quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Cristianismo - catequismo, evangelismo ou desaculturação?


Copiamos aqui, descaradamente, uma publicação excelente da Editora Ultimato. Vale tão à pena ler que a gente nem se agüentou.

texto de Isaac Costa de Souza 

INTRODUÇÃO

As pessoas que são contra a evangelização dos povos indígenas dizem que o evangelho destrói as culturas tradicionais dos mesmos. De acordo com essas pessoas, o indígena que se converte a Jesus Cristo perde a cultura milenar que herdou. Nesse sentido, ele deixa de ser indígena, uma vez que perde a sua cultura tradicional.

Será que isso é verdade? Será que esses acusadores têm razão? Será que o indígena deixa de ser indígena só porque se converteu? O presente trabalho tem como objetivo principal responder esses tipos de pergunta.

Em nossa resposta, vamos usar os conceitos de “identidade” e “diferença”. Vamos ver o que identifica o indígena e o que identifica o cristão.

O COMEÇO DAS CULTURAS HUMANAS

A cultura ou maneira de viver pode ser observada desde o princípio da existência humana. O homem foi criado se alimentando de vegetais (legumes e frutas) e animais [Gn 1.29-30]. Para se alimentar de plantas, o homem foi coletor, depois plantador. Para usufruir dos animais, precisávamos caçar ou ter animais de criação [Gn 2.15]. Manifestações culturais ligadas ao trabalho envolveram os filhos de Caim: a criação de gado foi feita por Jabal, a atividade musical foi feita por Jubal e o trabalho em metal foi feito por Tubalcaim [Gn 4.20-22]. Pessoas que vieram depois também desenvolveram aspectos culturais específicos, através de seus trabalhos: Noé lavrou a terra, Abraão teve ovelhas e vacas e Ismael foi flecheiro no deserto [Gn 9.20; 12.16; 21.20]. Tudo isso é cultura, é maneira de viver.

CULTURA BÍBLICA

A cultura mostrada na Bíblia não está ligada apenas ao trabalho: ali está descrito, por exemplo, um servo de Abraão colocando a mão debaixo da coxa deste para fazer um juramento [Gn 24.2b; 9]. Hoje parece estranho, mas era como jurar pela descendência e pela virilidade do líder. Também, para confirmar um acordo, um homem descalçava seu sapato e dava esse sapato ao seu companheiro [Rute 4.7]. Existia entre os israelitas o “levirato”, que é um sistema de matrimônio onde um homem se casava com a viúva de seu irmão [Gn 38.8]. Isso também ocorre em algumas culturas indígenas. Ainda sobre matrimônio, entre os parentes de Abraão uma irmã mais nova só podia casar depois que a irmã mais velha se casasse [Gn 29.26].

A barba tinha um valor positivo para os israelitas. Há uma passagem na Bíblia em que Hanum, rei de Moabe, raspa a barba e corta a roupa dos mensageiros que Davi tinha enviado, para poder humilhá-los. Os mensageiros ficaram em Jericó esperando as barbas crescerem para então retornar com dignidade a Jerusalém [1Cr 19.4-5]. Tudo isso é cultura, é maneira de viver e NÃO foi ordenada nem condenada por Deus, sendo apenas reflexo de que os personagens bíblicos são, pasmem, humanos.

Algumas práticas culturais de fato foram ordenadas ou introduzidas por Deus. O livro de Levítico é cheio delas... Sua função, contudo, fica hoje clara: o que para os povos do deserto era uma questão de religião, hoje pode ser chamado sem erro de saúde pública, regras de convivência social e justiça comum.

CULTURA INDÍGENA NAS AMÉRICAS

Muitos acreditam que no principio não havia habitantes nas Américas. Aí os povos indígenas vieram da Ásia e da Austrália, através do Pólo Norte, atravessando um local chamado Estreito de Bering, e ocuparam as Américas. Esses povos vinham de diferentes localidades, com diferentes línguas, diferentes culturas e diferentes armamentos. Isso ocorreu há pelo menos uns trinta mil anos atrás. A partir do norte, estabeleceram as culturas dos Apalaches, das Rochosas e dos Andes. Delas se ramificaram para as áreas mais planas e dominadas por florestas ou savanas. Em geral, as aldeias pequenas forneciam escravos para as cidades incas, astecas e maias.

