Jesus lavando os pés de Pedro, pintura de Ford Madox Brown, 1858. Essa cena só aparece no Evangelho de João.
Esse texto é longo, por isso temos uma versão impressa
Os Evangelhos não foram escritos na medida dos acontecimentos que narram; embora seus textos terminem com a Ascensão de Jesus lá pelo ano 30 d.C., a maioria deles data de mais de 70 anos depois. Havendo textos diferentes, pelo menos 4 deles reconhecidamente verdadeiros, acredita-se que eles foram narratuvas orais (os povos semitas preservam essa tradição) redigidas e reformadas até uma “versão final”. Quando isso finalmente aconteceu, em diferentes épocas e lugares, textos diferentes foram produzidos.
As pessoas que nomeiam os Evangelhos de forma alguma estariam vivas quando as versões “finais” ganharam forma. Os textos também nunca carregaram assinaturas, de modo que sua atribuição a este ou aquele seguidor de Jesus é uma tradição da Igreja. Mateus Levi, o ex-publicano, e João, o discípulo amado, se tiveram algo a ver com os textos, seriam os únicos que andaram com Jesus. João Marcos e Lucas eram seguidores de Paulo, que fizeram parte dos primeiros grupos Cristãos.
Há várias formas de repartir os Evangelhos para estudá-los. Estou usando uma aqui provinda do trabalho de Edward Robinson em 1834, que é bastante aceita. Dos 157 eventos que os Evangelhos associam a Jesus,
- 13 aparecem nos 4 Evangelhos;
- 74 só aparecem em um dos Evangelhos;
- cada evento aparece, em média, em 2 evangelhos.
A tabela acima mostra uma bem conhecida diferença entre os Evangelhos. Primeiro, Marcos tem bem poucas partes únicas - por isso é considerado o manuscrito-fonte, de onde os demais coletaram suas informações. Segundo, João compartilha muito pouco com os outros Evangelhos. Quase tudo o que João compartilha faz parte dos “pilares”, isto é, eventos que aparecem em todos os textos. Transcrevo-os abaixo:
1. Ministério de João Batista; 2. Batismo de Jesus; 3. Primeiros discípulos de Jesus; 4. Alimentando os 5000; 5. Domingo de Ramos; 6. Unção de Jesus; 7. Última Ceia; 8. Beijo de Judas; 9. Prisão de Jesus; 10. Interrogatório pelo Sinédrio; 11. Carregando a cruz; 12. Crucificação; 13. Achado do túmulo vazio
Estes, pode-se dizer, foram eventos sobre Jesus altamente difundidos entre as Igrejas, antes que os Evangelhos ganhassem forma escrita. E eles só se tornaram "texto" depois que Paulo produziu suas famosas cartas. Ou, numa outra visão, esses "pilares" foram aquilo que a “comunidade joanina” absorveu antes de se separar das demais. "Comunidade joanina" é o nome usado para diferenciar os Cristãos que produziram o texto de João daqueles que produziram Mateus, por exemplo.
Em João, os “pilares” formam quase metade do texto. A outra metade é composta por eventos que nenhum outro Evangelho cita. Todos os Evangelhos têm seus eventos únicos, que vão de 4% (Marcos) a 30% (Lucas, que afirma ter feito uma pesquisa antes de escrever). Só em João, supostamente o discípulo que acompanhou Jesus muito mais que os outros, isso chega a 50%. Por isso, os estudiosos do Novo Testamento há muito repartiram os Evangelhos entre aqueles que são Sinóticos - ou unidos - e João. O Evangelho de João não apresenta vários eventos que aparecem em todos os Sinóticos como a Tentação de Jesus, a rejeição de Jesus na Galiléia, as curas e exorcismos, o chamado dos Doze, as parábolas, a morte de João Batista, a confissão de Pedro, a transfiguração, Jesus predizendo Sua morte, as falas aos Fariseus e a oração no Getsêmani.
