Em 1868, um missionário anglicano visitava o local da antiga Dibon (hoje Dhiban, na Jordânia), capital do reino de Moabe por volta de 850 a.C. Lá, ele descobriu uma antiga estela (placa onde os reis contavam suas façanhas) que foi copiada para um papel em 1870. O homem que fez essa cópia prestou grande serviço à humanidade, pois quando descobriu-se a natureza da estela de pedra, as tribos beduínas que controlavam a região a quebraram em pedaços, repartindo entre os líderes esses fragmentos. Vários foram recuperados mais tarde, mas refazer o antigo quebra-cabeças só foi possível graças à cópia em papel.
“Eu sou Mesa, filho de Quemós, rei de Moabe, senhor de Dibon. Meu pai reinou sobre Moabe por 30 anos e eu reinei depois do meu pai. Fiz este santuário para Quemós, Qarhoh, porque ele me salvou de todos os reis e me fez triunfar de todos os meus adversários.
Omri foi rei de Israel e humilhou Moabe durante muito tempo, porque Quemós estava irritado com sua terra. E o seu filho Acabe seguiu-o e disse também: ‘Hei-de humilhar Moabe’. No meu tempo ele disse ‘Hei de impor meu desejo sobre sua casa, e a destruirei para sempre’. Omri tinha ocupado a terra de Mádaba e Israel tinha habitado lá no seu tempo e durante metade do tempo do seu filho Acabe, por 40 anos. Mas Quemós habitou ali, no meu tempo.
Eu construí Baal-Meon, fazendo nela um reservatório. Construí também Quiriatem. Os homens de Gade tinham sempre habitado a terra de Atarot e o rei de Israel tinha construído Atarot para eles; mas eu combati contra a cidade e tomei-a e matei todos os habitantes da cidade para satisfação de Quemós e Moabe. Eu tomei todo o seu despojo e ofereci-o ante Quemós em Quiriatem, e coloquei ali os homens de Siran, e os homens de Mochrath. E Quemós disse-me: 'Vai e toma o monte Nebo de Israel'. Assim, eu fui de noite e combati contra eles, desde a aurora até o meio-dia. Tomei-o e matei a todos os seus 7 mil homens, mas não matei as mulheres, os rapazes, as raparigas e servas, por que os ofereci a Ashtar-Quemós. E os tirei de Jeová, arrastando-os até diante de Quemós.
O rei de Israel tinha construído Jaaz e residia ali enquanto lutava contra mim, mas Quemós tirou-o de diante de mim. E tomei de Moabe duzentos homens de guerra, todos de primeira classe, e coloquei-os contra Jaaz e tomei-a para anexar a Dibon.
Fui eu que construí Qarhoh, o muro da floresta e muro da cidadela. Também construí as suas portas e construí as suas torres e construí a Casa do Rei e fiz os seus reservatórios para água, dentro da cidade. E não havia cisterna dentro da cidade de Qarhoh, por isso disse ao povo: ‘Que cada um de vós faça uma cisterna para si mesmo, na sua casa’. E eu cortei vigas para Qarhoh com prisioneiros israelitas. Construí Aroer e fiz a estrada no Vale de Aroer, sobre o rio Arnon; construí Bete-Bamot, pois tinha sido destruída; construí Becer – pois estava em ruínas – com 50 homens de Dibon, pois todo o território de Dibon era leal a mim.
Eu reinei em Bikran, que eu adicionei a minha terra. E eu construí Bete-Gamul, Bete-Diblataim, e Bete Baal-Meon, e eu coloquei lá os pobres da terra. E, como em Horonaim, os homens de Edom habitavam ali, quando velhos. A casa de Davi estava em Horonaim. E Quemós me disse: ‘Vá fazer a guerra contra Horonaim, e levá-la’. E eu ataquei a cidade, para Quemós restaurar ela em meus dias.”
