Jó representa todos aqueles que são castigados, sendo inocentes. Acusado pelos amigos e incitado ao mal pela esposa, ele não se afastou de Deus.
Existem muitas estórias sobre o livro de Jó. Algumas são verdades, outras são lendas, outras são invenções. Para quem nunca se situou, recomendo a leitura do livro, antes de mais nada. Ele trata basicamente de uma estória extremamente humana, onde um homem justo é açoitado pela perda de todas as suas posses, sua família e até sua saúde. No começo de tudo, entretanto, o narrador conta o final: Deus e Satanás discutem sobre os motivos da fidelidade humana ao Senhor. Satanás argumenta seguidamente que as pessoas somente são fiéis porque Deus lhes abençoa. Deus coloca como contra-exemplo seu servo Jó, e então Satanás aposta que se Jó fosse castigado, abandonaria a Deus. Essa passagem é fundamental, pois a estória não seria em nada emocionante se não soubéssemos de Deus sendo injusto com Jó! Feita a travessura, Jó é visitado por amigos ricos e poderosos de outrora, estes começam a debater entre si e com Jó o motivo de suas desventuras. Após muitos lamentos e discussões, o próprio Deus aparece, repreende a todos e restaura a fartura de Jó.
A estória é muito humana justamente porque a pobreza é algo muito fácil de se entender... Perder algo, então? Ser culpabilizado pelo próprio infortúnio? Achar-se inocente e não merecedor de uma desgraça? Poucos seres humanos não se reconheceriam aí.
ANTIGÜIDADE
A principal lenda que ronda esse livro é tratar-se do mais antigo da Bíblia. Uma parte disso é verdade, mas apenas uma parte. O livro é escrito assim: cap. 1-2 (prosa); cap. 3-40 (poesia); cap. 41-42 (prosa). Os capítulos em prosa provavelmente são do tempo de Abraão (~2000 a.C.). Já os capítulos em poesia datam do período do Exílio babilônico (600-550 a.C.).
A lenda do justo que sofre aparece em muitos textos antigos do Egito, e provavelmente era parte do folclore popular da época (a menos, é claro, que alguém argumente em favor de um bisbilhoteiro espiritual presenciando uma aposta entre Deus e Satanás). Como as línguas se modificam ao longo do tempo (ex. Vossa mercê virando Vosmecê e depois Você), também podemos acompanhar um estilo de escrita... e o estilo do livro de Jó testemunha que se trata do hebraico mais antigo encontrado em toda Bíblia. Além disso, o livro não faz referência a sacerdotes: era o próprio Jó quem oferecia sacrifícios pelos pecados do seu clã, da mesma forma como Abraão se portava. Ele não era apenas um líder, mas um Rabi, com funções de cura, liderança e religião. Se o primeiro sacerdote instituído foi Moisés (~ 1200 a.C.), o livro de Jó certamente é anterior a ele. Para completar, não há referência a ouro e prata como riquezas. Eis como o livro descreve a fartura de Jó:
E nasceram-lhe sete filhos e três filhas. E o seu gado era de sete mil ovelhas, três mil camelos, quinhentas juntas de bois e quinhentas jumentas; eram também muitíssimos os servos a seu serviço, de maneira que este homem era maior do que todos os do oriente. (Jó 1:2-3)
Comparemos isso com a descrição da fartura de Abraão, feita por seu emissário que foi até o pastor (ou Rabi) Labão na terra de Ur:
Eu sou o servo de Abraão. E o SENHOR abençoou muito o meu senhor, de maneira que foi engrandecido, e deu-lhe ovelhas e vacas, e prata e ouro, e servos e servas, e camelos e jumentos. E Sara, a mulher do meu senhor, deu à luz um filho a meu senhor depois da sua velhice, e ele deu-lhe tudo quanto tem. (Gênesis 24:34-36)
O servo de Abraão já menciona prata e ouro como riquezas! Dessa forma, a parte em prosa de Jó é bem mais antiga que o próprio livro de Gênesis (escrito por Moisés, se bem que contando fatos de ~8000 a.C.) e que Abraão.
A mesma antigüidade não se aplica à parte em poesia. De certa forma, essa parte representa até uma discordância de personalidade quanto ao protagonista Jó. Enquanto a prosa antiga fala de um justo que sofre calado, a poesia dá voz a Jó para chorar perante Deus e implorar pela própria morte, assim como para questioná-lo pelo que fez, e para debater ferrenhamente com seus amigos. Esse "outro Jó" não se atém mais às funções de líder ou rabi, mas trata de analisar e esmiuçar a própria situação, coisa que só se tornou comum no Velho Testamento a partir do contato com o modo Babilônico de pensar. Essa é a forma como Jeremias escreveu seu texto.
