terça-feira, 5 de março de 2013

A bruxa de Endor - uma visão do sobrenatural bíblico

 
A bruxa de Endor - quadro de Nikolai Ge

Samuel (931-877 a.C.) foi um profeta dos mais importantes na história bíblica. Ele acompanhou a centralização do poder real sobre Saul após o período em que Israel foi governada por “juízes”. Sucedeu o sacerdote Eli como “juiz” e até se opôs ao comando da nação por um rei, mas finalmente ungiu aquele que Deus havia ordenado. A relação entre Samuel e Saul foi das mais próximas: Saul com o poderio militar e Samuel trazendo ao rei as ordenanças do Senhor, de forma que o rei fosse um executor político dos desígnios de Deus. Quando Saul quis assumir para si esse comando da nação, Samuel simplesmente retirou-lhe a unção prévia. Em sua fúria, Saul rasgou o manto do profeta, que respondeu dizendo que ele mesmo seria rasgado da realeza e o poder entregue a outro fora de sua linhagem (esse seria Davi). Samuel viveu até que o reinado de Saul estivesse terminado, morrendo poucos meses antes que o monarca fosse derrotado e morto em batalha contra os filisteus (1Sm 31.1-5; 2Sm 1.6-10).

AVENTURA DE UM DESESPERADO

Nos seus últimos dias, as invasões dos filisteus a terras muito ao norte das fronteiras sinalizava de que a defesa de Israel estava enfraquecida. Após uma bem sucedida campanha contra a tribo dos amalequitas, Saul voltara a seu acampamento para encontrar o profeta Samuel repreendendo-o e declarando o fim de sua linhagem. Ao invés de seu filho Jônatas, o velho profeta ungira Davi - um pastor - como o próximo rei. Saul vivia atormentado e mandara chamar Davi para apaziguar-lhe a alma - justamente Davi! (1Sm 16)

Após a derrota do gigante filisteu Golias, o músico Davi ganha a simpatia dos exércitos. Saul decide matá-lo, mas Davi foge, conseguindo se infiltrar no reino de Moab e obtendo até o apoio do rei filisteu Aquis contra Saul. Desesperado e com a promessa de Samuel de que o Senhor havia se afastado dele, avisado da morte do profeta o rei Saul inflinge suas próprias leis: partindo do acampamento de Súnem, ele procura uma necromante na montanha de Endor. Junto de Samuel, o rei havia banido os necromantes e feiticeiros; sozinho porém, a necromante agora parecia seu único socorro.

Endor ficava a 6 Km dali … mas contornando o vale onde os filisteus campavam. Saul se disfarça de viajante e parte com alguns homens, chegando desconhecido a Endor, onde pede à necromante para invocar o espírito de Samuel. Ela tem sucesso nisso, Samuel fala a Saul após a sua morte (1Sm 28) e a partir daí constrói-se séculos depois uma polêmica na igreja cristã, que ferrenhamente se opõe à comunicação com os mortos, principalmente após o surgimento do Espiritismo, no séc. 19. Várias vertentes de interpretação aparecem:

ALGUNS ACREDITAM QUE SAMUEL VOLTOU DOS MORTOS

Evidentemente, uma das preocupações dos intérpretes é com a possibilidade de reconhecer que a comunicação com os mortos é possível. Os homens sempre buscaram formas de prever o futuro, de livrar-se da angústia de não poder se prevenir contra tudo. Como se o futuro estivesse espreitando atrás de cada coisa comum, buscaram a revelação do futuro nos astros, nas linhas das mãos, nas cartas, nos mortos. Davi havia dito que “os mortos não louvam ao Senhor” e atribuiu-lhes um reino de silêncio (Sl 115.17). Salomão acrescentou que “os mortos não sabem coisa nenhuma, nem tampouco terão eles recompensa, mas a sua memória fica entregue ao esquecimento... também o seu amor, o seu ódio, e a sua inveja já pereceram, e já não têm parte alguma para sempre, em coisa alguma do que se faz debaixo do sol” (Ec 9.5-6). O profeta Isaías havia condenado seriamente essas consultas a espíritos que “chilreiam e murmuram”, ou ainda aos mortos, ao invés de consultar a Deus (Is 8.19). Jesus por fim argumentou que o futuro somente a Deus pertence na parábola do agricultor rico (Lc 12.26-21) e propôs a inutilidade da comunicação com os mortos na parábola do rico e Lázaro (Lc 16.20-31).