Os povos europeus começaram a chegar muito depois às Américas. No séc. 8 d.C., marinheiros vikings atingiram a América do Norte vindos da Noruega, Suécia e Dinamarca. Tentaram estabelecer aldeias na terra "verdejante" que encontraram, mas seu povoamento fracassou. Estavam em pequeno número e as tribos nativas não eram hospitaleiras... Uma nova leva de europeus só chegaria em 1498 com Colombo, no México. No Brasil, aportaram em 1500.

Antes da chegada dos europeus, os povos indígenas já mantinham um grande sistema de comércio e de influência cultural entre si. Eles não formavam povos isolados e sim povos com intercâmbio econômico e cultural uns com os outros. Mas quando os Europeus chegaram, o apogeu da civilização andina (500 - 1000 d.C.) já havia passado: epidemias pela superpopulação já haviam feito que muitas cidades grandes fossem abandonadas. A maior parte da população se espelhava então em grupos de pequenas aldeias guerreiras.

No entanto, os europeus causaram maiores mudanças culturais no modo de vida dos povos indígenas, por causa de sua tecnologia mais avançada e a violência que usaram contra as populações indígenas. O rei de Portugal daquela época mandava para o Brasil apenas os maus elementos, os bandidos e assassinos. Esses maus elementos abusavam fisicamente dos homens indígenas e sexualmente das mulheres indígenas. Inicialmente a Igreja se opôs ao massacre indígena, vendo neles um povo inocente que só precisava ser convertido ao Cristianismo. Depois, em nome do lucro da venda de escravos, os indígenas e negros foram formalmente declarados "sem alma". Paulo talvez tenha se contorcido na sepultura.

IDENTIFICAÇÃO DO INDÍGENA

O estudioso de culturas indígenas Darcy Ribeiro fala de algumas tentativas de se definir o indígena. Ele fala de quatro critérios que foram usados para isso: (1) racial, (2) cultural, (3) de desenvolvimento econômico e (4) de auto-identificação étnica.

Racial: seria a pessoa ou povo que descendesse dos habitantes das Américas que estavam lá antes da chegada de Cristóvão Colombo (em 1498). 

Cultural: seria a pessoa ou povo que tivesse cultura semelhante aos habitantes das Américas que lá estavam antes da chegada de Cristóvão Colombo. 

Desenvolvimento Econômico: seria a pessoa ou povo que tivesse menos condição econômica do que a camada mais pobre da sociedade não-indígena. 

Auto-identificação Étnica: seria a pessoa ou povo que se indentificasse como indígena e que fosse identificada como tal pelos habitantes que vivessem ao seu redor.

Após Colombo, houve muita miscigenação entre os povos indígenas e também entre eles e os europeus e africanos. Como os povos pré-colombianos não usavam escrita (com exceção dos povos andinos), fica muito difícil definir práticas culturais daquela época. Dessa forma, percebeu-se que o melhor critério era o da auto-identificação étnica.

IDENTIDADE E DIFERENÇA

Os estudos mais atuais a respeito do que vem a ser "identidade" dizem que ela não pode ser definida somente a partir dos elementos que a constituem ou a formam. Ou seja, ela não pode ser definida somente a partir da sua essência. A identidade seria definida também levando-se em consideração o que é diferente dela, o outro, a alteridade (alter em latim quer dizer: outro). De fato, esses estudos dizem que a identidade não pode ser definida sem a diferença e a diferença não pode ser definida sem a identidade. Uma depende da outra. 

Um desses estudiosos, chamado Stuart Hall, diz: “As identidades são construídas por meio da diferença e não fora dela” (Hall, 2000). É a diferença com o não-indígena que define o indígena e vice-versa. Para esse estudioso, uma mesma pessoa pode ter mais de uma identidade, pois “as identidades são as posições que o sujeito é obrigado a assumir". O indígena pode ser também trabalhador, pai ou mãe, pode ser um cidadão do campo ou da cidade.