Além disso, o texto em poesia faz diversas referências aos Salmos, indicando que é posterior ao reinado de Salomão (970-930 a.C.), quando os Salmos começaram a ser ensinados no Templo:
Lembra-te de que a minha vida é como o vento; os meus olhos não tornarão a ver o bem. Os olhos dos que agora me vêem não me verão mais; os teus olhos estarão sobre mim, porém não serei mais. (Jó 7:7-8) ... Que é o homem, para que lhe dês importância e atenção, para que o examines a cada manhã e o proves a cada instante? (Jó 7:17-18)
Que é o homem, para que com ele te importes? E o filho do homem, para que com ele te preocupes? (Salmos 8:4)
Como uma correnteza, tu arrastas os homens; são breves como o sono; são como a relva que brota ao amanhecer; germina e brota pela manhã, mas, à tarde, murcha e seca. (Salmos 90:5-6)
Senhor, que é o homem para que te importes com ele, ou o filho do homem para que por ele te interesses? O homem é como um sopro; seus dias são como uma sombra passageira. (Salmos 144:3-4)
Um fato importante é que Jó não habitava em Israel. Esse dado é muito relevante pois faz supor que, se ele fosse um estrangeiro, não seria agrupado como "povo de Deus" pelos israelitas. No entanto, se Israel ainda não existisse... isso seria muito mais aceitável. Lembremos que Abraão também não era natural da terra de Hebron, mas de Ur dos caldeus. Ur era uma cidade da Suméria, entre os rios Tigre e Eufrates. Acredita-se que o mesmo se dê com Uz, pois é mencionado de Jó que "este homem era maior do que todos os do oriente" (Jó 1:3). Como houve forte influência do Egito sobre a formação de Israel, mas no entanto há muito pouco da cultura egípcia na cultura israelita, acredita-se que o estabelecimento de Israel deve muito aos Rabis vindos da Suméria, e talvez isso justifique a boa fixação dos israelitas quando foram deportados para as terras da Babilônia, a ponto de serem atraídos por seus deuses e cultos.
Ao sul de Israel, perto do golfo de Aqaba, ficava o reino de Edom. Dentro desse reino ficava a cidade-estado de Temã, de onde vinha um dos Rabis amigos de Jó, chamado Elifaz. Edom foi o reino fundado por Esaú, irmão de Jacó, e dessa forma aparentado com Israel. Além disso, no Gênesis Temã é nome do filho de Elifaz, o filho mais velho de Esaú (Gn 36.15). Quando a parte mais antiga do livro de Jó foi escrita, é provável que Esaú ainda nem tivesse andado por Edom, mas o reino se estruturou e, no tempo do Exílio babilônico, é possível que tanto o nome das cidades quanto os personagens da lenda tenham se baseado no Gênesis. "Elifaz, filho de Temã, de Edom" (no livro de Jó) talvez seja uma brincadeira com "Temã, filho de Elifaz, de Edom" (no Gênesis), invocando o personagem Elifaz como o mais "falador" dos rabis. Provavelmente era uma característica dos edomitas, que certamente acompanharam os hebreus em sua deportação para a Babilônia. De qualquer forma, esse Rabi chegava a Jó - de Uz - como um representante do reino do sul, para perguntar-lhe "pode alguém ser justo perante Deus?"
O segundo amigo de Jó, Bildade, era um rabi de terras mais próximas. Ele é apresentado como Bildade, de Suá. Suá era o nome de um filho de Abraão nascido de Quetura, mulher que ele desposou após a morte de Sara (Gn 25.1-2). O historiador romano Josephus de Alexandria deixou sua opinião de que Abraão havia dispersado os filhos pelo mundo, para que ficassem longe do reino de Isaque. De fato, no norte da Masopotâmia, nas terras da Síria, há registros de um reino chamado Sûchu (lê-se Suá), anterior ao império Hitita. Esse reino estendia-se a leste de Israel seguindo a planície fértil até a cabeceira do rio Eufrates. Dessa forma, Bildade provavelmente vinha de uma terra que os hebreus conheciam muito bem, da qual já haviam sido aliados e inimigos. Talvez por isso a mensagem de Bildade fosse "tem certeza de que você não carrega nenhuma culpa pelo que lhe aconteceu? Talvez um filho, ou filha...". Ele vinha acusar Jó pelos pecados de outros, já mortos!
