sábado, 9 de abril de 2011

Eu creio na Páscoa




Dúvidas Pascais
Luís Fernando Veríssimo

- Papai, o que é Páscoa?
- Ora, Páscoa é... bem... é uma festa religiosa!
- Igual Natal?
- É parecido. Só que no Natal comemora-se o nascimento de Jesus (ver 3), e na Páscoa, se não me engano, comemora-se a sua ressurreição (ver 1).
- Ressurreição?
- É, ressurreição. Marta, vem cá!
- Sim?
- Explica pra esse garoto o que é ressurreição pra eu poder ler o meu jornal.
- Bom, meu filho, ressurreição é tornar a viver após ter morrido. Foi o que aconteceu com Jesus, três dias depois de ter sido crucificado. Ele ressuscitou e subiu aos céus. Entendeu?
- Mais ou menos... Mamãe, Jesus era um coelho?
- Que é isso menino? Não me fale uma bobagem dessas! Coelho! Jesus Cristo é o Papai do Céu! Nem parece que esse menino foi batizado! Jorge, esse menino não pode crescer desse jeito, sem ir numa missa pelo menos aos domingos. Até parece que não lhe demos uma educação Cristã! Já pensou se ele solta uma besteira dessas na escola? Ave Maria!
- Mamãe, mas o Papai do Céu não é Deus?
- É filho, Jesus e Deus são a mesma pessoa. Você vai estudar isso no catecismo. Chama-se a Trindade (2). Deus é Pai, Filho e Espírito Santo.
- O Espírito Santo também é Deus?
- É sim.
- E Minas Gerais?
- Sacrilégio!!!
- É por isso que a Ilha da Trindade fica perto do Espírito Santo?
- Não é o Estado do Espírito Santo que compõe a Trindade, meu filho, é o Espírito Santo de Deus. É um negócio meio complicado, nem a mamãe entende direito. Mas quando você for no catecismo a professora explica tudinho!
- Bom, se Jesus não é um coelho, quem é o coelho da Páscoa?
- Eu sei lá! É uma tradição. É igual a Papai Noel, só que ao invés de presente ele traz ovinhos.
- Coelho bota ovo?
- Chega! Deixa eu ir fazer o almoço que eu ganho mais!
- Papai, não era melhor que fosse galinha da Páscoa? Era, era melhor, ou então urubu. Papai, Jesus nasceu no dia 25 de dezembro, né? Que dia que ele morreu?
- Isso eu sei: na sexta-feira santa.
- Que dia e que mês?
- ??????? Sabe que eu nunca pensei nisso? Eu só aprendi que ele morreu na sexta-feira santa e ressuscitou três dias depois, no sábado de aleluia.
- Um dia depois.
- Não, três dias.
- Então morreu na quarta-feira.
- Não, morreu na sexta-feira santa (4) ... ou terá sido na quarta-feira de cinzas (7) ? Ah, garoto, vê se não me confunde! Morreu na sexta mesmo e ressuscitou no sábado, três dias depois!
- Como?
- Pergunte à sua professora de catecismo!
- Papai, por que amarraram um monte de bonecos de pano lá na rua?
- É que hoje é sábado de aleluia, e o pessoal vai fazer a malhação do Judas. Judas foi o apóstolo que traiu Jesus.
- O Judas traiu Jesus no sábado (6) ?
- Claro que não! Se ele morreu na sexta!!!
- Então por que eles não malham o Judas no dia certo?
- É, boa pergunta. Filho, atende o telefone pro papai. Se for um tal de Rogério diz que eu saí.
- Alô, quem fala?
- Rogério Coelho Pascoal. Seu pai está?
- Não, foi comprar ovo de Páscoa. Ligue mais tarde, tchau.
- Papai, qual era o sobrenome de Jesus?
- Cristo. Jesus Cristo (5).
- Só?
- Que eu saiba sim, por quê?
- Não sei não, mas tenho um palpite de que o nome dele era Jesus Cristo Coelho. Só assim esse negócio de coelho da Páscoa faz sentido, não acha (8) ?
- Coitada!
- Coitada de quem?
- Da sua professora de catecismo!!!