O “sujeito” nesse caso é uma pessoa qualquer. As “posições” que esse sujeito assume são as maneiras através das quais ele se identifica. Uma mesmo homeme pode dizer: “Sou um professor”. Pode dizer também: “Sou esposo de fulana”; “Sou pai de sicrana”; “Sou torcedor do flamengo”; “Sou indígena”. Essas seriam várias identidades assumidas por um mesmo sujeito.

Um outro aspecto da identidade que Stuart Hall considera é sua formação, construção, elaboração, criação:

A abordagem discursiva vê a identificação como uma construção, como um processo nunca completado - como algo sempre 'em processo'. Ela não é, nunca, completamente determinada - no sentido de que se pode, sempre, 'ganhá-la' ou 'perdê-la'; no sentido de que ela pode ser, sempre, sustentada ou abandonada

Ou seja, para Hall, a identidade está sempre em processo de construção ou formação. Ela não é algo estático, como uma fotografia. Ela é dinâmica, como um filme, está sempre em movimento. Ou seja, a identidade pode aumentar elementos a sua construção ou formação; pode diminuir elementos a essa construção ou formação; pode, como um todo, ser sustentada, mantida; ou pode ser abandonada também. Um fumante pode perder a identidade de fumante ao deixar de fumar. Um bêbado pode perder a identidade de bêbado ao deixar de consumir bebida alcoólica. Um drogado pode perder a sua identidade de drogado ao deixar de consumir drogas. Entretanto, um crente pode manter sua identidade de crente mesmo em face a acusações. Um indígena pode manter sua identidade indígena e ter orgulho dela mesmo diante das discriminações vindas dos não indígenas e dos próprios indígenas. Em resumo, um indígena cristão pode manter as suas identidades de indígena e de cristão sem nenhum problema de conflito de identidade ou personalidade. Basta que para isso ele se comporte como indígena (reconhecendo-se assim para si e sendo reconhecido pelos que o rodeiam) e como cristão.

QUESTIONANDO A CULTURA

Na Bíblia, nem tudo em uma cultura era considerado positivo. Por exemplo, alguns povos da palestina, local onde até hoje o povo de Israel mora, tinham como costume oferecer seus próprios filhos para serem queimados como sacrifício aos seus deuses [2Rs 3.27 e 16.3; 2Cr 28.2-3]. Alguns reis israelitas, juntamente com o povo de Israel, copiaram esse costume, como se pode ver no rei Acaz e no rei Manassés [2Rs 17.16-17; 21.5; 2Cr 33.5-6]. A prática era tão comum que quando o anjo disse a Abraão que sacrificasse seu filho, não o vemos argumentando com o anjo ou pasmado com a atrocidade desse ato.

O sacrifício de criança foi descrito como uma coisa ruim por Ezequiel [Ez 16.20-21; 20.16, 31; 23.37]. Ao profeta Jeremias, Deus disse que nunca havia ordenado esse tipo de procedimento [Jr 7.31, 19.5, 32.35]. Assim, o rei Josias, quando lhe apresentaram os rolos com as Escrituras, mandou destruir os altares onde se colocavam as crianças no fogo como oferta ao deus Moloque [2Rs 23.10].

Portanto, um traço cultural não precisa necessariamente ser mantido. Não é porque existe que é bom. Em relação aos indígenas cristãos, eles é que devem, como uma comunidade, reger-se pelos princípios bíblicos e dirigidos pelo Espírito Santo, decidindo o que mudar, o que manter e o que incluir na sua cultura. Não é preciso que importem a cultura dos "brancos", pois Jesus norteou todo o seu ensinamento sobre dois pilares simples: amar a Deus e ao próximo. Muita coisa que é da tradição indígena pode ser incluída aí dentro, assim como muita coisa não-indígena fica de fora.

