sábado, 28 de fevereiro de 2015

O que Jesus matava



Existe um dilema histórico entre pensar e agir. Paulo como ninguém bateu nesse ponto, com sua célebre disputa interna:

Porque tenho o desejo de fazer o que é bom, mas não consigo realizá-lo. Pois o que faço não é o bem que desejo, mas o mal que não quero fazer, esse eu continuo fazendo. Ora, se faço o que não quero, já não sou eu quem o faz, mas o pecado que habita em mim. (Romanos 7.18-20)

Quem age é alguém diferente de quem deseja. O pensamento deseja um, a ação faz outro. Outros embates são apresentados quanto à natureza da fé. Quem crer e for batizado será salvo (Marcos 16.16) e sem fé é impossível agradar a Deus (Hebreus 11.6), mas fé sem obras até os demônios têm (Tiago 2.19). E muitos são capazes de curar ou fazer maravilhas sem a participação de Deus (Mateus 7.22). Em palavras desconcertantes, eu creio, nem a fé, nem as ações separadamente dão testemunho de alguém ligado ao Senhor. E para complicar mais ainda nossa intuição acerca de quem nos rodeia, somente vemos ações. Ninguém pode escrutinar os pensamentos e a fé do próximo.

Jesus fez bastante demonstrações de que nem mesmo a nossa própria fé é escrutinável. Aos que se julgavam retos e puros, Ele chamava raça de víboras, que dão dízimo até das hortaliças e deixam passar camelos inteiros sem ver (Mateus 23.23-24). Aos que se julgavam escória, ele afirmava que ninguém os condenava (João 8.11). Da viúva mais pobre, Ele afirmava que pagava o maior tesouro (Lucas 21.3-4). Do poderoso César de Roma, Ele afirmava que merecia só os vinténs que cobrava (Mateus 22.21). Das ondas do mar, Ele dizia que podiam sumir repentinamente, que se podia até andar sobre elas. Dos mortos, Ele afirmava que tornavam à vida. Jesus era insistente em demolir certezas sobre a relação dos homens com Deus.

E se não podemos vislumbrar a fé dos demais, nem traduzir suas obras, nem julgar nossa própria fé e obras, como poderemos saber o que Deus pensa de nós? No Antigo Testamento, Moisés apresentou ao povo hebreu um tratado de comportamentos para cumprir com Deus. Não matariam, não trairiam, não fariam ídolos, não fariam ídolos, não fariam ídolos, … a lista apresentada nos livros de Êxodo e Deuteronômio era longa e detalhada, abrangendo formas de construir os tabernáculos, formas de se alimentar, formas de repartir o gado e até de guerrear. Salomão e seus pensadores incluíram recomendações de como se portar à mesa, como escolher amigos, como gerir seus bens, etc. Mas ainda era um enorme tratado comportamental. Quem o seguisse seria abençoado (menos Jó), quem o quebrasse seria arruinado (menos Arão e Davi). Reis como Saul caíram por seus comportamentos que ofendiam ao Senhor, ainda que fosse simplesmente rasgar o manto de um profeta ou contar os soldados (como Davi). Outros eram abençoados apesar das carnificinas que praticavam (como Jeú), pois era necessário que sua linhagem prevalecesse. Em termos estritos, o tratado comportamental do Velho Testamento ainda carregava a suspeita de que alguém podia ser poupado pela fé invisível que tinha; ou condenado, apesar dos bons atos, pela falta de fé que NÃO mostrava.

Jesus arregalou muitos olhares aos dizer que a Lei não bastava em si mesma, que ela não fazia ninguém santo, que o comportamento tinha de ser interno também, e que essa era a razão da Lei, acima dela. O pensamento precisava ser puro, o próximo em cada um deveria ser amado e reconhecido como pessoa, pois só assim se chegaria ao Reino dos céus (Mateus 5). Dessa forma ele desagradou tanto aos que subiam na Lei como em um pedestal, quanto os que esperavam um messias liderando exércitos com licença de Deus para matar até o gado romano. Efetivamente, levar o reino para DENTRO dos homens era subverter toda a capacidade de julgamento do que era certo ou errado. ‘O interior simplesmente não é visível, Jesus!’ talvez gritassem os sábios da época.

