quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

A santa cultura (Sobre ter sido EVANGÉLICO parte 2)

Os Amish, um tema frequente do pintor estadounidense Kenneth Dewaard

Esse texto é uma continuação de A igreja do medo

Para quem perdeu o começo, essa é a transcrição de um longo desabafo nas redes sociais, que faz um bom retrato da 1ª geração da igreja nascida no séc. 21. Alguns dos comentários que se seguiram também foram recolhidos aqui, com correções de ordem gramatical. O texto postado originalmente foi preservado na íntegra.

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Sobre ter sido EVANGÉLICO e como isso f*d@# minha cabeça

Júlio Victor, 14jan2019

6 - Eu ficava com medo depois disso pois eu já tinha me apaixonado por Red Hot Chili Peppers e Angra, logo, eu tava carimbado pro inferno pois escutava isso todo dia, toda hora. Escondido, claro, Mas ainda bem que insisti nessa rebeldia, ou não estaria aqui hoje.

#A Evanescence era praticamente Gospel, muitas letras falavam de Deus. Amy Lee até já declarou ser Cristã, hehehe.

#B Eu gostava de Nelly Furtado, Red Hot, Katty Perry e no fundo eu também gostava de Lady Gaga demais, mas tinha medo de ouvir. Quando a música ficava na minha cabeça era horrível. Música "do mundo" colocava demônios na nossa vida, segundo a pregação da pastora Sarah Sheeva, que esteve na minha igreja e me deixou perturbada por anos (na época eu tinha na faixa de 12-13 anos).

#C O rock fez eu parar de ser religiosa.. Comecei a curtir rock muito cedo, com uns 10/11 anos.. Na época, meus parentes criticavam muito: ‘Ahh isso não é coisa de Deus, ahh essas músicas vai fazer você ir para o inferno..’ Eu sempre me perguntava: poxa mas por uma música eu vou para o inferno?? Isso não fazia sentido. Comecei a me questionar se ser Cristã ainda valia a pena. Depois que comecei a realmente questionar outras questões como hipocrisia, intolerância religiosa, principalmente A HISTÓRIA DO CRISTIANISMO, isso fez ainda mais eu parar de ser Cristã. Conheci a filosofia, li sobre bastante coisa, hoje em dia sou atéia. Minha família não aceita, mas sigo a minha vida normalmente..

7 - Eu comecei a tocar CLARINETE, troquei por uma guitarra e comecei a ser visto como rebelde por ter escolhido um instrumento tão agressivo. Eu não podia tocar com distorção, nem um drivezin, que me censuravam.

#A Se você conhecer o Rodolfo Abrantes, irá ver que esse evangelho que cega, manipula e mata as pessoas é um evangelho distorcido.

#B Para ele ter virado Cristão, foi motivado por algo (alguém, neste caso Deus) e fez com que ele mudasse muitas coisas pelas quais ele acreditava... Enfim, o fato é que Deus não se limita a religião, mas é importante encontrar uma igreja QUE SEGUE O QUE DE FATO ESTÁ NA BÍBLIA, para ter comunhão com outros pecadores que buscam se parecer com Jesus, e assim mudar muitos pensamentos já dados.

8 - Isso chegou ao ponto de TEREM uma VISÃO onde DEUS FALAVA que era para eu ir para um novo instrumento, esse era o VIOLÃO. Os caras inventaram, falaram em nome de Deus pra atender uma nóia deles.

#A Esse papo de visões é uma forma de conferir falsa autoridade e santidade à algum discurso humano qualquer.

#B Tem coisas que eu gosto e tem coisas que não gosto. Eu gosto de ouvir um bom samba, músicas eruditas e cantos gregorianos. Sou evangélica e nem por isso desprezo as demais religiões. Com meus pais que eram católicos (já morreram), eu aprendi: ouça o que o padre fala e depois reflita naquilo que é bom para você. Hoje sou protestante, há mais de 40 anos. Continuo fazendo a mesma coisa: ouço o pastor, depois tiro minha conclusões. O que é bom eu guardo, o que não é eu deixo fora.

#C Esse Deus dá um monte de visões sobre coisas fúteis. Quando se olha em escala mundial, na hora de resolver fome e guerra, só se escuta os grilos.

#D Quem nunca foi abordado por alguém que disse Jesus, em pessoa, tinha falado com ele? Que era pra você fazer tal coisa? Engraçado que, segundo eles, o que você faz incomoda tanto a Deus que ele vai falar com eles, ao invés de falar diretamente com você. Afinal, a gente tá lá dentro da igreja. Se é o nosso comportamento que tá incomodando Deus, porque ele fala com toda a igreja sobre isso, menos com você?