O terceiro amigo de Jó era Zofar, de Naamat. Simplesmente não há qualquer indício de onde ficasse a cidade de Naamat. Alguns estudiosos crêem que se trate de uma cidade dentro do reino de Uz, portanto próxima a Jó, ou nas margens do deserto da Arábia. A única referência completa sobre o nome Naamat aparece no livro de Jasher, um apócrifo que conta a história dos clãs hebreus. Segundo o livro de Jasher, Naamat era o nome de um dos filhos de Buz, filho de Nahor, irmão de Abraão. Talvez se trate, assim, de uma tribo do leste aparentada com os hebreus (Jasher 22.21). Essa influência das tribos do leste se confirma com a repentina aparição de Eliú (o 4º mosqueteiro do trio), filho de Baraquel, de Buz (a tribo de Buz?). Eliú seria assim um parente próximo de Zofar. Esse personagem misterioso (que desaparece da mesma forma repentina) surge para declarar que Deus cuida zelosamente de sua Criação e, portanto, age premeditando o futuro.
O livro de Jó apresenta, portanto, a reunião de diversos ancestrais dos hebreus (daí a forte hipótese de que o livro seja contemporâneo de Abrão) em algum ponto do reino de Uz onde Jó (quem sabe mais um suposto patriarca) perdera suas terras, bens, família e a própria saúde. O livro apresenta uma fusão da antiga lenda do justo sofredor com personagens poéticos provavelmente simbólicos dos povos com os quais os hebreus conviveram no Exílio babilônico. Contada na íntegra, a estória assume a função de um ensino de valores e da descendência hebraica, ressaltando sobretudo o valor da discussão como forma de ensino entre os hebreus.
Em verdade, em verdade, podeis ler também
A linhagem hebraica
Começo de conversa - rodapé
Ivo Storniolo, Como ler o livro de Jó - o desafio da verdadeira religião, Ed. Paulus, 2008
Shuah - wikipedia
The Oldest Book - The Scroll Eaters
Teman (Edom) - wikipedia
A mesma antigüidade não se aplica à parte em poesia. De certa forma, essa parte representa até uma discordância de personalidade quanto ao protagonista Jó. Enquanto a prosa antiga fala de um justo que sofre calado, a poesia dá voz a Jó para chorar perante Deus e implorar pela própria morte, assim como para questioná-lo pelo que fez, e para debater ferrenhamente com seus amigos. Esse "outro Jó" não se atém mais às funções de líder ou rabi, mas trata de analisar e esmiuçar a própria situação, coisa que só se tornou comum no Velho Testamento a partir do contato com o modo Babilônico de pensar. Essa é a forma como Jeremias escreveu seu texto.
Além disso, o texto em poesia faz diversas referências aos Salmos, indicando que é posterior ao reinado de Salomão (970-930 a.C.), quando os Salmos começaram a ser ensinados no Templo:
Lembra-te de que a minha vida é como o vento; os meus olhos não tornarão a ver o bem. Os olhos dos que agora me vêem não me verão mais; os teus olhos estarão sobre mim, porém não serei mais. (Jó 7:7-8) ... Que é o homem, para que lhe dês importância e atenção, para que o examines a cada manhã e o proves a cada instante? (Jó 7:17-18)
Que é o homem, para que com ele te importes? E o filho do homem, para que com ele te preocupes? (Salmos 8:4)
Como uma correnteza, tu arrastas os homens; são breves como o sono; são como a relva que brota ao amanhecer; germina e brota pela manhã, mas, à tarde, murcha e seca. (Salmos 90:5-6)
Senhor, que é o homem para que te importes com ele, ou o filho do homem para que por ele te interesses? O homem é como um sopro; seus dias são como uma sombra passageira. (Salmos 144:3-4)
GEOGRAFIA
Um fato importante é que Jó não habitava em Israel. Esse dado é muito relevante pois faz supor que, se ele fosse um estrangeiro, não seria agrupado como "povo de Deus" pelos israelitas. No entanto, se Israel ainda não existisse... isso seria muito mais aceitável. Lembremos que Abraão também não era natural da terra de Hebron, mas de Ur dos caldeus. Ur era uma cidade da Suméria, entre os rios Tigre e Eufrates. Acredita-se que o mesmo se dê com Uz, pois é mencionado de Jó que "este homem era maior do que todos os do oriente" (Jó 1:3). Como houve forte influência do Egito sobre a formação de Israel, mas no entanto há muito pouco da cultura egípcia na cultura israelita, acredita-se que o estabelecimento de Israel deve muito aos Rabis vindos da Suméria, e talvez isso justifique a boa fixação dos israelitas quando foram deportados para as terras da Babilônia, a ponto de serem atraídos por seus deuses e cultos.