No entanto, o que a Bíblia não diz que chamar os mortos é impossível. O que o texto mostra são argumentos contra a consulta aos mortos e mesmo uma condenação declarada àqueles que o fazem:

Quando, pois, algum homem ou mulher em si tiver um espírito de necromancia ou espírito de adivinhação, certamente morrerá; serão apedrejados; o seu sangue será sobre eles.” (Lv 20.27)

Entre ti não se achará quem faça passar pelo fogo a seu filho ou a sua filha, nem adivinhador, nem prognosticador [vidente], nem agoureiro, nem feiticeiro, nem encantador, nem quem consulte a um espírito adivinhador, nem mágico, nem quem consulte os mortos, pois todo aquele que faz tal coisa é abominação ao SENHOR; e por estas abominações o SENHOR teu Deus os lança fora de diante de ti.” (Dt 18.10-12)

E essa mesma Bíblia descreve a visão da necromante de um ancião de capa subindo do outro mundo (Shéol), após o que ela gritou e Saul entendeu que falava a Samuel. A natureza de possessão espiritual nesse contato fica sugerida nos escritos de Isaías sobre os “espíritos que chilreiam e murmuram” e no contato entre Saul e a necromante:

Peço-te que me adivinhes pelo espírito de feiticeira, e me faças subir a quem eu te disser … Vendo, pois, a mulher a Samuel, gritou com alta voz, e falou a Saul, dizendo: Por que me tens enganado? Pois tu mesmo és Saul. Então a mulher disse a Saul: Vejo deuses que sobem da terra. E lhe disse: Como é a sua figura? E disse ela: Vem subindo um homem ancião, e está envolto numa capa. Entendendo Saul que era Samuel, inclinou-se com o rosto em terra, e se prostrou

Primeiro, a necromante absorveu o conhecimento que Samuel tinha sobre as feições de Saul, a quem ela mesma não reconhecera. Segundo, a palavra hebraica usada nesse texto para “médium” é “owb”, que se refere ao som de um murmúrio, ou o balbuciar. Esse era o comportamento de alguém que dava voz aos espíritos, como diz Isaías (Is 8.19). Terceiro, Samuel não dá avisos de ir embora ou “desfazer-se no ar”; a narrativa segue falando da mulher socorrendo ao rei, que estava caído. Aparentemente, não houve ali um Samuel físico, mas a narrativa deixa claro que Saul falou a Samuel. A necromante e Saul haviam feito juntos o que tanto havia sido condenado por Moisés, e depois seria por Davi, Salomão, etc. E, como Salomão havia dito, os mortos nada podem acrescentar: o que Samuel [o espírito, também chamado pseudo-samuel] disse a Saul foi uma repetição do que havia lhe dito em vida (1Sm 15). Obviamente não foi a necromante (muito menos Samuel) quem escreveu essa parte do 1º livro de Samuel, mas um seguidor do profeta a quem atribuímos a verdade sobre os acontecimentos bíblicos.

ALGUNS ACREDITAM QUE SAUL FOI ENGANADO

A passagem começa com Saul transtornado, movido pelo medo à procura da necromante. Samuel havia dito que ele perderia seu reino; o profeta que havia sido seu conselheiro em todo reinado havia morrido; os filisteus juntaram um grande exército contra Israel e Saul começava a perceber que perderia a guerra; ele não ouvia mais o Senhor em sonhos, os profetas não lhe falavam e as pedras sagradas Urim e Tumim não davam mais resposta (1Sm 28.6) (ver link no final). Para chegar à necromante, Saul teve vergonha do que fazia e se disfarçou, tendo ainda que passar perto do acampamento filisteu. Ele lá chegou sem comer havia vários dias, a ponto de a necromante ter de socorrê-lo, pois nem conseguia mais ficar em pé (1Sm 28.22-25). Assim como acontece com as pessoas chorosas que vão a videntes e necromantes desesperadas para falar com um parente falecido, de quem sentem muita falta, tudo isso favorece que o rei tivesse acreditado em qualquer mentira que a necromante dissesse, e mesmo um murmúrio fosse entendido como Samuel falando do mundo dos mortos.

