segunda-feira, 4 de maio de 2020

Joaninos 2 - Estudo do Evangelho de João

Pedro e João correndo para o túmulo de Cristo, pintura de Eugene Burnand, 1898. Essa cena só aparece no Evangelho de João.

Esse texto é longo, por isso temos uma versão impressa.

Essa é a continuação de um estudo sobre os textos joaninos (Evangelho de João, 1ª João, 2ª João e 3ª João), baseado na publicação de MÉNDEZ (2020). Resumidamente, nesse trabalho o autor questiona seriamente a existência de uma Comunidade Joanina, que seria um grupo de religiosos do séc. 2 de onde se originaram os textos joaninos, assim como houve a Comunidade Paulina, de onde se originaram as cartas de Paulo e da qual fizeram parte nomes como João Marcos (supostamente o autor do Evangelho de Marcos) e Lucas, o médico, evangelista e cronista de Paulo.

O QUE SIGNIFICA A NÃO EXISTÊNCIA DE UMA COMUNIDADE JOANINA?

Em primeiro lugar, é bem difícil provar a não existência de algo. O que Hugo Méndez faz, em seu artigo, é desbaratar as provas da existência de tal comunidade. Como ele mesmo lembra, as únicas provas da Comunidade Joanina são seus textos, e nada mais. Ao desqualificar os textos como provas disso, ele apenas desfaz a sugestão de que uma comunidade religiosa com tradição bem diferente das Paulinas tenha existido. Não prova a inexistência dessa comunidade ou de qualquer outra mas, nesse caso, teria sido um grupo de pessoas que não deixou vestígios duradouros, inquestionáveis e encontrados até hoje. Muitas coisas do passado não deixaram.

A inexistência da Comunidade Joanina também não implica a falta de inspiração divina nos textos joaninos. Apenas torna esses textos uma questão religiosa, de fé, e não de história da Igreja. Mas sugere, de fato, que tomemos algum cuidado antes de sair esbravejando a infalibilidade dos textos bíblicos: os autores joaninos são pouco humildes e clamam sua autenticidade pelo contato pessoal com Jesus. Essa última parte, rebate Méndez, provavelmente não é verdade.

No texto anterior, comentei os argumentos de Méndez (bem sólidos, digamos isso) para questionar se o Evangelho de João não seria uma fabricação do séc. 2. Segundo ele, um autor tendo contato parcial com o material de Marcos teria "preenchido as lacunas" com seus próprios pensamentos, criando outros 50% do texto com diálogos de Jesus em 1ª pessoa. Para dar veracidade a sua obra, o autor teria fabricado um observador personagem - o discípulo amado - que, como Forrest Gump, estava sempre no lugar certo e na hora certa para ter as exposições mais íntimas de Jesus. A Igreja logo deduziu que esse personagem seria João (o Evangelho nunca foi assinado), porém Méndez demonstra que essa suposição ora serve, ora não serve. No fim, chegamos em um ponto em que é necessário acreditar em Marcos e seus seguidores (Mateus e Lucas) ou em João, pois uma trama e a outra são inconciliáveis. Não havendo outras fontes nem marcas históricas da época (pois os Judeus e Cristãos foram em grande parte dizimados e Jerusalém foi destruída no ano 70 d.C.), fica essa dúvida insolúvel.

Nesse texto, trago as observações de Méndez sobre as cartas joaninas, que seriam o produto evidente de uma comunidade religiosa baseada no Evangelho de João. Na Antiguidade, era comum autores atribuírem suas obras a personalidades ou autores famosos, para conseguir que elas fossem copiadas e preservadas. Eram comuns (e ainda são comuns) obras atribuídas a Salomão, Enoque, Judas Iscariotes, Pedro, etc. Por isso, Méndez tenta mostrar que os autores das cartas joaninas fizeram o possível para sugerir que seu autor fosse o apóstolo João.

AS CARTAS JOANINAS - 1ª João

1ª João é uma carta relativamente longa, enquanto 2ª João e 3ª João são bastante curtas. Nessas 3 cartas, atribuídas ao apóstolo João, não há uma indicação direta do autor, assim como não há no Evangelho de João. Nas cartas aparece o mesmo padrão de esconder nomes. 1ª João tem em seu início uma passagem que identifica o autor como alguém (sem nome) que seguiu Jesus fisicamente:

O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que temos contemplado, e as nossas mãos tocaram da Palavra da vida; Porque a vida foi manifestada, e nós a vimos, e testificamos dela, e vos anunciamos a vida eterna, que estava com o Pai, e nos foi manifestada); O que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também tenhais comunhão conosco; e a nossa comunhão é com o Pai, e com seu Filho Jesus Cristo. Estas coisas vos escrevemos, para que o vosso gozo se cumpra. (1ª João 1.1-4)