A conversão ao Cristianismo exige alguma mudança? Sim, para todos que optam por seguir a Cristo. Segundo Jesus nos conta, o mundo está permeado do maligno e não faz parte do homem seguir o que é bom e correto, odiando a quem o faz. Não é diferente com os Cristãos indígenas. Recentemente, um grupo "defensor" da a tribo Kogui (norte da Colômbia) atraiu sob pretexto de uma reunião diplomática e capturou 16 representantes cristãos da regão, passando a ameaçar os Koguis convertidos. Se a proteção cultural se faz necessária, contudo, ela não afasta práticas de roubo, alcoolismo e outras "herdanças" dos não indígenas...

Como mostrado no vídeo, pintar os rostos para serem vistos por um deus indígena é algo que precisa ser abandonado se o indígena se torna cristão. Não é ruim pintar os rostos, mas fazê-lo para uma divindade diferente do Senhor é semelhante aos rituais de Moloque ou Baal. Porque alguém deixaria de fazê-lo? Infelizmente, o que foi ensinado é "isso é bosta do diabo", ou seja, a prática deve ser abandonada porque é depreciativa - o fato de haver algo muito melhor para além dela não deve ter importância. O "ensino" baseado no incêndio das tendas ou templos da religião nativa também parece bem longe de amor ao próximo: para começar, priva-lhes o direito de escolha por Deus. Se alguém procurar na Bíblia quem fazia uso de coerção para "assegurar" a religião de outrém, achará justamente... os Romanos do tempo de Paulo, os Fariseus do tempo de Jesus, os Babilônicos do tempo de Daniel e os Egípcios do tempo de Moisés. E infelizmente, também os "ditos cristãos" da Idade Média.

Dizer-se cristão é muito simples. Qualquer um pode fazer isso em um lugar onde "ser cristão" é benéfico e traz status ou privilégios. Comportar-se como cristão entretanto é mais complicado... significa optar por fazer o que geralmente não nos é natural. Perdoar quem nos ofende? Agradecer a Deus quando somos mal-sucedidos? Esperar que Ele faça algo quando todos gostariam que fizéssemos melhor? As pessoas dificilmente se diziam cristãs durante a perseguição romana, dificilmente se dizem cristãs em países de ditadura islãmica ou comunista, embora possam sê-lo do fundo do coração. Por outro lado, é comum que se digam cristãos quando matam alguém (embora Jesus tenha dito para amar o próximo) ou quando tomam para si o que pertence a outro (embora Ele ensinasse a dar aos outros o que recebemos de Deus). Os colonizadores das Américas ferozmente empunhavam bandeiras com cruzes cristãs quando invadiam terras indígenas, mas viravam os olhos na hora de contar as moedas ganhas pela venda dos escravos...

Hoje vemos isso acontecer com pastores carismáticos e super-poderosos, que fazer shows de milagres em nome de Deus entre uma viagem e outra do seu jatinho particular, ou a construção de um mega-templo novo, promessa de grandes ganhos bem pouco celestiais e, claro, bem longe da suntuosidade católica que abominam. Seria a conquista das almas indígenas realmente um benefício para eles, da forma como é feita? Em que o cristianismo (apoiado tão somente pela graça de Deus) realmente é melhor do que a religião nativa?

IDENTIDADE CRISTÃ

Os discípulos de Jesus Cristo foram pela primeira vez chamados de “cristãos” em Antioquia [Atos 11.26]. No entanto, o cristão é melhor identificado na Bíblia por outros rótulos, como: “novo homem", "nova criatura","cidadão celestial" [Ef 2.15b; 4.22-24; Gl 6.15; Hb 11.16; Gl 2.19].

Entre esses novos seres, novas pessoas, novas criaturas não existe divisões ou hierarquias opressivas [Gl 3.28; 6.15] (embora tenha havido tais divisões no que NÓS chamamos de Igreja). Não existe separação entre judeus e gregos, livres e presos, indígenas e não indígenas. Todos somos iguais perante Cristo.