Jesus pegava uma lei que justificava apedrejar o filho insubordinado, a adúltera, o idólatra e tantos outros, além de matar até os bois, jumentos e carneiros dos povos vizinhos (menos os moabitas) e tinha a petulância divina de dizer que agora tudo era diferente. A lei que era externa, agora seria interna, numa condição de amor ao Pai e ao próximo que justificaria todos os deslizes quanto ao tratado comportamental. Ele vinha para cumprir a Lei, e portanto cumprida estaria ela (Mateus 5.17). Uma vez que cumprir a Lei jamais nos levaria a lugar algum, apesar de ser necessário (a menos que isso significasse ferir Deus ou o próximo), Jesus deixava claro que restaria ao homem apenas amar a Deus e o próximo de forma integral, pois assim a Lei nem mesmo seria necessária. Ele não estava interessado em colocar o homem de barro na forma do oleiro (Jeremias 18), mas em plantar uma semente nele (Marcos 4).

A que compararei o Reino de Deus? É como o fermento que uma mulher misturou com uma grande quantidade de farinha, e toda a massa ficou fermentada. (Lucas 13.20-21)

Ou como recitava o filósofo chinês Chuang Tzu no séc. 4 a.C.

A armadilha de peixes existe por causa dos peixes; uma vez apanhado o peixe, pode-se esquecer a armadilha. O laço para coelhos existe devido ao coelho; uma vez apanhado o coelho, pode-se esquecer o laço. As palavras existem pelo seu significado; uma vez captado o significado, podemos esquecer as palavras. Onde encontrarei um homem que tenha esquecido as palavras, para que possa trocar com ele uma palavra?

Nesse processo de ‘esquecer a Lei’ que, segundo Jesus, era equivalente a fermentar-se por ela, Jesus sutilmente dava um sentido todo novo aos escritos judaicos. O Reino não se construiria pelo julgamento do outro, mas pelo julgamento de si próprio. Escancaradamente, Jesus também tirava Deus de dentro do Templo, ou de dentro das ordenanças e burocracias humanas. Deus estaria onde fosse lembrado, onde agissem em nome Dele. E, nesse novo projeto, Ele seria lembrado em Jerusalém, em Samaria, em todo lugar e todo tempo, independentemente de um sacerdote que julgasse o certo e o errado. Mais ainda, independentemente Dele mesmo: era preciso que a pessoa de Jesus desse lugar à lembrança de Jesus, que o corpo andarilho se tornasse o Espírito voador.

E o Espírito dentro das pessoas se prestaria não a resolver problemas administrativos, do que comer ou de como construir tendas de adoração, nem tampouco de pesca insuficiente (Lucas 5.4-7), possuídos ou doentes que um messias ocasionalmente encontrasse pelo caminho. Ele resolveria os espinhos na carne das pessoas como Paulo (2ª Coríntios 12.7), de escravos fugidos como Onésimo (Filemom 1.8-10), de mim e de você, no 1º século ou no 21º. Ele não seria instrumento de jugo - que então ficaria leve - mas de construção. Esse novo Reino, de desejos e ações unidos, trazido dos céus, se manifestaria ou cresceria em nova terra. E seria inegavelmente bom a todos, mesmo os pregados numa cruz (menos Jesus).

Curiosamente, Jesus desviou-se completamente de falar sobre o paraíso celeste. Ele estava interessado em colocar o reino de Deus aqui na terra. Nem por fé, nem por obras, nem merecimento seus seguidores mais próximos arrancaram uma palavra Dele maior do que ‘vou preparar-lhes lugar’ (João 14.2). O único que ouviu a palavra ‘paraíso’ foi o homem gastou penas algumas palavras para isso, aquele criminoso auto-condenado crucificado ao lado Dele, ao qual Jesus não deixou de demolir as expectativas ruins.

O Reino de Deus não vem de modo visível, nem se dirá: ‘Aqui está ele’, ou ‘Lá está’; porque o Reino de Deus está entre vocês. (Lucas 17.20-21)

O QUE DEU FRUTO NISSO

Ed René Kivitz, Talmidim 052 - Justiça
Ed René Kivitz, Talmidim 053 - Cuspe
Ed René Kivitz, Talmidim 054 - Fantasia
Ed René Kivitz, Talmidim 055 - Divórcio
Paulo Brabo, Em 6 passos o que faria Jesus, cap. Além da memória, ed. Garimpo, 2009
The Writings of Chuang Tzu, Wâi Wû, or 'What comes from Without, cap. 26, paragrafo 11, Oxford University Press, 1891.

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