristianismo para nos instruir³, a começar por Paulo quando recomenda ocuparmos a mente com "tudo o que for verdadeiro, tudo o que for nobre, tudo o que for correto, tudo o que for puro, tudo o que for amável, tudo o que for de boa fama, excelente ou digno de louvor" (Filipenses 4.8). Mas Paulo foi um peregrino, incumbido de arrebanhar gregos bem educados, aos quais faltava uma filosofia de fé. Jesus, por outro lado, andou entre os mais incultos de Roma, desafiando autoridades que lideravam por medo. Hoje, temos uma igreja formada por pessoas que vão desde analfabetas até ensinadores, ricos e pobres, uma juventude que supera seus pais em escolaridade e que se alimenta de dados coletivos. E se cremos em um Senhor que prima pela verdade, passamos por tolos ao bradar teorias arcaicas como sendo verdades.

As Escrituras tem muito material humano antigo, de pessoas bravas, que viveram, acreditaram em algo e o deixaram para ser reproduzido no futuro, até nos. Será que realmente é tão difícil apresentar o Espírito Santo agindo nos dias de hoje? Não morremos mais de lepra, nem precisamos assistir o sofrimento de epilépticos e esquizofrênicos sem ter o que fazer. Nossos demônios são outros, mas há muita gente desassistida para as quais é muito raro ver a Igreja mover algo.

Restringir os jovens (e os adultos também) dentro de "mundinhos gospel" parece o certo a se fazer, mas pode ser péssimo para sua formação. A igreja produz, mas não é detentora das artes, nem da literatura, nem da música. O filósofo alemão G. W. F. Hegel, no início do séc. 19, ao ver as grandes transformações ideológicas que o mundo sofria (era a época dos impérios comerciais na África e na Ásia), em muitos de seus trabalhos, discutia que não é possível formar uma razão saudável a partir de um mundo limitado, enviesado. Por isso, é absolutamente normal que os jovens queiram explorar sua cultura, aprender sobre o mundo, e provavelmente nem todos voltarão para a Igreja. Mas aqueles que voltarem (e talvez tragam outros consigo), é importante que o façam por terem conhecido a Jesus, por conhecerem de verdade o Cristianismo, e não porque nunca viram nada além disso. Lembremos da célebre parábola do Filho Pródigo, contrastando aquele que experimentou o mundo - e reconheceu o amor do pai - com aquele que sempre esteve sob cuidados (Lucas 15.11-32).

Que esses jovens interpretem sabiamente Harry Potter, Nietzsche, o Islã e tudo mais que habita o mundo. Tragam novas idéias, novas discussões (Jesus nunca se absteve de discutir), que falem bem da Igreja para os de fora sem serem chamados de arcaicos ou ignorantes. Que possamos ser bem vistos e recebidos como era a Igreja Primitiva.

-----------------------------

¹ O termo “culto” pode até não estar certo quanto à Igreja Primitiva. É descrito que Jesus e os apóstolos se reuniam no Pórtico de Salomão, uma área de acesso do Templo de Herodes, que era o mais importante local de culto Judeu. Os encontros de Cristãos relatados no livro de Atos estão mais para ocorrendo em residências comuns, com muitas pessoas, de diversas famílias, todos sentando-se na mesma mesa para “dividir o pão”, refeitoriamente falando. Além disso, o registro arqueológico mais antigo do que poderíamos chamar de “templo Cristão” é uma casa modificada em Dura-Europos, na Síria, datando do séc. 3 d.C. Ver A invisibilidade Cristã.

² Os Protestantes Históricos e Pentecostais se dividiram no início do séc. 20, uns defendendo as visões e ensinos espirituais, o outro grupo os negando. O movimento Evangélico surgiu no meio do séc. 18, liderado pelos Metodistas, como um movimento transdenominacional reunindo elementos do Protestantismo Histórico do Pentecostal. Esse movimento pregava o uso da Bíblia (e não a tradição ou as obras teológicas) como fundamento da pregação e dos costumes Cristãos. Tanto Evangélicos como não Evangélicos são frutos da Reforma Protestante, no séc. 16, quando foram questionados alguns pilares da Igreja Católica Romana, tais como a hierarquia religiosa, o culto aos santos, a transmutação dos elementos na Ceia e o não acesso das pessoas à Bíblia. Em outras palavras, todos os Evangélicos são Protestantes. Ver Cristãos transitando.

Os Católicos defendem a tradição eclesiástica herdada supostamente do grupo de Pedro, em Roma. Segundo eles, a Bíblia não seria clara sobre muitas questões (e não é), além de haver divergências sobre quais são os livros inspirados por Deus e quanto deles é inspiração. Se considerarmos que os grupos originais de Cristãos eram pessoas ajudando umas às outras, sem nenhum material escrito (só houve algum após 80 d.C., quando os Cristãos já estavam disseminados ao redor do Mediterrâneo), eles tem razão em confiar numa “tradição apostólica”.

³ Santo Agostinho nos ensinou a resistir as tentações, os missionários de Alexandria ensinaram com tratar culturas diversas das nossas, São Francisco ensinou a pôr o amor em prática, Lutero ensinou a necessidade de se pautar na Bíblia, John Wesley mostrou quem precisa ouvir sobre Jesus.

-----------------------------

A leitura foi desaconselhada por bons motivos

Do Christians need only the Bible?, catholicnewsagency.com.
Klinge D, 3 reasons why the Bible is the only book we really need, dawnklinge.com, 26/abr/2017.
Luke, The false reality – why Christianity requires ignorance, new.exchristian.net, 16/abr/2017.
Sakamoto L, O culto à ignorância passará o cristianismo como principal crença do Brasil, blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br, 6/mar/2016.
Witherington B., Ignorance is Bliss? Biblical Illiteracy in the West, 25/ago/2007.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe um comentário!