Um exemplo de um povo indígena e de um indivíduo indígena que se tornaram um novo povo e uma nova criatura, respectivamente, é registrado pela missionária Lenita Assis. Diz ela em relação aos Dâw, do Amazonas:

A partir de 1984, missionários da Associação Linguística Evangélica Missionária, começaram a estudar sua língua e prestar assistência ã saúde. Através de uma atividadc missionária holística (ou seja, geral e total - explicação minha) de apoio e valorização da imagem, o próprio povo, consciente da exploração a que foi submetido, passou a se mobilizar para manter uma vida de melhor qualidade” (Assis, 2004).

Como resultado dessa iniciativa, a auto-estima da etnia Dâw passou a ser valorizada. Até mesma a designação com a qual eram chamados mudou:

Por isso, eles não aceitam mais que os tratem por "Kamã", insistindo que são Dâw. Muitos moradores de São Gabriel estão entendendo essa situação e, pelo menos na frente deles, não usam mais o termo Kamã, e sim Dâw como desejam ser reconhecidos".

O termo "Kamã" não fez parte do vocabulário Dâw, é uma expressão pejorativa, significando, de acordo com o dicionário da língua Tariana: "capotado, aquele que bebeu até cair". Esse apelido veio de o fato do povo Dâw como um todo embriagar-se demais no passado, na cidade de São Gabriel da Cachoeira. Quando não havia cachaça, eles bebiam álcool de farmácia. Quando não havia álcool, ingeriam desodorante. Eles perderam suas terras e viviam como mendigos na cidade. O evangelho trouxe dignidade a essa comunidade indígena. Os capotados, os que bebiam até cair deixaram de existir enquanto povo. Um novo grupo social surgiu. O povo Kamã não existe mais. Existe o povo Dâw. A população de São Gabriel está admirada pela transformação positiva que o evangelho causou nessa etnia indígena.

Essa dignidade e auto-estima, características de uma nova criatura, é percebida também a nível individual e não apenas a nível social. Sobre um indivíduo Dâw que se converteu, Lenita Assis relata o seguinte:

Quando o chamam de Pirarara, ele diz que não é mais, o Pirarara já morreu, agora ele é o Jair. Os antigos amigos chegam a dizer que agora ele virou "branco", não é mais índio. E ele responde que é índio sim, quer dizer: não "Kamã", não Pirarara, mas Jair-Dâw

Contestando esse tipo de idéia de que o Dâw deixa de ser indígena ao se converter, ao exercer melhor a sua auto-estima e a sua dignidade, Lenita Assis afirma:

Possivelmente, alguns tendem a pensar que tais pessoas estão "perdendo sua identidade de indígena". No entanto, elas perdem de vista que está acontecendo justamente o contrário. Esses indivíduos se afirmam ainda mais como indígenas. Uma vez que passam a escolher, fazer ou não uma reapropriação de referenciais simbólicos disponíveis e fixados em contextos históricos e sócio-culturais específicos

As transformações positivas ocorridas na vida de um novo convertido não constituem surpresa nenhuma, pois ele adquire uma nova identidade, ele torna-se em um novo ser, uma nova criatura, um cidadão celestial, seja ele indígena ou não indígena. Paradoxalmente, um novo convertido continua parcialmente sendo o que era. Se era não indígena, continua sendo não indígena; se era indígena, continua sendo indígena. Como disse Lenita Assis, o indígena que se converte pode se firmar como mais indígena ainda, pois o evangelho sempre traz dignidade para os que aceitam Jesus Cristo como seu salvador e senhor.

ACUSAÇÃO

A antropóloga Domique Gallois sempre se pronuncia contra alguns missionários. Ela diz que eles estão destruindo as culturas indígenas. Isso implica dizer que os missionários estariam fazendo os indígenas deixarem de ser diferentes para serem iguais aos não-indígenas em seu modo de viver.