O autor não identificado deveria ser um Judeu. Podemos inferir isso pela expressão “meus filhinhos”:

Meus filhinhos, estas coisas vos escrevo, para que não pequeis; e, se alguém pecar, temos um Advogado para com o Pai, Jesus Cristo, o justo. (1ª João 2.1)

Filhinhos, ninguém vos engane. Quem pratica justiça é justo, assim como ele é justo. (1ª João 3.7)

Meus filhinhos, não amemos de palavra, nem de língua, mas por obra e em verdade. (1ª João 3.18)

Essa expressão foi usada pelo autor de Provérbios e por Paulo, em sua carta à igreja da Galácia (uma região hoje dentro da Turquia, com capital em Ancira; Gálatas 4.19). Era a forma de um sábio ou ancião (“O Ancião”, autor de 2ª e 3ª João?) se dirigir aos seus alunos. Outras referências a Deuteronômio e Isaías confirmam que se tratava de um Judeu.

Há 26 expressões que apenas as cartas Joaninas e o Evangelho de João utilizam, no Novo Testamento. Todas elas aparecem no Evangelho de João ou em 1ª João.


A tabela acima mostra uma comparação da ocorrência dessas expressões entre o Evangelho de João e 1ª João. O texto de 1ª João é menos de 1/8 do texto de João e não é um Evangelho, mas uma carta. Então, mesmo supondo um autor comum, seria esperado que só uma parte das expressões típicas do Evangelho aparecesse na carta. Muito por outro lado, apenas 5 dentre 22 não aparecem; 1 delas é típica da forma como Jesus fala, no Evangelho de João, que também é muito diferente da forma como Jesus fala nos Sinóticos. Como diz Méndez, no Evangelho de João tanto Jesus quanto o narrador têm o mesmo estilo de fala.

O uso das expressões do Evangelho em 1ª João é o que caracteriza a carta como fruto de uma “comunidade religiosa”, a mesma mão que escreveu o Evangelho. Mas é um uso exageradíssimo, quase impossível de ocorrer por acaso ou como resultado de um estilo de escrita. Na verdade, parece algo deliberado e intencional, para fazer com que a carta fosse associada ao Evangelho. Juntando o autor não identificado senão como “alguém que andou com Jesus”, parece que temos alguém se passando por um dos apóstolos.

Mas talvez a seleção de expressões ocorrendo apenas nos textos joaninos seja causadora desse efeito. Se tomarmos todas as expressões de 1ª João, 70 delas são semelhantes ao Evangelho. Isso fica ainda pior com as outras duas cartas: são bem curtas e, juntas, elas têm 28 versos. Mas são 54 expressões em comum com o Evangelho e 74 em comum com 1ª João.

AS OUTRAS CARTAS - 2ª E 3ª JOÃO

As cartas 2ª João e 3ª João têm como autor um certo “O Ancião”. São textos curtos, sem mais explicações sobre esse personagem. Mas as cartas, embora diminutas, são ricas em idéias colocadas dentro do Cristianismo. A tabela abaixo indica a provável origem das idéias em 2ª João e 3ª João:


Os textos de 2ª e 3ª João são tão pequenos que pode-se traçar um mapa detalhado de onde saiu cada idéia apresentada nas cartas. Em termos de idéias, 2ª João é 7/10 originária de 1ª João; 3ª João é 3/8 baseada em 1ª João, com algo mais sendo único de seu texto. Isso sugere que talvez seja um texto mais tardio.

O artigo de Méndez chama a atenção para essas semelhanças do texto de uma e outra carta, indicando que as duas cartas talvez sejam também imitações de um autor tentando forçosamente se passar pelo apóstolo João. De fato, o endereçamento das cartas sugere isso, assim como as palavras e expressões usadas. As idéias descritas, por outro lado, sugerem que uma e outra não tiveram o mesmo autor, e principalmente que esse autor não foi o autor de 1ª João e muito menos o do evangelho de João - e daí a semelhança abusiva de linguagem parece ainda mais proposital.

Se assumirmos que essas conclusões sobre os textos estão corretas - isto é - que João, 1ª, 2ª e 3ª João são obras de autores diferentes intencionalmente tentando se passar pelo apóstolo (supostamente quem escreveu o texto de João), não desacreditamos a inspiração divina de nenhuma das obras. Mas caem por terra as provas - e são as únicas provas - de que uma certa comunidade se reunia, compartilhando um conjunto de idéias propagado pelo Evangelho de João, ao qual se costumou chamar de Comunidade Joanina.