A pedra conta, de acordo com o próprio rei Mesa, suas vitórias contra Judá e Israel, os reinos do sul e do norte antes da invasão assíria que levou os hebreus como escravos para Nínive. Enquanto o reino do norte enfrentava os Arameus (~ 870 a.C.), ele rebelou-se contra Israel, que lhe tomara terras e cobrava impostos, matou os homens de Javé e ofereceu os demais (provavelmente em sacrifício) perante o altar de seu deus Quemós, ou Ashtar-Quemós. Mesa ainda conta de suas muitas obras urbanas, como cisternas e a ponte sobre o rio Arnon, o que faz pensar que a estela foi gravada após sua morte. Aparentemente, Mesa gabava-se de derrotar os velhos senhores de Judá, Israel e Edom. As cidades que ele nomeia estão ao norte do rio Arnon, na terra que Moabe havia perdido para os Amoritas séculos antes. Provavelmente tratava-se de uma zona de conflito entre os três reinos. Apesar da fúria com que fala dos hebreus, sua estela ficou gravada em um idioma próximo por demais do hebraico, tão parecido que faz supor um nível alto de parentesco entre as duas nações.
A Bíblia tem a versão dos adversários:
“Depois da morte de Acabe, Moabe rebelou-se contra Israel.” (2 Reis 1.1)
“E Jorão, filho de Acabe, começou a reinar sobre Israel, em Samaria, no 18º ano de Jeosafá, rei de Judá; e reinou 12 anos. E fez o que era mau aos olhos do Senhor; porém não como seu pai, nem como sua mãe; porque tirou a estátua de Baal, que seu pai fizera. Contudo aderiu aos pecados de Jeroboão, filho de Nebate, que fizera Israel pecar; não se apartou deles.
Então Mesa, rei dos moabitas, era criador de gado, e pagava de tributo, ao rei de Israel, 100 mil cordeiros, e 100 mil carneiros com a sua lã. Sucedeu, porém, que, morrendo Acabe, o rei dos moabitas se rebelou contra o rei de Israel. Por isso Jorão saiu de Samaria e fez revista de todo o Israel.
E mandou dizer a Jeosafá, rei de Judá: 'O rei dos moabitas se rebelou contra mim; irás tu comigo à guerra contra os moabitas?' E disse ele: 'Subirei; e eu serei como tu, o meu povo como o teu povo, e os meus cavalos como os teus cavalos'. E ele disse: ‘Por que caminho subiremos?’ Então disse ele: ‘Pelo caminho do deserto de Edom’. E partiram o rei de Israel, o rei de Judá e o rei de Edom; e andaram rodeando com uma marcha de sete dias, e não havia água para o exército e nem para o gado que os seguia. Então disse o rei de Israel: ‘Ah! o Senhor chamou a estes três reis, para entregá-los nas mãos dos moabitas’.
E disse Jeosafá: ‘Não há aqui algum profeta do Senhor, para que consultemos ao Senhor por ele?’ Então respondeu um dos servos do rei de Israel, dizendo: ‘Aqui está Eliseu, filho de Safate, que derramava água sobre as mãos de Elias’. E disse Jeosafá: ‘Está com ele a palavra do Senhor’. Então o rei de Israel, Jeosafá, e o rei de Edom desceram a ter com ele. Mas Eliseu disse a Jorão: ‘Que tenho eu contigo? Vai aos profetas de teu pai e aos profetas de tua mãe’. Porém o rei Jorão lhe disse: ‘Não, porque o Senhor chamou a estes três reis para entregá-los nas mãos dos moabitas. … o Senhor entregará os moabitas nas vossas mãos, e fará muito mais. Ferireis a todas as cidades fortes, e a todas as cidades escolhidas, e todas as boas árvores cortareis, e entupireis todas as fontes de água, e danificareis com pedras todos os bons campos’.