Ela também fala que os missionários não compreendem as idéias básicas da antropologia, porque, segundo ela, não sabem a diferença entre "dinâmica" e "mudança" cultural. A dinâmica cultural seria a alteração que não causa prejuízo para a cultura; a mudança cultural seria a alteração que causa prejuízo para a mesma. Os projetos que ela desenvolve em algumas áreas indígenas seriam exemplos de aproveitamento da dinâmica cultural desses povos. A evangelização que os missionários efetuam em áreas indígenas seriam exemplos de mudança cultural. Para ela, os esforços dos acadêmicos sempre seriam bons para os indígenas e as iniciativas missionárias seriam sempre ruins.

Apenas para mostrar que isso não reflete a realidade, vamos comentar um dos programas de Dominique. O programa “Vídeo na Aldeia” é implementado por ela e por Vicente Carelli. Um dos alunos desse programa fez um depoimento na TV Cultura, no dia 19 de janeiro de 2000. Ele disse:

"Minha mulher só fala nisso pra mim: “Tu tá filmando, tá filmando. Você tem filho, não pode viajar muito, você tem que cuidar nosso filho.” Eu já falei pra ele, pra ela também: “A profissão minha é filmá, é pra isso que eu nasci, é pra filmá. Num é pra enxada, num é pra pegar machado, num é pra fazer roça. Eu já falei isso pra ele [ou seja, pra ela]”, (foi no "Obrigado Irmão", Programa Zoom da TV Cultura)

A antropóloga Dominique quer que entendamos isso como dinâmica cultural e não como mudança cultural. Mas onde já se viu um indígena aldeado nascer para não pegar em instrumento de trabalho manual? Só nos projetos de Dominique! Como se pode ver, a própria esposa do indígena citado entende isso como mudança no modo de vida deles como família e não como mera dinâmica de seus costumes tradicionais. Em outras palavras, o projeto de Dominique está atrapalhando a vida familiar-cultural do casal indígena. E quem faz essa acusação não são os missionários, é a esposa do indígena que sente na pele o prejuízo que o projeto causa em sua vida em casa.

Na realidade, ser profissional de filmagem não impede um indígena de ser lavrador (ou pescador, ou caçador). Da mesma forma, ser cristão não impede um indígena de ser indígena.

INDÍGENA CRISTÃO

Já vimos que o evangelho ajudou os Dâw a firmarem a sua indianidade (identidade indígena). Há outros exemplos conhecidos onde a indianidade dos indígenas que se tornaram novas criaturas também foi fortalecida pelo fato de esses indígenas terem se tornado cristãos. Em outras palavras, o cristianismo fez com que eles firmassem ainda mais a sua indianidade. Não a indianidade descrita por muitos pesquisadores que se colocam contra o evangelho e contra os missionários, mas a indianidade escolhida pelos próprios indígenas para que continuassem a ser indígenas.

Em relação aos Terenas, Egon Schaden afirma que o Protestantismo tem levado “os índios a melhor se firmarem, eles próprios, a sua consciência indígena em oposição à população rural católica. Por outro lado, a proscrição de bebidas alcoólicas e outras proibições, conferindo-lhes maior auto-respeito, os ajudam a superar os efeitos de depressão psíquica resultantes da insegurança do homem marginal”.

Homem marginal aqui é o homem deixado à margem da sociedade não-indígena, sofrendo os preconceitos e as discriminações impostas pelo relacionamento desigual entre as sociedades indígenas e não-indígenas no cenário nacional. Os Terena, segundo Shaden, superaram isso através do cristianismo que adotaram. Aqui ele não está falando mal do catolicismo e falando bem dos evangélicos. Ele está falando bem do "evangelho".

Um outro pesquisador não evangélico (Robin Wright) afirma que “o olhar wari descobriu, na prática cristã, valores de sua própria cultura, que dizem respeito a um ideal de consaguinidade generalizada”. 

Os valores cristãos que são iguais aos valores compartilhados pelos Wari dizem respeito ao bom tratamento que o povo cristão e o povo Wari dão aos seus patrícios. É um tratamento tão bom que é comparado ao tratamento que um irmão de sangue dá ao outro. Como se pode ver, muitas vezes os valores cristãos não estão em oposição aos valores indígenas. Portanto, ser cristão não impede um indígena de continuar a ser indígena. 

