sábado, 21 de julho de 2012

Bíblia - relendo o que outros reescreveram



Seguimos aqui prestando a sincera homenagem, a formal ovação, aquela firula toda para Paulo, o Brabo. E como arautos, fazemos a formalidade de dar um jeitinho, de remexer sua obra para que seja cabível, legível, bela e provavelmente ilegível. Certamente o que você lerá não será o que foi escrito - guarde isso.


De todas as lendas que sustentam os fundamentalismos cristãos, talvez nenhuma seja mais infundada – e por certo nenhuma é mais útil – do que a ideia de que há um único modo de se ler e de se entender a Bíblia, um modo de interpretação que permaneceu inalterado ao longo dos milênios e que corre nos nossos dias o risco de ser miseravelmente derrubado pelas licenciosidades interpretativas e morais dos liberais.

Reza a lenda que esse método fechado de interpretação – e usam-se para descrever sua autoridade palavras fortes como “literal” e “inerrante” – é eterno, fora do tempo e inteiramente impermeável às variações da história. Desse modo, a lenda exige que Lutero interpretou a tradição bíblica da mesma forma que Paulo, que a interpretou da mesma forma que Jesus, que a interpretou da mesma forma que Esdras, que a interpretou da mesma forma que Isaías, que a interpretou da mesma forma que Davi, que a interpretou da mesma forma que Moisés, que a interpretou da mesma forma que Abraão.

A ortodoxia não pode existir sem a lenda de uma exegese fora do tempo, porque quando diz que a Bíblia é a inerrante Palavra de Deus, o fundamentalista não está dizendo apenas que o texto bíblico é eterno e imutável, mas também, e em especial, a sua interpretação. Para que a teoria do fundamentalismo faça sentido, a história e suas novidades devem ser incapazes de lançar novas luzes sobre a letra da revelação. Qualquer interpretação da Bíblia a partir do presente deve ser encarada como tentação, e a única interpretação autorizada deve necessariamente ter sido definida não só antes de nós, mas desde sempre.

O fundamentalista não é quem lê a Bíblia literalmente, mas quem não consegue enxergar qualquer diferença entre a Escritura e a sua compreensão pessoal dela. Na prática, trata-se de alguém apaixonado não pela inerrância de um texto sagrado, mas pela inerrância da sua própria interpretação. E, como não quer ter de reconhecer que sua leitura é tão seletiva e historicamente condicionada quanto qualquer outra, o fundamentalista precisa batalhar ostensivamente para que não apenas o texto, mas também sua interpretação autorizada se mantenham inalterados diante de novos contextos.

O problema com essa noção de uma interpretação bíblica inerrante e imutável é que ela é espetacularmente negada não só pela história, mas pela própria narrativa bíblica (escrita por muitas mãos e ao longo de só 900 anos). O que impulsiona o drama da revelação na Bíblia são precisamente os modos através dos quais as novas perspectivas sociais e históricas constrangem os israelitas e seus herdeiros a retrabalhar e reinterpretar um corpo antigo e mais ou menos fixo de tradições, de modo a encontrar nele novos significados e novos desafios à luz desconcertante do presente. Nesse sentido, a Bíblia não é o registro da realidade eterna dos feitos divinos, mas a história das reformulações da imagem divina que os homens se viram forçados a fazer diante da realidade cambiante dos fatos. Não é a descrição de um Deus imutável, mas a descrição progressiva e cumulativa das feições divinas que os homens creram que o próprio Deus ia revelando a partir dos indícios da história.

É a própria Bíblia, portanto, que nos ensina que novas circunstâncias não apenas permitem, mas requerem novas interpretações de um mesmo corpo de tradições. Um ponto que o livro de Tiago defende é que as escrituras, como texto, nada são: seu valor consiste justamente na modificação que proporcionam em pessoas reais, frágeis, com problemas e pecados particulares. Os cronistas, os salmistas, os profetas, Jesus e Paulo (bem como os que foram registrando as suas histórias) – todos esses propuseram interpretações das tradições se distanciaram da ortodoxia da sua época (Jesus, em especial, conseguiu inimigos por isso). E, muito declaradamente, não o fizeram movidos por outra coisa que não a instrução divina sobre uma perspectiva especial que sua posição na linha do tempo lhe concedia. O testemunho coletivo dessas vozes é que não se deve ignorar as revoluções da história para aproximar-se efetivamente da divina herança.