Ao sul de Israel, perto do golfo de Aqaba, ficava o reino de Edom. Dentro desse reino ficava a cidade-estado de Temã, de onde vinha um dos Rabis amigos de Jó, chamado Elifaz. Edom foi o reino fundado por Esaú, irmão de Jacó, e dessa forma aparentado com Israel. Além disso, no Gênesis Temã é nome do filho de Elifaz, o filho mais velho de Esaú (Gn 36.15). Quando a parte mais antiga do livro de Jó foi escrita, é provável que Esaú ainda nem tivesse andado por Edom, mas o reino se estruturou e, no tempo do Exílio babilônico, é possível que tanto o nome das cidades quanto os personagens da lenda tenham se baseado no Gênesis. "Elifaz, filho de Temã, de Edom" (no livro de Jó) talvez seja uma brincadeira com "Temã, filho de Elifaz, de Edom" (no Gênesis), invocando o personagem Elifaz como o mais "falador" dos rabis. Provavelmente era uma característica dos edomitas, que certamente acompanharam os hebreus em sua deportação para a Babilônia. De qualquer forma, esse Rabi chegava a Jó - de Uz - como um representante do reino do sul, para perguntar-lhe "pode alguém ser justo perante Deus?"
O segundo amigo de Jó, Bildade, era um rabi de terras mais próximas. Ele é apresentado como Bildade, de Suá. Suá era o nome de um filho de Abraão nascido de Quetura, mulher que ele desposou após a morte de Sara (Gn 25.1-2). O historiador romano Josephus de Alexandria deixou sua opinião de que Abraão havia dispersado os filhos pelo mundo, para que ficassem longe do reino de Isaque. De fato, no norte da Masopotâmia, nas terras da Síria, há registros de um reino chamado Sûchu (lê-se Suá), anterior ao império Hitita. Esse reino estendia-se a leste de Israel seguindo a planície fértil até a cabeceira do rio Eufrates. Dessa forma, Bildade provavelmente vinha de uma terra que os hebreus conheciam muito bem, da qual já haviam sido aliados e inimigos. Talvez por isso a mensagem de Bildade fosse "tem certeza de que você não carrega nenhuma culpa pelo que lhe aconteceu? Talvez um filho, ou filha...". Ele vinha acusar Jó pelos pecados de outros, já mortos!
O terceiro amigo de Jó era Zofar, de Naamat. Simplesmente não há qualquer indício de onde ficasse a cidade de Naamat. Alguns estudiosos crêem que se trate de uma cidade dentro do reino de Uz, portanto próxima a Jó, ou nas margens do deserto da Arábia. A única referência completa sobre o nome Naamat aparece no livro de Jasher, um apócrifo que conta a história dos clãs hebreus. Segundo o livro de Jasher, Naamat era o nome de um dos filhos de Buz, filho de Nahor, irmão de Abraão. Talvez se trate, assim, de uma tribo do leste aparentada com os hebreus (Jasher 22.21). Essa influência das tribos do leste se confirma com a repentina aparição de Eliú (o 4º mosqueteiro do trio), filho de Baraquel, de Buz (a tribo de Buz?). Eliú seria assim um parente próximo de Zofar. Esse personagem misterioso (que desaparece da mesma forma repentina) surge para declarar que Deus cuida zelosamente de sua Criação e, portanto, age premeditando o futuro.
O livro de Jó apresenta, portanto, a reunião de diversos ancestrais dos hebreus (daí a forte hipótese de que o livro seja contemporâneo de Abrão) em algum ponto do reino de Uz onde Jó (quem sabe mais um suposto patriarca) perdera suas terras, bens, família e a própria saúde. O livro apresenta uma fusão da antiga lenda do justo sofredor com personagens poéticos provavelmente simbólicos dos povos com os quais os hebreus conviveram no Exílio babilônico. Contada na íntegra, a estória assume a função de um ensino de valores e da descendência hebraica, ressaltando sobretudo o valor da discussão como forma de ensino entre os hebreus.
---------- NÃO DEIXE DE LER A 2ª PARTE !!! ----------
Em verdade, em verdade, podeis ler também
A linhagem hebraica
Começo de conversa - rodapé
Ivo Storniolo, Como ler o livro de Jó - o desafio da verdadeira religião, Ed. Paulus, 2008
Shuah - wikipedia
The Oldest Book - The Scroll Eaters
Teman (Edom) - wikipedia
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