Ao invés de uma comunidade, temos cartas escritas por talvez 3 pessoas do séc. 2 que conheciam o Evangelho de João. A demora em aparecer textos com referência nessas cartas ou mesmo no Evangelho de João testemunha que não houvesse mesmo um grupo significativo de fiéis difundindo tais idéias. Pelo menos não um grupo que se comparasse numericamente às igrejas semeadas por Paulo e seus companheiros.

OS MANUSCRITOS DE QUMRAM

Qumram é hoje um sítio arqueológico na parte noroeste do vale do Mar Morto. Foi uma comunidade de Judeus entre 130 a.C. (período de dominação Grega) e 68 d.C., quando os Romanos destruíram Jerusalém. Acredita-se que tenha pertencido a um grupos de Essênios ou Saduceus, que ali preservaram, dentro de jarros escondidos em cavernas que foram soterradas, muitos escritos da época do 2º Templo. Esse período da história de Jerusalém, quando viveu Jesus, é bastante nebuloso, devido à destruição que os Romanos produziram. Basta dizer que o sagrado Templo, centro do Judaísmo, não sobreviveu.

À primeira vista, os manuscritos encontrados em Qumram pareceram confirmar a comunidade joanina, por empregar uma linguagem cheia de referências a “luz vs. escuridão”, “vindos de baixo vs. vindos de cima”, “de fora desse mundo vs. desse mundo”. Mas, primeiro, a comunidade de Qumram decididamente não era Cristã. Segundo, esse tipo de dualismo era uma referência comum em textos da época do 2º Templo, não só na Bíblia. Nos textos de Qumram, o dualismo está geralmente associado a duas espécies de anjos, o “Príncipe das luzes” e o “Anjo da escuridão”, que criariam o bem e o mal no mundo. Essas criaturas ou espíritos duelariam nos corações dos homens, dando origem a virtudes e pecados. No texto denominado “Lei da Guerra”, os espíritos até ganham o nome de Miguel e Belial.

Em João (João 12.36), mas também em Lucas (Lucas 16.8) e na literatura paulina, aparece a expressão “filhos da luz”. Mas sem a relação com entidades angelicais. Outras expressões típicas dos textos joaninos, como “verdadeira luz”, “luz do mundo”, etc não têm paralelo nos textos de Qumram. O dualismo luz/escuridão também não aparece em João e mesmo o Diabo não é referido com relação a “escuridão”. Talvez a única semelhança entre os textos na verdade seja a citação de um “espírito da verdade”.

Em outras palavras, a sugestão de uma relação entre a comunidade de Qumram e a “Comunidade joanina” não foi muito longe. Embora todos os textos sejam fortemente Judeus e de épocas próximas (na verdade os textos joaninos são do séc. 2), as figuras de linguagem e temas deles não sugerem nenhuma relação.

FINALIZANDO

O trabalho de Méndez traz uma metodologia poderosa de trabalho, e reacende uma dúvida antiga quanto ao Evangelho de João. Mas ele substitui essa dúvida por outra: dentre João e Marcos, quem falou a verdade sobre Jesus? Quanto às cartas joaninas, Méndez é taxativo ao afirmar que elas propositalmente moldadas para sugerir o mesmo autor do Evangelho, o tal “discípulo amado”. Esse personagem se encaixa de forma imperfeita no texto de Marcos. O esforço dos autores joaninos (incluindo o "João" autor do Evangelho) para afirmar sua versão contra tudo que a contrarie, através do argumento de autoridade "eu andei com Jesus" pode inclusive dar a idéia de que, logo no séc. 2, já haviam diferentes tradições Cristãs disputando a ortodoxia entre si.

Se isso for mesmo verdade, então talvez uma parte das idéias Cristãs (e são uma parte significativa) pode ter sido propositalmente introduzida no contexto bíblico. O Jesus joanino não apenas faz milagres; ele é tudo, A Verdade e também A Vida, ele separará os Seus filhos dos maus e os levará para junto de Si. Trata-se de um personagem absolutamente heróico! Mesmo se isso não for o fruto de uma comunidade religiosa, não afasta-se a inspiração divina - e nada poderia afastá-la - mas condena-se, na pior das hipóteses, que as belas e inspiradoras obras joaninas sejam fruto de uns poucos crentes apaixonados.

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MANUSCRITOS DO MAR AINDA VIVO

Bauckham R, The Qumran Community and the Gospel of John, Center for Online Judaic Studies
Kizziah N, King James Bible Statistics, www.biblebelievers.com
Knowing Jesus - online Bible, https://bible.knowing-jesus.com (site de buscas)
MÉNDEZ, Hugo. Did the Johannine Community Exist?. Journal for the Study of the New Testament, v. 42, n. 3, p. 350-374, 2020.
Quem foi o discípulo amado?, Respostas bíblicas, Perguntas e Respostas à luz da Bíblia, respostas.com.br

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