O MUNDO DE JOÃO
O Evangelho de João não pretende ser uma narrativa de eventos, mas um ensino sobre o significado de Jesus. Enquanto os Sinóticos gastam 10-11 versos/evento, João gasta 26 versos/evento: ele se detém mais na discussão dos eventos do que em citar eles. Mas, ao invés de produzir um texto enorme, isso gerou um texto pouco maior que o de Marcos. O que quer dizer que João simplesmente não citou muitas das coisas que outros como Marcos citaram. O “discípulo amado”, como ele mesmo se denomina, parece ter tido um contato pequeno com a comunidade religiosa que produziu Marcos e daí Mateus e Lucas, na virada dos sécs. 1 e 2. Esse contato pequeno fez os estudiosos pensarem numa comunidade isolada de Cristãos. Dela, aparentemente, só derivou o texto de João, enquanto os demais derivaram de grupos mais aparentados entre si e com os que andavam com Paulo.
O problema é que são fracos os vestígios extra-evangélicos da comunidade de João. Os Sinóticos, como foram compostos por companheiros de Paulo, carregam nomes e citações comuns às cartas de Paulo. A ceia descrita por Marcos é muito semelhante à descrita por Paulo; mas é bem diferente da descrita por João (onde na verdade não há uma descrição da ceia à mesa):
E, comendo eles, tomou Jesus pão e, abençoando-o, o partiu e deu-lho, e disse: "Tomai, comei, isto é o meu corpo”. E, tomando o cálice, e dando graças, deu-lho; e todos beberam dele. E disse-lhes: “Isto é o meu sangue, o sangue do novo testamento, que por muitos é derramado. Em verdade vos digo que não beberei mais do fruto da vide, até àquele dia em que o beber, novo, no reino de Deus”. (Marcos 14.22-25)
Porque eu recebi do Senhor o que também vos ensinei: que o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou o pão e, tendo dado graças, o partiu e disse: “Tomai, comei; isto é o meu corpo que é partido por vós; fazei isto em memória de mim. Semelhantemente também, depois de cear, tomou o cálice, dizendo: Este cálice é o novo testamento no meu sangue; fazei isto, todas as vezes que beberdes, em memória de mim”. (1ª Coríntios 11.23-25)
Jesus, sabendo que o Pai tinha depositado nas suas mãos todas as coisas, e que havia saído de Deus e ia para Deus, levantou-se da ceia, tirou as vestes, e, tomando uma toalha, cingiu-se. Depois deitou água numa bacia, e começou a lavar os pés aos discípulos, e a enxugar-lhos com a toalha com que estava cingido. (João 13.3-5)
Expressões comuns nos Sinóticos ainda aparecem em textos de evangelismo de séc. 2 como a Didache (que transcreve grandes partes de Mateus). Abaixo cito algumas:
Cap 1. 3. Primeiro, amarás ao Deus que te fez; segundo, ame ao teu vizinho como a ti mesmo, e não faça ao outro o que não queres que seja feito a ti. 4. E destas declarações o ensino é este: 5. Abençoe aqueles que te amaldiçoam, e ore pelos seus inimigos, e jejue por aqueles que te perseguem.
Cap 2. 2. Não desejarás as coisas de teu vizinho, não jurarás, não darás falso testemunho, não falarás mal, não sustentarás nenhum rancor. 3. Não serás dúbio de mente nem dobre de língua, pois ser dobre de língua é uma armadilha de morte.
Cap 3. 2. Não sejas propenso a raiva, pois a raiva conduz ao assassínio. 3. Nem sejas ciumento, nem briguento, nem de temperamento fervente, pois destes se geram homicídios. 4. Meu filho, não sejas luxurioso. 5. Pois a luxúria leva a fornicação. 6. Nem sejas um falador imundo, nem altivo, pois estes geram adultérios. 7. Meu filho, não sejas um observador de presságios, visto que isto conduz à idolatria. 8. Nem sejas um encantador, nem astrólogo, nem um purificador, nem se deixe levar por estas coisas, pois estas geram idolatria.