... E, levantando-se de madrugada, e saindo o sol sobre as águas, os moabitas viram as águas vermelhas como sangue. E disseram: ‘Isto é sangue; certamente que os reis guerrearam e mataram um ao outro! Agora, pois, à presa, moabitas!’ Porém, chegando eles ao arraial de Israel, os israelitas se levantaram, e feriram os moabitas, os quais fugiram diante deles. Ainda entraram nas suas terras, ferindo ali também os moabitas. E arrasaram as cidades, e cada um lançou a sua pedra em todos os bons campos, e os entulharam, e entupiram todas as fontes de água, e cortaram todas as boas árvores, até que só em Quir-Haresete deixaram ficar as pedras, mas os fundeiros a cercaram e a feriram. Vendo o rei dos moabitas que a peleja prevalecia contra ele, tomou consigo 700 homens que sacavam espada, para romperem contra o rei de Edom, porém não puderam vencê-lo.
Então Mesa tomou a seu filho primogênito, que havia de reinar em seu lugar, e o ofereceu em holocausto a Quemós sobre o muro. Houve grande indignação em Israel; por isso retiraram-se dali e voltaram para a sua terra.” (2 Reis 3.1-27)
Em poucas palavras, a Bíblia diz que após uma guerra ferrenha Deus entregou os 700 guerreiros moabitas aos reis que os combatiam, mas o rei Mesa sacrificou seu filho e isso, indignando os exércitos, os fez sair da terra que disputavam. Mesa conta sobre uma série de vitórias militares com 200 guerreiros, enquanto os hebreus, ao final do relato, contam sobre uma indignação coletiva que suplantaria as dificuldades da guerra. Talvez os edomitas se impressionassem com o sacrifício feito pelo rei Mesa, como era costume entre os cananeus; talvez Jorão ficasse assustado, pois seu pai seguira aos deuses da Canaã; mas certamente Jeosafá não recuaria. A palavra usada para ‘indignação’ - ketzef - também era usada para raiva ou pestilência. A menos que pensemos em uma praga lançada por Quemós, é estranho pensar que após uma batalha, com a intervenção divina, três exércitos recuariam. Mas o fizeram.
Esse relato também é curioso porque as ações recomendadas pelo profeta Eliseu contra Moabe são justamente aquelas proibidas anteriormente por Moisés, sugerindo uma ação vingativa dos hebreus contra os moabitas.
“Quando sitiarem uma cidade por um longo período, lutando contra ela para conquistá-la, não destruam as árvores dessa cidade a golpes de machado, pois vocês poderão comer as suas frutas. Não as derrubem. Por acaso as árvores são gente, para que vocês as sitiem?” (Deuteronômio 20.19)
O desfecho da batalha entre Judá, Israel, Edom e Moabe é misterioso. Tudo (inclusive os textos bíblicos posteriores) indica que o rei Mesa estava certo em se gabar de suas conquistas militares. No relato de Isaías 15-16, a Bíblia recupera o fim da nação de Moabe provavelmente pela invasão assíria que se seguiu. As cidades moabitas citadas são justamente as que o rei Mesa diz ter tomado de Israel.
“O meu coração clama por causa de Moabe! Os seus fugitivos vão até Zoar, até Eglate-Selisia. Sobem pelo caminho de Luíte, caminhando e chorando. Pela estrada de Horonaim levantam clamor em face da destruição, porque as águas de Ninrim secaram-se, a pastagem secou-se e a vegetação morreu; todo o verde desapareceu!” (Isaías 15.5-6)
“Como aves perdidas, lançadas fora do ninho, assim são os habitantes de Moabe nos lugares de passagem do Arnom. Dá conselhos e propõe uma decisão. Torna a tua sombra como a noite em pleno meio-dia e esconde os fugitivos; não deixes ninguém saber onde estão os refugiados. Que os fugitivos moabitas habitem contigo; sê para eles abrigo contra o destruidor. O opressor há de ter fim, a destruição se acabará e o agressor desaparecerá da terra, então, em amor será firmado um trono; em fidelidade um homem se assentará nele na tenda de Davi: um Juiz que busca a justiça e se apressa em defender o que é justo.” (Isaías 16.2-5)
Isaías traz uma mensagem para que os hebreus protejam os moabitas e se juntem a eles em um trono. Talvez nunca saibamos com exatidão o que ocorreu naqueles anos, mas Moabe de fato foi destruída e não se refez após a invasão assíria. Os registros históricos apóiam que o rei Mesa tenha fortalecido Moabe, expulsando os hebreus de suas terras. Mas então talvez os hebreus tenham salvado a realeza moabita, escondendo-os...
