domingo, 10 de janeiro de 2016

Legalismo

Bíblia ilustrada de 1897; Charles Foster

Talvez uma diferença básica entre ateus e teístas seja o fato de que os primeiros creem num mundo governado por regras, enquanto os últimos acreditam na governança de uma entidade racional a quem chamamos de Deus, Jeová, Javé, etc. Enquanto leis podem ser escritas ou matematizadas, pois são constantes e imutáveis, um deus não pode ser teorizado. Por exemplo, as leis da genética estabelecem que os filhos sejam da mesma espécie que seus pais, probabilisticamente 50% homens e 50% mulheres, além de herdar semelhanças físicas, padrões de crescimento e, segundo sabemos hoje, até aspectos mais gerais da personalidade. Um deus por outro lado cuidaria de gerar filhos segundo seu interesse ou em favor de seus protegidos, homens ou mulheres segundo o que a comunidade precisa (ex. Eva, produzida a partir de células masculinas), com personalidades atribuídas segundo seus desígnios e intenções/conhecimento de ações futuras. Eventualmente, os filhos poderiam ser gerados até mesmo sem um ou os dois pais ou sintetizados diretamente do não humano, como Adão.

Nada impede que um deus estabeleça leis naturais, mas eventualmente ele precisa quebrar ou mudá-las para testemunhar a sua independência e existência como ser. Isto é, a genética não precisa ser uma entidade, ela se basta como matemática, estatística, como regra. Já a criação de um homem a partir do não humano, a formação de uma mulher a partir do homem ou até a atribuição de características não herdáveis necessita de uma mente, um ser que os produza. O aparecimento/desparecimento súbito de uma doença crônica pode ser atribuído à ação divina. Pelas regras naturais, tanto um como outro são processos lentos. A abertura de uma passagem no mar é outro exemplo de ação divina. Em toda história, nenhum acontecimento semelhante foi registrado de forma não-religiosa. Uma inundação catastrófica pode ser natural, mas também nunca foi um fenômeno previsível.

Em poucas palavras, um deus se caracteriza pela violação de regras. Bem ao inverso da base que sustenta toda teologia. Em teologia, as ações e pronunciamentos de Deus são estudados para que se teorize ou se matematizem leis, princípios básicos de como Deus (theos) reage e se comporta. Uma oferenda de carne de ovelha é boa, enquanto uma oferenda de legumes não é. Se você pedir com o coração e com fé será atendido; se faltar sinceridade ou fé, não será. Se você seguir as leis terá prosperidade; se violá-las terminará humilhado como foi Jó. E havendo regras, ainda que Deus as coloque em prática, ele não dará nenhuma evidência de sua existência como ser/indivíduo a menos que as quebre. Ao final do livro de Jó, Deus se apresenta a ele e seus amigos, inquirindo qual deles estava presente quando Ele fez o mundo. Em outras palavras, Ele dizia que o sofrimento de Jó não era conseqüência previsível das ações de Jó; era simplesmente a vontade (imprevisível) de Deus. Em ainda outras palavras, o sofrimento de Jó ocorreu porque Ele quis.

A coisa toda fica mais interessante quando é o próprio Deus quem cria as leis. Moisés escreve uma parte delas em Êxodo e as esmiúça sobremaneira em Levítico e Deuteronômio. Partindo dos 10 mandamentos (que em hebraico são, na verdade, 10 palavras), chega-se rapidamente a um código de leis com muito mais de 100 ítens. Grande parte delas aplica-se aos detalhes do culto religioso, outras muitas aos problemas comuns de uma comunidade agropastoril. Entre os mandamentos, está, por exemplo, “não matareis”. Logo após ver o bezerro de ouro que Arão tinha feito, Moisés entretanto deu ordem par cada um da cerimônia pagã matar o seu irmão ou amigo (Êxodo 32.27). Seu sucessor, Josué, matou todos os povos no caminho: homens, mulheres, crianças e até os animais (Josué 6.21). Nas cidades sitiadas, foram destruídos os pomares, contrariamente ao que Deus tinha estabelecido (Deuteronômio 20.19). A menos que pensemos nos implantadores da Lei como pessoas que não a valorizavam tanto assim (o que talvez seja verdade), a Bíblia tem muitos exemplos das leis sendo quebradas. E quantos Judeus não morreram nas invasões Babilônicas, orquestradas como punição pelos pecados de Judá?