Porém, é pouco provável que uma necromante refugiada nas montanhas tivesse conhecimento sobre o que Samuel dizia a Saul em vida, e ela mesma mostrou-se incapaz de reconhecer o rei quando o encontrou. De onde veio o conhecimento de que ele era o rei? De onde vieram os detalhes da profecia contra Saul, que o espírito repetiu em detalhes para o rei? É coisa abominável e inútil invocar os mortos, mas tão repetidamente a Bíblia fala sobre isso que as invocações não deviam ser raras (e o servo de Saul até sabia onde a necromante vivia) e um seguidor de Samuel (cujas palavras foram preservadas na Bíblia mais de 3 mil anos depois) teria se prontificado em desmascará-la.

ALGUNS ACREDITAM QUE SAUL FALOU COM UM DEMÔNIO


Os autores bíblicos sempre fizeram questão de identificar a aparição desses “espíritos enganadores”: eles são mencionados como transtornando o reinado de Abimeleque sobre Israel (Jz 9.23), na forma de um velho tentando dissuadir o profeta de Deus que amaldiçoou Jeroboão por compartilhar dos sacrifícios moabitas (1Rs 13.18); quando os 400 profetas de Acabe (rei de Israel e esposo de Jezebel, que instituiu o culto de Baal no reino) lhe asseguraram vitória na guerra contra os sírios em companhia de Jeosafá, rei de Judá (1Rs 13.20-23 e 2Cr 18). Em seu vocabulário pagão, a nechomante usa a palavra “elohim” (deuses) para se referir ao espírito, indicando que essa era a forma habitual como ela fazia suas previsões.

Quem escreveu grande parte dos livros de Samuel foram os próprios seguidores do profeta, um dos quais provavelmente acompanhou Saul na ocasião, e mesmo esse (ou os redatores seguintes a ele) não mencionam nenhum “espírito enganador” ou um “demônio mentiroso”. Eles escreveram chamando aquele que apareceu de Samuel, o profeta.

Finalmente, o livro apócrifo Eclesiástico retrata o conhecimento dos judeus acerca de sua própria história. Hebraico e datado de 200 a.C., esse livro repete que “Depois disto, Samuel morreu e apareceu ao rei, predisse-lhe o fim da sua vida, e levantou a sua voz de debaixo da terra, profetizando, para destruir a impiedade do povo” (Eclesiástico 46.23).

CONCLUSÃO

Talvez a implicação teológica maior do aparecimento do espírito de Samuel ao rei condenado seja o fato de que esse espírito não estava “catatônico” esperando o dia do juízo ou mesmo no céu, junto de Deus. Samuel estava em outro lugar, talvez dentro da terra, onde podia esperar pela chegada próxima de Saul e seus filhos. Jesus mesmo fala sobre um lugar onde os espíritos dos maus aguardariam sua ida ao inferno e um lugar onde os bons aguardariam para serem libertos (o seio de Abraão - ver Lc 16.19 em diante). Essa libertação estaria condicionada ao fim da separação de Deus imposta pelo pecado... e diversos profetas anunciaram que somente o sacrifício do “pastor” ou do “messias” seria capaz de destruir tal separação. Ou seja, a existência de um lugar para homens ao lado de Deus, sobre a qual Jesus fala ao jovem discípulo João, somente seria possível após Ele (Jo 14).

CURIOSIDADE

Há três relatos sobre a morte de Saul. Na profecia de Samuel, Saul morreria entrege aos filisteus. Nos relatos de 1Sm 31 e 1Cr10, ele pede a um pajem ou escudeiro que o mate para que que os filisteus não o capturem. Porém, quando o ajudante se nega, Saul mata a si mesmo, sendo seguido pelo auxiliar. No relato de 2Sm 1, um amalequita conta a Davi que vira Saul caído e que o matou a pedido dele mesmo, tomando sua coroa e bracelete. Seria ele o tal pajem ou um simples mentiroso?

PODE SER LEGAL LER OUTRA COISA...

Urim e Tumim
Dennis Downing – Saul se comunicou com o espírito de Samuel?
Era ou não era Samuel?
Saul e a médium de En-dor
Saul and the medium of Endor

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe um comentário!