Alguns eventos alteraram fortemente a estrutura social dos israelitas, culminando numa mudança de interpretação das tradições judaico-cristãs, enquanto o cânone da Bíblia estava sendo composto. Seguem alguns exemplos disso.

DOIS POVOS, UM SÓ REINO

Por volta de 1000 a.C, os governos tribais unidos por juízes viram-se ameaçados pelos reinos de Moabe, Edom e Amon nas proximidades, assim como os Assírios mais longe dali. Isso requereu uma monarquia unificada também entre os judeus, que por outro lado só era possível  com um local centralizado de adoração e de um sacerdócio especializado. O pedido feito a Samuel (1Sm 8) colocaria Saul (das tribos do Norte) no poder, quando as tribos mais prósperas do Norte (Israel) mesmo defendiam um governo descentralizado. Depois dos desvios de Saul, Samuel levou ao poder Davi, das tribos dos Sul (Samaria). Os levitas que se mantinham-se fiéis às tradições [um tanto fetichistas] do Norte foram expulsos por Salomão (1Rs 2.26-27), mas então o escritor samaritano de Crônicas simplesmente se esquece da existência do reino do Norte, omitindo por exemplo a passagem anterior.

A QUEDA DE ISRAEL

Em 721 a.C. os assírios destruíram o reino do Norte e, logo após, o reino do Sul. Os assirios usavam o caldeamento (mistura) com os povos conquistados, removendo-os de seus lugares sagrados (2Rs 17:6-24). As tribos de Israel desapareceram com o cativeiro assirio e não se tem noticias sobre elas, mas os profetas Naum e Jeremias registraram a promessa de restauração (Na 2.2, Jr 30.10 e 31.1-9).

Para habitar a região Sul trouxeram povos de outros lugares, chamados samaritanos (2Rs 17.24), o que explica a dificuldade de relacionamento entre judeus e samaritanos no Novo Testamento. Os Assírios consideravam deuses locais associados aos lugares (o que os pós-romanos chamariam de deuses pagãos), assim fizeram os samaritanos seguirem tradições judaicas (2Rs 17:27 e Jo 4). Evangelizados por Filipe, muitos samaritanos até aceitaram a Cristo (At 8). Em 587 a.C. Nabucodonososr ascendeu aos trono de Nínive, uniu os reinos assírios em Babilônia e capturou o reino do Sul, com povos recém chegados e tudo. As antigas tradições fossem reinterpretadas como favorecendo a tribo de Judá, berço do reino sobrevivente. 

Porém as expectativas de um “trono eterno” para a linhagem de Davi foram demolidas juntamente com o Templo. Os exilados de Judá tiveram de rever suas noções estabelecidas sobre misericórdia, fidelidade e soberania divinas. Longe da pátria e sem o Templo para oferecer os sacrifícios prescritos pela Lei, concluíram que deviam re-interpretar a letra do Pentateuco. Observaram assim que uma rígida religiosidade exterior não era o que Deus valorizava ou requeria, mas sim uma postura de misericórdia e um coração contrito. Nessa releitura das antigas tradições consiste a proclamação dos profetas.

ALEXANDRE, O GREGO

Por volta de 330 a.C., Alexandre o Grande, também chamado Alexandre Magno ou ainda Alexandre da Macedônia empreendeu uma campanha militar que anexou ao mundo grego boa parte do globo. Seu reino ia então desde a África até a Europa e até a Índia. Nessa terras, a cultura grega floresceu e foi amplamente incorporada pelos povos. Os judeus no exílio tiveram de aprender a manter a identidade nacional/religiosa diante da competição das culturas em que estavam inseridos, e foram nisso notavelmente bem sucedidos. Porém a cultura grega mostrou-se eloquente e cativante demais para ser evitada indefinidamente.