9 - Ainda sobre música, uma vez no grupo de CRIANÇAS me ouviram cantar e uma professora disse que eu não cantava bem o suficiente para Deus. Ela pediu para eu cantar mais baixo. Desde então, eu não cantava. Só fui fazer isso com meus 20 anos.

#A Aconteceu isso com o meu pai… Ele ainda vive na igreja, ele prega a palavra de Deus, mas se nega a todo custo cantar algum louvor quando tá dirigindo o culto. Ou entrar em um coral para acompanhar minha mãe.

#B Tenho uma história parecida. Na 2ª série tinha uma garota que cantava muito bem e a professora fazia ela cantar na frente da sala. Eu tava conversando com meu melhor amigo numa dessas, e a maldita professora fez eu ir cantar na frente da sala. Depois dessa vergonha, ela disse na frente da sala toda: "Pra você atingir o talento de fulana ainda falta muito". Imagina uma criança de 7 anos ouvindo isso na frente da turma toda! Detalhe: eu sempre amei cantar, mas depois disso perdi a coragem de cantar na frente de outros e até hoje não consigo aceitar quando alguém fala que eu canto bem. Mas é claro que essa professora estava totalmente errada, porque Deus não escolhe ninguém por causa de talento; ele capacita os escolhidos dele, se é isso que eles desejam.

10 - Por isso que tenho dificuldade para cantar e cada música que lanço é um desafio comigo mesmo, com esse trauma de não ser bom o suficiente por ter demorado a desenvolver. Eu dou o meu melhor, mas sou limitado por conta disso até hoje.

#A Queria poder te dizer que Deus é um Deus livre e de amor. No entanto, eu posso ser quem eu sou, sem castigos, não é o certo a se pensar?! Mas, meu irmão, as coisas são bem diferentes! Se você falta à igreja e às vezes compartilha o porquê, muitos nem se importam, julgam como menos ou mentira: "não pode ir a igreja por isso, mas tava em tal local". O que estraga Jesus Cristo são seus seguidores malucos e sem um pingo de sanidade. Sou Cristã, curto ir ao culto, mas não gosto de ser questionada por seres errantes igual á mim o porquê de eu ter faltado e ter ido em outro local, ou porque não fui. A pessoa vai quando a alma sentir vontade.

#B Mas a estrutura das igrejas, hoje (a maioria delas), é de exatamente não possibilitar que as pessoas que estão aprendendo, conhecendo Deus/Jesus tenham intimidade com Ele. Existe uma cultura dentro da igreja, que é ensinada a anos, de tornar as pessoas dependentes de homens, religiosos e suas visões, e suas unções, suas bênçãos... É preciso entender que muita coisa acontece porque existe uma 'cultura religiosa' e não porque isso envolve apenas a atitude de uma pessoa. Coisas que esse Júlio Victor relatou não aconteceram porque ele 'não buscou intimidade com Deus' ou 'olhou só para homens', mas aconteceram por causa dessa cultura religiosa que está acabando com a fé das pessoas que realmente querem ter intimidade com Deus. Estas pessoas são rejeitadas pela igreja. A gente precisa perceber que até esse nosso discurso de culpabilizar a pessoa por ela ter 'seguido homens' é exatamente um discurso dessa cultura, porque impede a gente de perceber o quanto a igreja precisa mudar, como um todo.

11 - Não era permitido compor, apenas músicas inspiradas por Deus que eram tocadas. Eu lembro de compor vários hinos que nunca mostrei para ninguém e essa era uma grande frustração minha.

#A Oxi, por acaso usar o dom de compor não é ser inspirado por Deus? Inspiração só vale quando a pessoa sai se debatendo e falando bizarrices? (Dúvida séria)

#B Não podia compor? Os hinos usados na igreja nasciam em árvores ou desciam do céu?

#C Ele disse que as músicas só podiam ser "inspiradas por Deus". Provavelmente, somente os doutrinadores podiam compor as músicas para ter um controle melhor sobre o que toda a igreja iria ouvir. Quando esses mostravam uma composição nova, diziam que havia sido inspirada por Deus.

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Como Helmut Richard Niebhur escreveu, a igreja se voltar contra a cultura dos homens (profana e poluída pelo pecado ou por Satanás) é uma abordagem possível dessa relação igreja-sociedade. Então, fazendo seu papel de purificadoras do gênero humano, algumas congregações tentam banir todo traço de cultura profana da vida dos seus membros. É o caso do Júlio Victor, mas não uma situação rara.

