o vale do Cédron
As tentações de Jesus são narradas nos 3 evangelhos sinóticos (isto é, que são sinopse ou resumo de algo). Em todas é enfatizado que Jesus estava só em sua provação, no deserto, de forma que nenhum dos evangelistas observou a disputa entre Jesus e Satanás. Se puderam contar sobre isso, somente poderiam ter ouvido da boca do próprio Senhor, com quem conviveram durante Seu ministério. João Marcos, mais breve na escrita, apenas coloca que após o batismo no rio Jordão, “logo o Espírito o impeliu para o deserto. E ali esteve no deserto quarenta dias, tentado por Satanás. E vivia entre as feras, e os anjos o serviam” (Mc 1:12-13). Mateus Levi e Lucas vão além, enumerando as tentações (embora a ordem da 2ª e da 3ª tentação varie).
40 DIAS
O número 40 aparece muitas vezes na Bíblia e nas lendas do Oriente Médio (ex. Ali Babah e os 40 ladrões). Os povos semitas não viam muito sentido em número grandes, pois não usavam cálculos senão para agricultura (no Egito, o número 12, ou seja, o número de divisões do ano, era usado para significar “muitos”). Os estudiosos assim não acreditam que 40 seja um número especial, mas simplesmente uma forma popular de dizer “muitos”, assim como falamos “já te disse mais de mil vezes”, ou “tenho uma dúzia de coisas para fazer”. Também o dilúvio de 40 dias e 40 noites poderia ser simplesmente “muitos dias e muitas noites”; a peregrinação dos hebreus no Sinai por 40 anos também seria “muitos anos”; Davi apresentou-se a Saul por 40 dias seria “por muitos dias” e assim por diante. Não parece que Jesus também se preocupasse com detalhes numéricos... muito menos jejuando no deserto.
Ele não foi abordado por Satanás numa festa, no Templo ou na sinagoga (embora um demônio tenha se apresentado ali). Ele foi guiado ao deserto pelo Espírito Santo. Os essênios como João Batista jejuavam no deserto, a fim de se purificarem. Moisés subiu no monte Horebe para falar com Deus duas vezes e ali esteve, sem comer ou beber, por “muitas” noites antes que Deus falasse com ele (Ex 24.18, Ex 34.28). Jesus, porém, foi guiado para o deserto para encontrar seu inimigo - lá Ele voluntariamente se enfraqueceu ou se purificou pelo jejum por muitos dias, e só então o diabo se apresentou. Curiosamente, Jesus não deu a Mateus Levi ou Lucas detalhes sobre se o demônio apareceu em forma física ou, como Frei Betto aponta, na forma de pensamentos terríveis atormentando um homem escondido em uma caverna. Em nenhum ponto da Bíblia há uma aparição física do diabo...
As referências apontam que Ele seguiu para a margem oeste do rio Jordão, perto do Mar Morto, nos arredores de Jericó (curiosamente um dos locais de habitração mais antiga na história da humanidade) e da montanha Jebel Quruntul, um local escarpado, de rochas expostas e onde só cobras e escorpiões habitam.
A CONCUPISCÊNCIA DA CARNE
Concupiscência é tudo aquilo que usamos como justificativa dos nossos erros; são as nossas alegações de fraqueza. Não é preciso ser pecador para ser tentado... As tentações sempre são propostas sutis de trocarmos Deus por algum outro, a fim de aliviar as nossas aflições ou angústias, assumir algumas “concupsicências” que justifiquem para nós mesmos termos abandonado o simples que Deus ordenou: amarmos a Ele acima de tudo e ao próximo como a nós mesmos. No caso de Jesus, Mateus escreve que o diabo disse “E, tendo jejuado quarenta dias e quarenta noites, depois teve fome; e, chegando-se a ele o tentador, disse: Se tu és o Filho de Deus, manda que estas pedras se tornem em pães” (Mt 4:2-3). Lucas escreve “naqueles dias não comeu coisa alguma; e, terminados eles, teve fome. E disse-lhe o diabo: Se tu és o Filho de Deus, dize a esta pedra que se transforme em pão” (Lc 4:2-3). Eis a concupiscência: a fome. Jesus podia fazer pães, na verdade os fez mais uma vez para alimentar o povo. E fez vinho também. Não seria pecado algum se alimentar... mas repare na sutileza de Satanás: “SE tu és o Filho de Deus...”.