Logo as idéias dos gregos estavam influenciando o modo como os judeus liam seus próprios textos e pesavam sua própria herança. Essa influência acabou remodelando a tradição de muitas formas. Em primeiro lugar, as escrituras hebraicas foram traduzidas – isto é, reinterpretada, visto que traduzir é interpretar – para a língua grega. Quando citam a Bíblia hebraica, os autores do Novo Testamento (que escreviam em grego) fazem uso dessas versões e das interpretações que elas trazem embutidas em si. Segundo, muitos intérpretes judeus (dos quais o mais ilustre foi Fílon de Alexandria) procuraram conciliar as tradições judaicas com a filosofia grega, aplicando ao mesmo tempo os métodos de interpretação dos pensadores gregos aos seus próprios textos sagrados.

Finalmente, a ênfase grega no indivíduo parece ter influenciado diretamente a composição e a teologia da terceira porção da Bíblia hebraica, em que a devoção nacional e coletiva (que prevalecia nos textos mais antigos) é substituída pela relação pessoal do adorador para com o seu Deus.

O NAZARENO

Levando a um novo extremo a herança subversiva dos profetas que o precederam, Jesus propôs uma radical reinterpretação das tradições do Antigo Testamento. Para Jesus, a vitória do Deus de Israel sobre seus competidores nada tinha dos êxitos políticos, econômicos e militares que os judeus vinham sonhando para o seu futuro. O iminente reino de Deus deveria representar uma reformulação intransigente e universal do espírito humano, uma revolução de beleza, cavalheirismo e graça que evitaria todas as armadilhas dos sistemas de poder e de manipulação que governam este mundo.

Frases como “vocês ouviram o que foi dito… eu porém digo a vocês…” e “não vim anular, mas cumprir” apenas atestam que era de modo muito consciente que Jesus vinha propor a completa reformulação da posição sobre Deus, justiça, nação, valor e identidade que prevalecia na ortodoxia dos seus dias. A vida frugal, o ensino subversivo e a morte prematura de Jesus levaram os primeiros cristãos a reavaliar por completo o que pensavam que o Antigo Testamento dizia sobre a pessoa e a obra do Messias – bem como sobre todos os sonhos de Deus para a humanidade.

PAULO, O TARSEU

Sendo homem de exemplar estudo nas ciências gregas e judaicas, Paulo entendeu mais e antes do que qualquer outro que a singularidade da pessoa e da obra de Jesus representavam um convite à transformação não apenas da nação judaica, mas do mundo inteiro. Ele dedicou a vida à dupla tarefa de divulgar a boa nova império adentro e de vasculhar as tradições bíblicas em busca de confirmação para seu parecer sobre a primazia de Jesus e sobre a natureza de seu próprio ministério. Mesmo tendo conhecido pouco das "maravilhas e obras" que o livro de Atos descreve como tendo acontecido entre os apóstolos designados por Jesus, Paulo foi o primeiro a ousar reinterpretar a Bíblia inteira à luz da pessoa de Jesus, e o que encontrou deixou maravilhadas gerações de leitores.

Além da característica analítica da obra de Paulo (característica grega), sua dedicação a reinterpretar as escrituras judaicas para os povos não-judeus abriu caminhos para que o Cristianismo deixasse de ser uma seita do judaísmo, para assumir uma identidade própria.

A VARIEDADE BÍBLICA

Sendo um texto que se propõe a traduzir para a vida humana os ensinos teóricos e práticos de Deus, a Bíblia contém em si mesma essa variedade do aprendizado humano e, portanto, numerosos precedentes para a reinterpretação da natureza da revelação à luz de novas circunstâncias históricas. Como apontado por Jesus, essas novas leituras não requerem a invalidação da autoridade das antigas tradições; o que pedem é uma nova e generosa reavaliação das implicações dessas tradições para os desafios e particularidades do momento presente.

Tal variedade na exegese intra-bíblica demonstra que a própria Bíblia não ignora que é da condição humana interpretar as tradições que respeitamos de um modo que faça mais sentido dentro de nossa própria perspectiva histórica e conceitual. Ela mesma testemunha que não há um modo único e “literal” de se entender a significância do texto. E mais: quando feito de mente aberta e com um coração compassivo, interpretar-se as antigas tradições à luz das demandas do presente pode nos proporcionar uma visão mais clara a respeito de Deus, não uma visão deturpada ou desrespeitosa.