Os Amishes nos Estados Unidos são um exemplo altamente midiatizado de cultura baseada na igreja. Eles vivem em grupamentos formados por pessoas da mesma religião, casando-se e relacionando-se apenas entre si. São mini-sociedades rurais que pareceriam bem familiares a um colono do séc. 18. Seus hábitos são próprios, assim como sua língua, vestimenta, e eles limitam (mais em algumas comunidades do que em outras) o contato dos membros com o mundo exterior. É até difícil identificar um Amish com o estadunidense do séc. 21.

Saindo um pouco de Cristianismo, encontramos outros grupos assim em comunidades esotéricas New Age¹ espalhadas pelo mundo a partir dos anos 1960. Uma bastante famosa no Brasil é Alto Paraíso, em Goiás. O movimento New Age é caracterizado pela pluralidade de crenças, o que impede que restrinjam o contato dos membros com outras religiões, mas a formação dessas comunidades em áreas muito distantes dos centros urbanos é um meio de isolarem-se. Ali dentro da comunidade, estabelece-se um núcleo cultural tão diverso que Alto Paraíso (na verdade uma coleção de pequenas vilas em um lugar com muitas belezas naturais) se tornou um roteiro turístico tão curioso quanto seria uma aldeia do Alto Xingu ou o Oriente Médio.

Os Judeus eram esse grupo culturalmente diverso quando se mudaram do Baixo Egito para Canaã, por isso redigiram uma série de restrições culturais e punições aos contatos com Gentios. Os Amonitas, Amalekitas e Moabitas, vizinhos do rio Jordão, eram os principais alvos dessa restrição cultural - pessoas podiam morrer, e morreram, por se relacionarem com eles. E assim se justificam hoje as reclamações do Júlio Victor, por leis dos Hebreus de 1400 a.C. trazidas do passado nos livros de Levíticos e Deuteronômio. Posteriormente, os Judeus também lutaram contra a cultura Grega (séc. 2 a.C.) e contra a cultura Romana (séc. 1 d.C.). A lembrança amarga dos Gregos foi imortalizada nos livros de 1ª e 2ª Macabeus (só presentes nas Bíblias Católicas e Ortodoxas), enquanto a recordação azeda dos Romanos foi deixada em segmentos do Novo Testamento². Com a diferença de que, uma vez conquistados pelos estrangeiros, os Judeus não podiam simplesmente se isolar deles.

Como o Júlio relata, é comum as comunidades Protestantes criarem um isolamento cultural para se defender do que foi poluído pelo Diabo (os Judeus Essênios e os Católicos Cátaros não eram muito diferentes). Mas, a menos que formem suas próprias vilas como os Amishes, expurgar a cultura mundana dos fiéis não apenas é difícil (as pessoas continuam estudando, crescendo, trabalhando no meio profano), como também deixa um vácuo cultural que precisa ser preenchido. A alternativa cultural da igreja Evangélica é muito ruim: músicas, rituais, vestimentas, jargões, livros e filmes produzidos por ela mesma.

Quer dizer, não estamos falando de um processo cultural verdadeiro, com escritores, pintores e músicos populares enraizados na mentalidade Evangélica, preferidos pelos demais e selecionados ao longo do tempo. A maior parte do material cultural Evangélico no Brasil foi produzido a partir dos anos 1980 via tradução de coisas estadunidenses do início do séc. 20. Não há uma raiz brasileira, nem tempo suficiente para um crescimento de símbolos culturais. Ao invés disso, há pastores lapidando ao próprio tino os detalhes culturais, sacralizando sua origem e impondo-os como norma. A fuga dos jovens não apenas é esperada - faz parte do seu processo de formação de identidade - como provável, pela cultura "pequena" oferecida em troca da cultura mundana.

O Congresso Internacional de Evangelização Mundial, realizado em 1974 em Lausanne, Suíça, produziu um consenso (entre 4000 líderes Evangélicos de 150 países) de que o Evangelho é ferramenta de transformação das pessoas, tanto espiritual quanto culturalmente. Dessa forma, ao invés de separar o profano e o religioso, como a Igreja faz desde os tempos de Paulo, seria mais útil transformar de modo racional os elementos culturais que se opõem ao Evangelho. Violência, idolatria e prostituição ritual seriam os 1os alvos dessa transformação, ou seja, elementos culturais sobre os quais a Igreja deveria dedicar todo seu tempo. No Brasil, há algumas ações de bravura nesse sentido, mas de fato vemos cidades ricas em congregações e chafurdadas nos maus caminhos.