"Os governantes das nações pisotearam as melhores videiras, que antes chegavam até Jazar e estendiam-se para o deserto. … Pois não se ouvem mais os gritos de alegria por seus frutos e por suas colheitas. Foram-se a alegria e a exultação dos pomares; ninguém canta nem grita nas vinhas; ninguém pisa as uvas nos lagares, pois fiz cessar os gritos de alegria. Por isso as minhas entranhas gemem como harpa por Moabe; o íntimo do meu ser estremece por Quir-Heres." (Isaías 16.8-11)
Jeremias também fala da destruição de Moabe:
"Acerca de Moabe assim diz o Senhor dos Exércitos, Deus de Israel: ‘Ai de Nebo, pois ficou em ruínas. Quiriataim foi derrotada e capturada; a fortaleza foi derrotada e destroçada. Moabe não é mais louvada; em Hesbom tramam a sua ruína: ‘Venham! Vamos dar fim àquela nação’. Você também ficará calada, ó Madmém; a espada a perseguirá. Ouçam os gritos de Horonaim: ‘Devastação! Grande destruição! Moabe está destruída!’ É o grito que se ouve até em Zoar. … ‘Moabe tem estado tranqüila desde a sua juventude, como o vinho deixado com os seus resíduos; não foi mudada de vasilha em vasilha. Nunca foi para o exílio; por isso, o seu sabor permanece o mesmo e o seu cheiro não mudou. Portanto, certamente vêm os dias’, declara o Senhor, ‘quando enviarei decantadores que o decantarão; esvaziarão as suas jarras e as despedaçarão. Então Moabe se decepcionará com Quemós, assim como Israel se decepcionou com Betel, em quem confiava.’ … Chorarei por vocês mais do que choro por Jazar, ó videiras de Sibma. Os seus ramos se estendiam até o mar, e chegavam até Jazar. O destruidor caiu sobre as suas frutas e sobre as suas uvas. A alegria e a satisfação se foram das terras férteis de Moabe. Interrompi a produção de vinho nos lagares. Ninguém mais pisa as uvas com gritos de alegria; embora haja gritos, não são de alegria. Na sombra de Hesbom os fugitivos se encontram desamparados, pois um fogo saiu de Hesbom, uma labareda do meio de Seom; e queima as testas dos homens de Moabe e os crânios de homens turbulentos. Ai de você, ó Moabe! O povo de Quemós está destruído; Seus filhos são levados para o exílio, e suas filhas para o cativeiro.’Contudo, restaurarei a sorte de Moabe em dias vindouros’, declara o Senhor. Aqui termina a sentença sobre Moabe." (Jeremias 48.1-47)
Hesbom era uma antiga cidade de Moabe que os Amoritas haviam tomado. É muito significativo que, tais como as sentenças sobre os israelitas, o profeta anuncia que Moabe também seria restaurada. Entretanto, isso não aconteceu … pelo menos não ao sul do rio Arnon.
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RASTROS DEIXADOS NO DESERTO DE EDOM
Berlyn P, The wrath of Moab, Jewish Bible Quarterly 30(4), 2002
Mesha Stele, wikipedia
The moabite stone, Bible History online
The moabite stone - imagem HD
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