Vejam que hoje ponho diante de vocês vida e prosperidade, ou morte e destruição. Pois hoje lhes ordeno que amem o Senhor, o seu Deus, andem nos seus caminhos e guardem os seus mandamentos, decretos e ordenanças; então vocês terão vida e aumentarão em número, e o Senhor, o seu Deus, os abençoará na terra em que vocês estão entrando para dela tomar posse. Se, todavia, o seu coração se desviar e vocês não forem obedientes, e se deixarem levar, prostrando-se diante de outros deuses para adorá-los, eu hoje lhes declaro que sem dúvida vocês serão destruídos. Vocês não viverão muito tempo na terra em que vão entrar e da qual vão tomar posse, depois de atravessarem o Jordão. (Deuteronômio 30.15-18)

Esse princípio geral do Judaísmo, que norteia os livros sapienciais como caminhos para uma vida tranqüila e abençoada, jamais poderia ser aplicado a Jó, aos profetas assassinados, os zelotes que preferiram a morte em Massada, os pobres a quem Jesus falava ou às vítimas da perseguição romana nos primeiros séculos do Cristianismo. Estes todos sofreram justamente por sua fidelidade a Deus. Por outro lado, desde os tempos de Davi e Salomão os salmistas registravam: “Até quando os ímpios, Senhor, até quando os ímpios exultarão?” (Salmos 94.3). Nos tempos do cativeiro Babilônico, Jeremias também se lamentava:

Por que o caminho dos ímpios prospera? Por que todos os traidores vivem sem problemas? Tu os plantaste, e eles criaram raízes; crescem e dão fruto. Tu estás sempre perto dos seus lábios, mas longe dos seus corações. (Jeremias 12.1,2)

E o sábio autor de Eclesiastes (quem sabe Salomão) também reclamava:

Nesta vida sem sentido eu já vi de tudo: um justo que morreu apesar da sua justiça, e um ímpio que teve vida longa apesar da sua impiedade. (Eclesiastes 7.15)

Assim, embora Moisés apresentasse um Deus legalista, que se manifesta na forma de regras imutáveis abençoando ou condenando (mais condenando que abençoando) as ações humanas, outros autores bíblicos não deixam de mostrar que Deus nunca foi previsível ou manipulável, mesmo pelo mais bem-intencionado dos homens. Em sua força-tarefa para restaurar Jerusalém nos tempos do rei Dario, o Persa, Neemias não se priva de pedir abertamente recompensas por seus feitos na cidade sagrada. Não sabemos se ele alcançou êxito, mas os livros dos Macabeus nos testemunham que Jerusalém voltou a ser sitiada e arrasada. Massada nos testemunha ainda que, apesar de sua fé, os judeus foram esmagados pelos romanos profanadores do Templo. Assim, apesar de toda tentação teológica de prever Deus e substituir seu arbítrio por um sistema legal, o favor divino continua dependendo da incontrolável vontade do Senhor.

Sendo quem era, Jesus também não deixava de atropelar as questões legais para torcer e mudar o que a Lei de Moisés dizia. Pecadores eram perdoados apesar de suas más obras, ímpios eram curados apesar de sua fé diferente, até ladrões eram convidados ao reino celestial. Jesus fugia ao mais hábil escrutínio dos Fariseus, e mesmo do Diabo. Pois se um homem não deixaria de afirmar sua vontade quase aleatória, qual deus não faria isso?

Evidentemente, uma religião assim não poderia sustentar governo algum, da mesma forma que os oráculos do mundo greco-romano antigo não sustentavam seus governos. Num Cristianismo estatal, Jesus PRECISA ser traduzido em leis, Deus precisa estar na forma de regras escritas ou tradicionais. Deus precisa ser previsível para que a vontade dos governantes, essa sim, seja individual. Na Idade Média, o mundo testemunhou a gradiosidade dos seus reis-deuses, havia muito perdida com a destruição de Roma. Com as Repúblicas, mesmo os governantes se traduziram em leis e, assim, um deus que fala a cada momento ficou muito distante, quase inimaginável. Talvez uma figura lendária associada aos profetas de outrora. Talvez uma entidade pouco compreensível mostrada pelos oráculos, digo, profetas das muitas igrejas neopentecostais. Mas haveria um consenso em todas essas revelações, como seria esperado de um ser ciente de tudo?

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EU NÃO LERIA

Biblical Archaeology Society, Masada, The Dead Sea’s Desert Fortress, 2014.
Greenberg G, 101 Myths of the bible, cap. 78, 2000.
Vermes G, Ressurreição: história e mito, cap. 2, 2013.

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