Esse mesmo antropólogo assegura que “as transformações efetuadas nas culturas indígenas por missionários cristãos, durante o tempo, raramente têm sido o resultado de um processo simples de imposição, mas sim o resultado de negociações, nos planos político, material e simbólico, em que as estruturas e instituições tradicionais ressurgem, mas em formas alteradas”.

Em outras palavras, a cultura dos indígenas que se tornaram cristãos não é uma cultura empobrecida, desvirtuada e desvalorizada, como alguns opositores do evangelho dizem. É uma cultura repensada, reformulada e reelaborada pelos próprios indígenas, a seu próprio favor, para o seu próprio benefício e não contra o seu próprio patrimônio cultural e linguístico. Essa matriz cultural evangelizada milita a seu favor e não contra seus interesses humanos-indígenas.

Não é à-toa que o ditado indígena do final dos anos setenta e início dos anos oitenta era: "Posso ser o que você é sem deixar de ser o que sou." Muitos desses indígenas eram cristãos. Com isso eles queriam dizer que eles poderiam assumir outras identidades sem perder aquela que identificava a eles como indígenas. Com isso podemos dizer que um indígena pode ser cristão e continuar sendo indígena. 

O pesquisador acima mencionado (Robin Wright), ao organizar o livro "Transformando os Deuses", justifica sua iniciativa (de organizar o livro) dizendo:

"Assim, esta coletânea elabora, como um dos seus argumentos centrais, que o cristianismo indígena não é meramente um 'verniz' colado sobre uma estrutura preexistente, que existem igrejas e missionários indígenas, e que estes são fenômenos que precisam ser mais bem estudados pela etnologia. (...) a superficialidade não deve ser tomada como norma, como muitas vezes acontece, pois isto impede a compreensão adequada das tradições indígenas cristãs." (Wright, 1999) 

O que esse autor, mesmo sem ser evangélico, afirma é que há conversões genuínas entre os indígenas e que isso precisa ser melhor estudado e não apenas criticado, como é o mais comum e normal acontecer por parte dos pesquisadores. O verniz sobre a madeira não torna o verniz em madeira. Contudo, o cristianismo em uma cultura indígena passa a fazer parte integrante daquela cultura. 

CONCLUSÃO

Neste artigo tentou-se mostrar que a cultura humana surgiu com a própria criação dos seres humanos, que ela não é resultado de castigo divino. Tentou-se também mostrar que nem tudo em uma cultura glorifica o nome de Deus, como o aspecto cultural de infanticídio praticado por certos povos da antiguidade que sacrificavam seus filhos a alguns deuses que eles serviam.

Ainda, denunciou-se que há pessoas que manipulam dados e fatos de forma maldosa para dizer que um indígena deixa de ser indígena se se converter ao cristianismo, uma vez que, para esses indivíduos, o cristianismo destruiria a cultura indígena do novo convertido, fazendo com que ele perdesse sua identidade de indígena. Mostrou-se que isso não é verdade. Na realidade, essas pessoas é que acabam por desvirtuar o modo de vida do indígena através de alguns projetos mal executados (os projetos em si são bons, mas não há cuidado para se evitar distúrbios nas culturas indígenas). 

Buscou-se também mostrar que a identidade não é algo fixo, mas dinâmico; que a identidade não é um bloco único, mas composta de várias partes, permitindo, assim, uma mesma pessoa identificar-se de várias maneiras diferentes. Assim, um indígena pode ser indígena e cristão ao mesmo tempo, sem que a identidade de cristão necessariamente descaracterize a sua identidade de indígena e sem que a sua identidade de indígena necessariamente descaracterize a sua identidade de cristão. 