Esse é um velho texto que eu tinha no bolso e resolvi me desfazer dele. Vão algumas observações de rodapé que estavam nele e eu atualizei:

1. A Páscoa nem sempre foi a comemoração da ressurreição de Cristo. Os judeus comemoram a Páscoa. No Velho Testamento, observa-se que eles já comemoravam essa data ANTES do nascimento de Cristo. A Santa Ceia, inclusive, foi feita em comemoração da Páscoa. A data é referida como o início do Êxodo, ou seja, a saída dos judeus de seu cativeiro no Egito, durante o reinado de Ramsés II (1279 a.C. - 1213 a.C.). Pela tradição judaica, é um festival de família judia, celebrada em suas casas. Velas são acesas, o que remonta ao tempo de iluminação do segundo Templo (1º Templo em 1000 a.C., construído por Salomão; 2º Templo em 516 a.C., após a libertação dos judeus da Babilônia; 3º Templo em 19 a.C., renovado por Herodes O Grande, destruído em 70 d.C. por ordem de Titus Flavius Caesar Vespasianus Augustus). São feitas orações e o vinho é bebido, o que simboliza a alegria. Na refeição, é declamada uma lição de história sobre as dez pragas, sangue, rãs, piolhos, animais selvagens, doenças, furúnculos, granizo, gafanhotos, trevas e da morte do primeiro filho (ver Ex 7-10).

A cerimônia descrita no Novo Testamento como a Última Ceia é um exemplo típico dessa comemoração. No centro da mesa há alimentos simbólicos, para lembrar os judeus dos detalhes da história: osso de cordeiro (lembrete do sangue de cordeiro posto nas portas para protegê-los quando Deus passou) e salsa representando o hissopo usado para passar sangue nos umbrais. Antes de ser comida, a salsa deve ser mergulhada em água salgada, que representa as lágrimas dos escravos no Egito e no Mar Vermelho. Há também ervas amargas, outro lembrete das lágrimas. São mergulhadas em uma pasta doce (haroset) antes de comer, indicando um começo amargo e um final doce. Durante a Páscoa, os judeus não comem pão levedado - no dia em que os judeus saíram do Egito, não tiveram tempo para deixar a massa crescer e comeram o pão ázimo (matzá ou matzot).

2. A trindade divina aparecia nas lendas celtas (800-450 a.C.). Não há nada sobre isso no judaísmo, sendo referida apenas no Novo Testamento, nas falas atribuídas a Jesus e nas cartas de Paulo. É possível que Paulo tenha tido contato com restos da cultura celta na Grécia, mas não se pode dizer isso de um marceneiro de Nazaré. Os estudiosos falam sobre três faces de Deus: o Pai, que aparece no Velho Testamento, falando diretamente aos homens ou através de profetas; o Filho, que é a personificação de Deus nesse mundo e seu ser/estar entre os homens para ensinar (o Verbo, a Palavra); e o Espírito Santo, que é a força de Deus consolando os homens de suas dores. O Novo Testamento relata o Espírito Santo não como uma entidade que ensine os homens, mas como um consolador. Em livros (apócrifos) como o de Enoque, é descrito um mundo das almas que não dá aos homens o acesso ao paraíso, mais ou menos como o Hades grego. A vinda de Deus à Terra teria aberto essa possibilidade aos que seguissem o que foi ensinado.

3. Não há referência alguma quanto à data exata do nascimento de Cristo. Pelos registros romanos, isso deve ter ocorrido por volta de 5 a.C., quando recomeçaram os problemas na Judéia. Há registros chineses e maias da aparição de uma supernova, ou seja, da explosão de uma estrela por volta desse ano. Seria o único fenômeno celeste observável durante o dia. O nascimento de Cristo foi colocado como 25 de dezembro por ser uma data de comemoração dos povos europeus, quando nos tempos pagãos se marcava o nascimento do deus Sol. Trata-se do solstício de inverno no hemisfério norte, quando ocorrem a noite mais longa e o dia mais frio do ano. Por isso, às vezes neva no Natal deles. A partir dessa data, o deus Sol cresce e os dias tornam-se progressivamente mais longos e quentes.

4. A data de 6ª feira para a crucificação também é tradição. É o último dia da semana para os judeus, quando Deus fez o Homem. De qualquer forma, os judeus não permitiriam que alguém fosse crucificado no sábado, que é um dia santo. Há muitas referências nas profecias do Velho Testamento, e nas falas de Jesus no Novo Testamento, sobre a ressurreição após três dias (o três de novo). A mais famosa é quando ele diz a Caifás que destruirá o Templo e o reconstruirá em três dias. Jesus chama de Templo a seu corpo humano (Jo 2:19-22). Como os judeus colocavam o início do dia ás 6:00 (nascer do sol), não há como Jesus ter sido crucificado na sexta-feira, ter ressuscitado no domingo e terem se passado 3 x 24 horas. O grego e o hebraico antigo não eram línguas tão precisas quanto as atuais (se o são), e os Testamentos foram escritos nelas. Também não havia o número zero na matemática, então melhor pensar que era uma referência ao 3º dia após sua morte, sendo a 6ª feira o primeiro dia.