Essas repetições de trechos e expressões dos Sinóticos em outros textos, da mesma época e posteriores, dão a idéia de uma comunidade religiosa que lia os Evangelhos (no caso Mateus) e os utilizava como material para suas obras. Mas não é assim com o Evangelho de João. Além do Evangelho, tudo que a Comunidade Joanina parece ter produzido são as cartas de 1ª João, 2ª João e 3ª João. O livro de Apocalipse, assinado por um discípulo-profeta de nome João, mostra grandes diferenças de estilo (a começar pela assinatura) com o Evangelho e as cartas Joaninas. Acredita-se, por isso, que se trate de outro João (o nome, como muitos na Bíblia, era extremamente comum).
SERIA JOÃO UMA FICÇÃO?
Uma teoria de sabor amargo sobre João é que esse Evangelho não veio da pena do apóstolo João e, na verdade, não veio de nenhum observador direto dos fatos. Nem Mateus, nem Marcos, nem Lucas parecem vir de observadores diretos, mas de comunidades religiosas que existiram muito depois deles. Isso colocaria o Evangelho de João em pé de igualdade com todos eles, não fosse o fato de que "João" afirma por escrito ser observador daquilo que narra.
Em João, o final do texto tem um diálogo pós-ressurreição com os discípulos:
Vendo Pedro a este, disse a Jesus: Senhor, e deste que será? Disse-lhe Jesus: Se eu quero que ele fique até que eu venha, que te importa a ti? Segue-me tu. Divulgou-se, pois, entre os irmãos este dito, que aquele discípulo não havia de morrer. Jesus, porém, não lhe disse que não morreria, mas: Se eu quero que ele fique até que eu venha, que te importa a ti? Este é o discípulo que testifica destas coisas e as escreveu; e sabemos que o seu testemunho é verdadeiro. (João 21.21-24)
João era um dos discípulos mais próximos de Jesus, junto com seu irmão Tiago o maior (os Boanerges, filhos de Zebedeu) e Pedro, sócio de pesca desses dois (Lucas 5.10). João acompanhou Jesus desde o início de seu ministério. No Evangelho de João, um dos nomes aparece disfarçado com o título “discípulo amado”. Esse discípulo amado era um dos 12 apóstolos, que estavam à mesa com Jesus na última ceia. O Evangelho de João nunca fala os nomes de João nem seu irmão Tiago, mas fala de Pedro, André e outros apóstolos menos íntimos de Jesus. Infelizmente, Tiago Boanerges foi morto bem antes da escrita do evangelho de João, por isso o discípulo amado não podia ser Tiago (Atos 12.1,2). O discípulo amado era amigo de Pedro e o acompanhava para muitos lados, por isso conclui-se que seu autor era João.
Mas quem tomar as cenas descritas por Marcos (o texto fonte) que nomeiam o apóstolo João como estando em algum lugar ou fazendo alguma coisa, pode se assustar ao ver que o próprio João não cita elas:
Mas quem tomar as cenas descritas por Marcos (o texto fonte) que nomeiam o apóstolo João como estando em algum lugar ou fazendo alguma coisa, pode se assustar ao ver que o próprio João não cita elas:
Embora geralmente apresente diálogos em 1ª pessoa e detalhamentos de cada lugar ou pessoa, João nunca diz estar junto de Pedro e Tiago, como Marcos cita tantas vezes. Isso faz muitos estudiosos questionar se o autor do Evangelho de fato poderia ser João. Algumas das passagens de Marcos são especialmente significativas, como Jesus descrevendo o final dos tempos e sua oração no Getsêmani.
Quando tomamos os poucos pontos em comum de João e Marcos, também não encontramos algo tão diferente. Esses pontos em comum são bem mais frequentes na Paixão de Cristo (eventos entre Sua prisão e morte) do que noutras partes dos Evangelhos, fazendo supor que esse foi o evento principal das comunidades de onde um e outro Evangelho vieram. Seria diferente se fossem relatos de acompanhantes de Jesus, capazes de descrever com duplicidade os detalhes do Seu ministério, por exemplo. Para o texto de Marcos, vir de uma comunidade religiosa não é problema - João Marcos, o suposto autor, se juntou ao grupo de Paulo numa de suas viagens. Mas para João, que reivindica ser observador ocular dos fatos - e são fatos diferentes dos outros textos - isso é problemático.