Ele queria que Jesus aceitasse a possibilidade de não ser quem era. Dias atrás o céu se abrira em Seu batismo e o próprio Deus dissera: “Esse é meu filho amado...” (Mt 3.17; Mc 1.11). Jesus não precisava de provas, nem Satanás (por isso estava lá). Mas havia a fome, e o diabo fazia parecer que aquilo era um “erro” de Deus, uma “maldade” qualquer da parte Dele, que não se aplicaria a Seu filho. Porque as pedras não eram pães? Porque coisas que não gostamos acontecem?
A resposta de Jesus foi categórica: “Nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus”. Essa havia sido a fala de Moisés no final da peregrinação dos hebreus pelo Sinai (Dt 8.3). Moisés se referia então às provações que haviam passado, quando o Senhor testara os seus corações para saber se eram fiéis a Ele. Em meio à perseguição, Deus os havia protegido; os alimentara no caminho, nem seus calçados e roupas se desgastavam, mas o povo duvidava se Deus os guiava! O “bem e o mal” haviam saído de Deus, que lhes reservara uma terra especial... bastando que confiassem Nele. Jesus também havia sido levado ao deserto pelo Espírito Santo, após os céus se abrirem e Deus falar, mas agora Satanás sorrateiramente questionava SE esse era um desígnio de Deus. Quem não faria isso?
Jesus não fez.
SOBERBA
A 2ª tentação veio para testar o significado da proteção divina. Jesus havia afirmado que Deus o guiava, então Satanás apelou para a proteção total que o Senhor promete àquele que se refugia Nele (Sl 91.11-12). Levou Jesus ao alto do Templo. O historiador romano Flavius Josephus (37-100 d.C.) narrou a perseguição dos judeus na época do imperador Titus. Ele descreve o pórtico de Herodes, no Templo, como se elevando 150 m acima do vale de Cédron, entre o monte do Templo e o monte das Oliveiras. Essa deve ter sido a cena que Satanás apresentou a Jesus, dizendo novamente “SE tu és o Filho de Deus, lança-te de aqui abaixo; porque está escrito: que aos seus anjos dará ordens a teu respeito, e tomar-te-ão nas mãos, para que nunca tropeces em alguma pedra” (Mt 4.6).
O que significa ser Filho de Deus? Somente Jesus poderia entender o que isso significava. Para os homens comuns, significa contar com Ele mesmo na hora da morte, como aconteceu com Estevão quando foi apedrejado na frente do jovem Saulo de Tarso.
“Eis que vejo os céus abertos, e o Filho do homem, que está em pé à mão direita de Deus” (Atos 7.55-56)
Trata-se de uma promessa enorme, o Reino dos Céus! Mas a Jesus, essa já era uma certeza, em vida mesmo Ele chamou aos moradores celestiais para falar-lhes. O que significava, então, o desafio do diabo? Ele estava fraco pela fome e a solidão, carregado pelo demônio para ver das alturas o monte das Oliveiras, onde estavam muitos túmulos antigos dos profetas. E o demônio dizia: SE és o Filho, joga-te daqui, e Deus te protegerá [embora os profetas tenham morrido]. Era Jesus desafiar a promessa divina (e não se jogar) ou testar a Deus (e se jogar). Quem é mais importante, a Lei ou o Senhor?
Mais tarde, Jesus daria lições aos Fariseus de que o propósito da Lei é melhorar a vida dos homens (Mt 12). Ao diabo (e a Si mesmo) Ele respondeu com a fala de Moisés, novamente: “Não tentareis o SENHOR vosso Deus [como O tentastes em Massá]” (Dt 6.16). Massá foi um entreposto da peregrinação pelo Sinai. O povo, sedento, questionou o propósito de Deus ao levá-los para o deserto. Não era melhor deixá-los escravos do que os matar de sede? (Ex 17.13). Duvidar da proteção divina é um pecado grave, é quebrar o amor “acima de tudo” para com Ele. Testar a proteção divina tiraria de Jesus a fé em Deus... e Ele não a testou.
Paulo traz uma visão mais humana dessa tentação de poder, de acreditar-se inviolável “porque os anjos o protegerão”. Quem faz isso crê num Jesus indestrutível, se lançando no vale de Hebron para ver se Deus o protegeria. Paulo via pessoas permanecendo no pecado mas certas da Salvação porque haviam recebido o batismo! Enquanto Jesus simplesmente se negava a testar Deus, Paulo afirmava que era necessário MORRER para o pecado, ou não fazia sentido a ressurreição (Rm 6.1-12).