5. Cristo não é sobrenome. Com exceção dos romanos, os povos antigos do ocidente nem usavam nomes-de-família. Punham um sufixo no nome para indicar sua filiação, profissão do clã ou o lugar onde havia nascido, como Simão Filho de Alfeu, Judas Iscariotes (do hebraico ish Qeryoth, que significa Homem de Queriote, hoje a cidade de el-Qaryatein, 20 km ao Sul de Hébron), ou Paulo de Tarso (sistema grego). Cristo significa “aquele em quem se crê”, mas é apenas uma das possíveis pronúncias de palavra grega que era escrita sem vogais. Os árabes também usam esse estilo e, fora de contexto, a palavra “cristo” pode significar “peixe”. Esse jogo de significados foi usado no 1º e 2º séculos como um código cristão (para que não fossem fazer uma visita aos leões). No caso de Cristo, uma citação foi feita pelos próprios romanos quando gravaram “INRI”, abreviação de IESUS NAZARENUS REX IUDÆORUM). Significa Jesus Nazareno Rei dos Judeus. Talvez ele fosse chamado, pelo estilo da época mesmo, de Jesus Nazareno.

6. O Sábado de Aleluia é uma tradição medieval. Nas tradições portuguesa e espanhola, malhar o Judas foi um festival inserido sobre a antiga tradição de fazer oferendas (às vezes também sacrifícios) aos deuses da terra. Uma das festividades dessa data que permaneceram foi a Benção do Fogo, onde a igreja é escurecida e são acesos fogos para anunciar Cristo como a luz do mundo. Essa cerimônia foi montada sobre a tradição celta do Beltane, onde o gado e as pessoas eram purificados pelo fogo. Não é improvável que se oferecessem ao menos bonecos de palha como sacrifício, para serem queimados como “bodes expiatórios”. O Judas, personificação da maldade humana, serviu bem a esse papel. Supostamente, Judas se enforcou no Sábado, após trair Jesus na 6ª feira. As populações católicas adotaram o ritual de, na semana da Paixão de Cristo, fazer simbolicamente o julgamento, condenação e execução de Judas, o traidor. Na tradição popular, antes da “execução” dele, é lido o "testamento" de Judas, que escrito em versos é colocado no bolso do boneco e traz sátiras às pessoas e a fatos locais.

7. A 4ª feira de Cinzas ocorre logo após o Carnaval. Como o Carnaval é uma tradição romana, quando era permitido dizer qualquer coisa a qualquer um (daí melhor usar máscaras, porque o dia acaba), nem é uma festa religiosa. Mas em Roma não era assim: havia a comemoração das Lupercais, onde se faziam homenagens ao deus Pan (sim, um deus celta). As pessoas se vestiam com peles de bode e lobo, às vezes se molhavam em sangue de bode e corriam pelas ruas (com o povo em volta) caçando uns aos outros. No topo de uma montanha, os lupercais se reuniam e era sacrificado um animal. Vários imperadores romanos fizeram questão de realizar eles mesmos esse sacrifício, pois era uma tarefa de prestígio. A Igreja juntou ao fim do Carnaval o ritual de perdão do rei Davi, que se cobriu de cinzas em sinal de humildade, para pedir perdão a Deus por seus pecados. Assim nasceu a Quarta-feira de Cinzas, quando os fiéis têm o rosto sujo de cinzas ao final da missa.

8. Na Europa, os coelhos se reproduzem logo após o degelo do inverno, assim como os pássaros. Logo, ovos e coelhos estão por toda parte assim que a primavera começa (23 de março), marcando um momento de muitas cores e movimento depois do "branco geral" do inverno. Algumas tradições antigas marcam Ostara como o início da primavera e do ano, que foneticamente se relaciona ao germânico Ostern (se lê Oestern) e Eastern. A palavra Páscoa tem origem na Grécia. Antigamente, essa data significava jantar com a aldeia à base de coelhos e ovos de vários pássaros, o que era um grande momento para quem passou fome no inverno. Em muitos países ainda se presenteiam ovos pintados, não necessariamente feitos de chocolate. A tradição de dar festas se uniu aos presentes, aos doces, aos ovos e coelhos, parindo o Coelho de Páscoa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe um comentário!