A Injustiça Social (ex. escravidão, exploração de seres humanos) e a Poligamia (comum em regiões da África e do Sudeste Asiático) foram propostas como um tema de tolerância limitada (por uma geração), uma vez que organizam as vidas de pessoas. Ou seja, a Igreja deveria educar os filhos dos atuais detentores do poder para que essa injustiça fosse revertida nas décadas seguintes. É importante dizer que houve muito mais ações dos Católicos nesse sentido, movidos pelo Concílio Vaticano II em 1962-1965, do que pelos Evangélicos. As ações sociais Evangélicas atualmente se concentram na Educação Superior e Média (instituições privadas, deixemos claro), Comunidades Terapêuticas de atendimento a dependentes químicos (também privadas, muitas vezes destituídas de equipe adequada e tratamentos modernos) e administração de Entidades Filantrópicas como orfanatos, creches e hospitais de pequeno porte. Apesar da recente e progressiva participação de líderes Evangélicos no cenário político do Brasil, quase nenhuma transformação social adveio disso.

Os costumes como separação de homens e mulheres, alimentação, vestimentas, higiene pessoal, entre outros, foram considerados fora do interesse da Igreja, se não proporcionarem malefícios evidentes aos homens. Acho que caberia muito bem colocar a música aqui, desde o gênero até os instrumentos, para o grosso do que o Brasileiro consome e produz nesse ramo. Mas é justamente aqui onde a maioria das igrejas Evangélicas brasileiras gasta suas energias! Claro que é o elemento cultural mais fácil de atingir, mas também o mais supérfluo e mais 'governado' pelas forças no topo da lista. Não admira que vejamos pouca mudança social movida pela Igreja e muito desagrado por parte dessa geração inaugurando o novo século.

Abaixo ainda desses elementos superficiais da cultura, a Comissão de Lausanne e seu 'Relatório de Willowbank' deixou inscritos temas teológicos controversos, isto é, sobre os quais o Evangelho não parece claro, como estrutura política da Igreja, interpretação de profecias (bíblicas) e significados de eventos. Novamente, vemos uma intensa ação das congregações em doutrinar seus membros quanto a isso.. Lembrando o Pastor de Hermas, é como se tentassem construir uma torre pensando nos tapetes e quadros do interior, ao invés da fundação e entrelaçamento das vigas. Nesse meio tempo, o vento sopra e jovens interessados na Igreja, como Júlio e seus comentaristas, são levados a procurar abrigo noutras paragens.

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¹ O movimento New Age é um legítimo representante do Pós-modernismo, que se vale da quebra de fronteiras. Dentro desse movimento, encontramos elementos culturais Hindus, Árabes, Cristãos, Gregos, Judeus, Ciganos, Nórdicos, etc misturados em proporções muito variadas de acordo com a comunidade. Tipicamente, as comunidades New Age se formam da reunião de egressos das diversas culturas tradicionais e fundam suas próprias religiões sincréticas, mas se beneficiam do respeito ao pluralismo de crenças.

² No relato de Mateus 25.31-46, Jesus figura os justos e os condenados no Juízo Final respectivamente como ovelhas e cabritos. A figuração não passa despercebida: Jerusalém estava em crise com Roma, faltando 40 anos para receber ordens de ser varrida do mapa, junto com sua população. As ovelhas eram animais sagrados para os Judeus (sinal do sacrifício feito por Moisés em sua partida do Egito) e as cabras eram animais sagrados para os Romanos (sinal do renascimento da Terra, pelas mãos da deusa Deméter). Também João [evangelista], como profeta na ilha de Patmos, aponta a Besta aparecendo em um lugar com 7 colinas e vários reis a governarem num período curto (Apocalipse 19.9,10). 'Cidade das 7 colinas' era o apelido de Roma no mundo antigo e, a partir do ano 64 d.C., uma crise política levou ao trono e matou rapidamente 6 imperadores (68-96 d.C.), logo após Nero.

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Para ler somente na igreja

Bernardo J, Os evangélicos e as grandes questões sociais, gospelmais.com.br, 4/out/2013
Coelho T, A hora e a vez do partor-sargento, Revista Piauí, 5/mar/2018
Ferreira F, O Cristão e a cultura, Voltemos ao evangelho, 11/fev/2013
Niebhur HR, Cristo e cultura, Série encontro e diálogos v. 3, Ed. Civilização Brasileira S.A., 1967
O evangelho e a cultura, Relatório da reunião de consulta realizada em Willowbank, Somerset Bridge, Bermudas, jan/1978
Veloso F, Transformação social a partir da igreja, comunhao.com.br, 1/abr/2018

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