A PIOR OFERTA
Em sua terceira tentativa, o diabo desvelou sua força sobre Jesus. Mateus conta que “o transportou o diabo a um monte muito alto; e mostrou-lhe todos os reinos do mundo, e a glória [brilho] deles. E disse-lhe: Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares” (Mt 4:8-9). Essa tentação era imensa; as almas dos homens, que o diabo tinha pelo Pecado Original. Assim, de forma fácil, sem mortes, nem Dele ou de qualquer outro. Imagine poder salvar todos os pecadores de um destino cruel!
A nós homens não é dado esse poder, por isso somos pouco tentados pela oferta. Mas Jesus tinha essa oportunidade! Ele tinha que optar entre servir somente a Deus (e os homens que busquem sua salvação) ou de uma vez anular a atração que o mal tem sobre todos (se Ele se curvasse ao demônio, condenando a Si próprio no lugar de todos). Sabendo o que Ele de fato fez mais tarde, podemos supor que a balança oscilou... o diabo sempre é astuto (Lc 16.8).
Jesus novamente buscou conforto nas palavras de Moisés: “O SENHOR teu Deus temerás e a ele servirás” (Dt 6.13). Nunca foi uma questão de escolha; apesar dos sofrimentos, das dúvidas e das ofertas, servir ao Senhor esteve em 1º lugar. Fortalecido de todas as suas dúvidas carnais e espirituais, um Jesus exausto expulsa seu tentador e os anjos o vieram servir, para que se recuperasse, antes que partisse para seu ministério na Galiléia (Lc 4.14). Cena semelhante se passa no Getsêmane, à noite, momentos antes de ser preso, quando Jesus suava gotas de sangue em agonia (Lc 22).
ELE NÃO DESISTE
O diabo voltaria ainda a incomodá-Lo em Cesaréia de Filipe. Quando interrogava sobre quem os discípulos pensavam que Ele era, Simão Pedro, filho de Jonas, lhe disse que Ele era o filho do Deus vivo. Quando Jesus falou sobre Seu sacrifício que aconteceria em Jerusalém, porém, Pedro disse que nada daquilo aconteceria (afinal, Ele estaria protegido pelos anjos do Senhor, não?). Repare a repetição da 2ª tentação segundo Mateus (3ª segundo Lucas).
“Para trás de mim, Satanás, que me serves de escândalo; porque não compreendes as coisas que são de Deus, mas só as que são dos homens” (Mt 16.23)
Pedro o seguia, mas ainda não cria nele como o Senhor. Em Jerusalém, já na última Páscoa, quando contava aos discípulos o que aconteceria a Si, “começaram a perguntar entre si qual deles seria o que havia de traí-Lo ... e houve também entre eles contenda, sobre qual deles parecia ser o maior” (Lc 22:23-24). Enquanto eles discutiam sobre ser o pior ou o melhor, Jesus lhes contou algo duro sobre o futuro: “Simão, Simão, eis que Satanás vos pediu para vos cirandar como trigo; mas eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça; e tu, quando te converteres, confirma teus irmãos” (Lc 22:31-32).
CONCLUSÃO
Jesus era humano, sujeito a fome e desejos bem carnais. No entanto, Ele também era divino, e por isso Satanás tentou suas naturezas de Deus e de homem. Escapando a ambas pelas simples (mas poderosas) orientações de Moisés, Jesus nos mostra como a Palavra de Deus pode ser uma arma valiosa contra o mal dentro de nós mesmos. O autor da Carta aos Hebreus acrescenta “porque não temos um sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas; porém, um que, como nós, em tudo foi tentado, mas sem pecado” (Hb 4.15).
Isso não é um convite à concupiscência, mas um sinal de que nós também podemos resistir às fraquezas da alma e da carne através do conselho das Escrituras e a certeza de que o Senhor nos protege e guia, sempre.
VALE A PENA LER DE NOVO
Frei Betto, Um homem chamado Jesus, Ed. Rocco, 2009
Frei Mauro Strabelli, Bíblia: perguntas que o povo faz, Ed. Paulus, 1990, cap. 50
Life of Christ
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