Assim como o programa “Vídeo nas aldeias”, de Dominique Gallois, em si não é ruim, o cristianismo também não é prejudicial aos povos indígenas. E, ainda como o programa de Dominique, pode ter efeitos destrutivos na vida dos indígenas, também pode acontecer com um cristianismo que transmite mais aspectos culturais do mundo de fora aos indígenas e menos da mensagem bíblica em si. Na verdade, esse tipo de cristianismo não é o melhor modelo de cristianismo, uma vez que o cristianismo bíblico está preocupado com a nova criatura, com o novo homem, com o cidadão celestial, não importando se ele é indígena ou não. O evangelho visa produzir novos seres dentro de sua realidade cultural e não pessoas com novas (outras) culturas meramente humanas. 

QUEM ESCREVEU, FALOU QUE LEU

A Igreja e os índios: a igreja, opressora dos índios?, estudo histórico do blog Permanência.org.br

ASSIS, Lenita de Paula Souza. Para além da cachaça: desconstruindo um estigma e (re)significando uma identidade, dat. Manaus: Universidade do Amazonas, 2004. 

"COLÔMBIA: Dezesseis cristãos indígenas são presos no norte da Colômbia", notícia de 26/11/2009 do site Lagoinha.com.

O evangelho e a cultura. Série Lausanne. No. 3. Trad. José Gabriel Said. ABU Editora e Visão Mundial, 1983 

GOMES, Mércio Pereira. Os índios e o Brasil; ensaio sobre um holocausto e sobre uma nova possibilidade de convivência. Petrópolis, RJ: Vozes, 1988. 

HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: Identidade e diferença; a perspectiva dos estudos culturais. Tomaz Tadeu da Silva, Org. Trad.; Tomaz Tadeu da Silva. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. 

NICHOLS, Bruce. 1983. Contextualização: uma teologia do evangelho e cultura. Trad.: Gordon Chown. São Paulo: Sociedade Religiosa Edições Vida Nova. 

NIDA, E.A. 1995. Costumes e culturas; uma introdução à antropologia missionária. 3 ed. Trad. Barbara Burns, Décio de Azevedo e Paulo Barbero F. de Carminati. São Paulo, Sociedade Religiosa Edições Vida Nova. 

RIBEIRO, Darcy. 1962. Política indigenista brasileira. Rio de Janeiro: Edições SIA. 

SCHADEN, Egon. 1969. Aculturação indígena. São Paulo: Livraria Pioneira Editora/Editora da USP. 

SILVA, Tomaz Tadeu da, org. Identidade e diferença; a perspectiva dos estudos culturais. 2 ed. Tomaz Tadeu da Silva, trad. Petrópolis, Vozes. 2000 

SILVA, Tomaz Tadeu da. 2002. Documentos de identidade; uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica. 

SOCIEDADE BÍBLICA DO BRASIL, São Paulo. Bíblia na Linguagem de Hoje. São Paulo: SBB.

VOGEL, Alan. Não sou mais índio, agora sou crente. Ultimato, Viçosa, MG, jul. ago. 1991. p. 28. 

WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: Identidade e diferença; a perspectiva dos estudos culturais. 2 ed. Tomaz Tadeu da Silva, org. Tomaz Tadeu da Silva, trad. Petrópolis, RJ: Vozes. 2000 

WRIGHT, Robin M., org. Transformando os deuses; os múltiplos sentidos da conversão entre os povos indígenas no Brasil. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1999. 

WRIGHT, Robin M. O tempo de Sophie: história e cosmologia da conversão baniwa. In: Transformando os deuses; os múltiplos sentidos da conversão entre os povos indígenas no Brasil. Robin M. Wright, org, Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1999. pp.155-216. 

* Apresentado no Conselho Nacional de Pastores e Líderes Evangélicos Indígenas (CONPLEI). Dourados, 2 de setembro de 2004.

• Isaac Costa de Souza é natural de Macapá-AP; missionário entre o povo Arára do Pará; membro da Associação Linguística Evangélica Missionária (ALEM) e da Sociedade Internacional de Linguística no Brasil (SIL); formado em Letras pela UFPA e Mestre em linguística pela UNICAMP; professor da ALEM e professor visitante do CEM; autor do livro De Todas as Tribos (Editora Ultimato, 2003, 2ª ed.)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe um comentário!