Boa parte dos eventos compartilhados pelos Evangelhos de João e de Marcos descrevem cenas diferentes, com alguns pontos em comum. As mensagens e falas de Jesus, principalmente, são distintas. Nem o estilo com que Jesus fala é semelhante. Uma vez que João descreve repetitivamente um “discípulo amado” que não é citado por Marcos nas mesmas cenas, vários estudiosos chegaram a sugerir o que chamaram de “efeito Forrest Gump”.
Para quem não viu o célebre filme, Forrest Gump é um homem bem intencionado, mas com QI abaixo da média, que a incrível sorte faz participar dos principais eventos na história dos EUA. Por exemplo, ele ensina o jovem Elvis Presley a dançar. Mas o fantástico Forrest Gump é uma ficção; ele não existe em nenhum livro de história, porque jamais alguém citou ele.
O “efeito Forrest Gump” seria igualmente um escritor bem intencionado do séc. 2 ter inventado o “discípulo amado”, colocando-o como observador em 1ª mão da vida de Jesus, uma testemunha ocular, mais confiável que todas as outras. Para que o “discípulo amado” não fosse confrontado, seu nome não poderia ser conhecido. Em algum momento mais tarde, as pessoas, e não o escritor, deduziram que esse discípulo seria João. Essa suposição parece boa para muitos eventos, mas não é boa para vários outros.
Lembrando que Mateus e Lucas são textos elaborados por comunidades que juntaram suas tradições orais ao texto de Marcos, temos na verdade dois evangelistas que não concordam entre si. Se Marcos é verdadeiro no que diz, o “discípulo amado” provavelmente é tão fictício quanto Forrest Gump. Se João é verdadeiro, por outro lado, então Marcos tem muitas partes inventadas.
CONCLUSÃO
A solução desse mistério, claro, seria ver o relato de outras testemunhas (independentes). No entanto, a maioria dos Judeus era analfabeta, essa maioria morreu entre os dias de Jesus e a destruição de Jerusalém no ano 70, e própria cidade foi reduzida a escombros. A principal testemunha seria Paulo, que não afirma ver Jesus pregando, mas andou em Jerusalém naqueles dias, como aluno de um dos principais Fariseus, o mestre Gamaliel. Infelizmente, Paulo não é uma testemunha independente: João Marcos e Lucas eram do seu grupo de pregadores.
João é certamente o Evangelho mais amado. O Jesus de João faz promessas grandiosas, reparte o mundo entre bons e maus, fala sobre amor e humildade, explica um novo modo de entender o mundo, promete um lugar junto a Ele. O Jesus de Marcos faz milagres que ninguém mais faz em meio a discípulos que mesmo assim não acreditavam tanto em Seu mestre, que disputavam lugar entre si e eram menos atenciosos que as mulheres.
Jesus, como Deus, tenta permanecer oculto da Ciência, atrás das nuvens.
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TEXTOS FORA DAS ESCRITURAS
Didache - O ensino dos doze apóstolos
Just F, The Four Gospels: some comparative overview charts, catholic-resources.org
Kizziah N, King James Bible Statistics, www.biblebelievers.com
Knowing Jesus - online Bible, https://bible.knowing-jesus.com (site de buscas)
MÉNDEZ, Hugo. Did the Johannine Community Exist?. Journal for the Study of the New Testament, v. 42, n. 3, p. 350-374, 2020.
Quem foi o discípulo amado?, Respostas bíblicas, Perguntas e Respostas à luz da Bíblia, respostas.com.br
VARNER, William. The Didache’s use of the Old and New Testaments. The Master’s Seminary Journal, v. 16, n. 1, p. 127-151, 2005.
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