Se a interpretação dos textos mais antigos que hoje fazem parte da Bíblia não se manteve estática enquanto eram escritos, depois que o cânone estava concluído a história dá testemunho mais do que abundante de que grandes reinterpretações aconteceram. Essas mudanças foram precipitadas por exemplo pela destruição de Jerusalém e de seu Templo, em 70 d.C. (novamente, não havia um local sagrado de culto), a perseguição romana contra os cristãos (os cultos agora eram párias da sociedade), a popularização do entre os gentios (com a conseqüente desvalorização das tradições orais hebraicas), o crescente rancor contra os judeus dentro do movimento (curiosamente eram vistos como rejeitadores de Cristo, ainda que se falasse em povo santo), a legalização do cristianismo em Roma por Constantino I (e agora haviam hierarquias entre os irmãos), os concílios cristãos e o fechamento do cânone (haviam doutores da lei cristã), a cisão entre o cristianismo ocidental e o oriental (política!), a Reforma e Contra-Reforma (divisões quanto à autoridade bíblica), a difusão do pensamento racionalista e materialista e as revoluções científica e industrial (e hoje fala-se em ciência bíblica), o Holocausto dos judeus europeus pela mão dos nazistas (e o que foi feito no Antigo Testamento, era proibido por Jesus e agora santo pelo papa) e a secularização definitiva da cultura no século XX (e fora o clero, então).

A análise dessas e outras instâncias demonstra que o conceito de uma interpretação bíblica isenta e inalterável ao longo dos milênios, até os nossos dias, é na melhor das hipóteses equivocado – e, na pior, mentiroso. Um pouco de atenção nos exemplos acima sugere mesmo que interpretar a Bíblia a partir da nossa perspectiva pode significar principalmente interpretar a Bíblia em nosso próprio favor. Curiosamente, a exegese bíblica pode ser usada como ferramenta arbitrária de dominação, de divisão e de exclusão.

Há porém os casos (como o de Jesus e o dos profetas) em que a reinterpretação das tradições bíblicas à luz do momento presente promove uma noção mais avançada e madura de Deus, resultando numa relação mais saudável entre os homens. O que essas instâncias positivas têm em comum é que o Deus descrito por elas é sempre mais misericordioso e menos tribal, mais inclusivo e menos vingativo do que a figura divina que prevalecia anteriormente. As interpretações que fazem a revelação avançar falam de um Deus cada vez menos obcecado com a justiça e cada vez mais obcecado com o amor. Falam, numa palavra, de um Deus maior: o Deus que já gostamos de chamar de criador mas que preferiu ser chamado de Pai.

E ninguém soube falar dessas coisas com mais intimidade do que Jesus. Como indicado por ele, um Deus maior não é o que requer mais amor para Si, mas o que espera mais amor entre os homens. Um mundo mais justo não é aquele em que Deus pode exercer sem impedimentos o seu poder, mas um mundo em que os homens renunciem em favor uns dos outros à busca insensata pelo poder. Fiel não é quem pede a Deus misericórdia sobre si mesmo, mas quem concede misericórdia aos outros.

Não deve haver dúvida de que a interpretação bíblica não permanece estática, mas é renovada pela perspectiva de cada época (e, num certo sentido, de cada leitor). Cada um permanece livre para reagir como quiser diante dessa notícia. Para alguns, essa contínua reformulação é clara indicação de que cada época acaba criando o seu Deus à sua própria imagem e semelhança. Para outros, é indicação de que o Deus da Bíblia não é o Deus fora do tempo dos filósofos e dos sábios, mas o Deus de Abraão, Isaque e Jacó, o Deus que se revela ainda hoje como fez nos tempos bíblicos: no calor da história.

Talvez, como fazia Jesus, seja necessário renovar continuamente a crença de que a divindade continua trabalhando, não concluiu a sua criação e permanece se des-cobrindo como cada vez maior e mais ambicioso. Na prática, um Deus cada vez mais invisível (sim, Ele sempre falou em fé), mais recatado e mais indistinguível do exercício da mais simples e ardente humanidade.

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