terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Antes de nós

- Esqueça o passado.
Os raios NO apagarão sua mente.

Vai um texto mascado, cuspido e escarrado de um Brabo. Sentimos muito por ele [o Brabo] e expressamos nosso mais sincero "Snif".

Nada que aconteceu antes de 1500 nos interessa. O rompimento protestante não foi só com a Igreja Católica, mas também com a História. O método para corrigir 1500 anos do equívoco católico foi ignorá-los. Se o catolicismo se suporta na própria história, afirmamos que simplesmente não houve nada entre os livros do NT e a Reforma. Isso para quem valoriza a história; para os demais, a afirmação da atualidade bíblica faz supor que nem mesmo Lutero e todos os expoentes da Reforma existiram.

Nossa verdadeira filiação, queremos crer, é com a igreja do livro de Atos, não com a estrutura corrupta e vendida que foi construída depois. Em alguns aspectos, a igreja estruturada que conhecemos se encaixa bem na denominação "conquistadora de pessoas", que em grego receberia o nome Nikolaos, ou nicolaíta. Bem diferente do Papai Noel, esse nome é simplesmente dito "odiado pelo Senhor" no livro de Apocalipse (Ap 2.6)¹. Quanto ao período intermediário que abominamos por muitos motivos doutrinários, a herança de Cristo só passou a ser eficazmente defendida quando viemos a honrá-la da forma certa. Sem os protestantes, a herança de Cristo e o Cristianismo jamais existiram.

Pelo fato de muitos mártires e santos terem sido canonizados postumamente pelo catolicismo, negamos sua existência e ensino, bem como a importância das Cruzadas, peregrinações, a subversão descalça de São Francisco, a Inquisição, a paixão medieval pelos pobres e a obsessão pelos símbolos. Não sabemos (ou fingimos não saber) o que disseram ou fizeram Lutero, Calvino, Knox, Wesley ou Billy Graham. Lembrá-los é idolatria, por isso o passado evangélico não existe ou é vazio. Tudo que queremos ouvir é o presente pregador oferecendo a prosperidade para o futuro próximo, antes do próximo culto onde viremos dar testemunho dela. Nada sabemos e nada queremos saber sobre relíquias, ritos latinos e qualquer escrito ou ação praticada antes da Reforma. E provavelmente também desprezemos o que existiu depois dela, de forma a ligar cronologicamente os dias: o NT foi escrito ontem, talvez hoje mesmo. Assim nosso Deus é, por exclusão, o mesmo de Abraão, Isaque e Jacó. Não é o Deus de Joana d’Arc, de Giotto, de Gegorio I e de Dante Alighieri. Não é o Deus dos tetos das catedrais, nem de nossos ancestrais (se de fato tivéssemos tido algum).

Quando descartamos a antiguidade cristã, também exterminamos do coração todo mito, metáfora e todo assombro. Só nos resta a superfície, a aparência da aparência de uma existência espiritual. Então, o utilitarismo que nos caracteriza mostra todas as coisas como ferramentas, os lugares como facilidades e as pessoas como números.

Essa devastação de nosso ambiente simbólico está na arquitetura de praticamente qualquer templo evangélico contemporâneo. Mesmo o velho Estevão batendo que o "templo" é onde Deus habita, que não pode ser feito por mãos humanas (Atos 7.49), mesmo Jesus tendo afirmado que o derrubaria e levantaria de novo (Jo 2.19), somos orgulhosos e necessitados de exibir nossos prédios, nossos números. Por fora, tais templos são a força do dinheiro, bem diferente das catedrais católicas. Por dentro, uma casa fala do que está cheio o coração, e nada há nas paredes de um templo evangélico que dê indício de riqueza interior, acolhimento ou de qualquer compromisso. São utilitaristas, mais caiados e limpos que uma repartição pública. Só para contrariar o adornamento das igrejas católicas, muitas vezes não há no edifício evangélico sequer uma cruz, porque nosso distanciamento simbólico se estende até mesmo a Jesus.

Outra consequência da separação entre os protestantes (perdão, evangélicos) e a história é que somos um povo que só presta contas ao Jesus teórico, com alma mas sem corpo. Nem ao Jesus homem nos dignamos a ver: oramos de madrugada porque Ele orou de madrugada; repartimos o pão porque Ele repartiu o pão; mas evitamos as festas que Ele frequentou, não dormimos em barcos e nem nos sentamos com qualquer um. Não respondemos pelos erros [humanos] da Igreja Católica, nem pelas imprudências [humanas] de Lutero, pelas imoderações de Calvino, pelos exageros dos missionários entre os índios ou omissões dos cristãos na Alemanha nazista. Simplesmente não pertencemos ao mundo por não sermos humanos! Na verdade nossa dissociação com o passado é tamanha que não queremos ser responsáveis pelo que nós mesmos fizemos em nosso próprio tempo de vida. Esse tempo passou, e renascer em Cristo nos significa isso mesmo, absolvição permanente e liberação retroativa.

Ao contrário do que católicos costumam fazer, os evangélicos absolutamente não se ajoelham diante de coisas (cruzes, imagens ou lugares sagrados). Aprendemos e confessamos que o verdadeiro crente deve dobrar-se apenas diante do Deus invisível ou do Cristo (também invisível, e continue assim). Quando se ajoelham diante de imagens, relíquias ou capelas, os católicos estão reconhecendo que os objetos por si mesmos não se bastam e não se explicam; estão confessando que as coisas não se esgotam em sua utilidade imediata e não se constituem na definição última da realidade. Devidamente instruídos pela mentalidade medieval, eles intuem que o valor das coisas não está em sua função utilitária, mas em sua função simbólica. As coisas apontam para outra realidade; as coisas remetem. Sendo os donos da benção divina, nós não somos capazes de fazer isso.

Nós, que nunca beijamos os pés de uma Maria ou deixamos os joelhos tocar o mármore frio diante de um Crucificado, desconhecemos por completo esse assombro. Somos paupérrimos de conteúdo simbólico e de transcendência; porque nos recusamos a tocar o material, somos privados da realidade intangível a que as coisas silenciosamente remetem. Não adoramos ao papa nem qualquer outra autoridade, mas estamos dividido em milhares de denominações que criam as próprias regras e teologias.  E depois vamos aos pastores pedir oração por um familiar, pois eles (primeiro o pastor, depois sua oração) são muito mais poderosos que simples mortais como nós. Pelo menos vamos depois para casa ouvir a santa música gospel da santa rádio de nossa própria santa congregação. Que nossas coisas santas nos mudem os corações...

Mais espiritualizados, nós também evangelizamos o mundo com a terrível nova de que ser livre é ter a capacidade de adquirir. Oramos por prosperidade material, decretamos o insucesso financeiro dos nossos inimigos, dedicamos a vida a angariar os bens de que não iremos precisar. Ainda bem que estamos livres da idolatria!

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¹ Curiosamente, a única referência confiável sobre os nicolaítas que chegou à atualidade foi o livro de Apocalipse. Mesmo os historiadores que escreveram sobre esse povo misterioso utilizaram como fonte o significado grego do nome Nikolaos ou especulações baseadas em antônimos das "bem aventuranças" descritas no NT ou suposições sobre a vida do bispo Nikolaos de Antióquia (Atos 6.5). De qualquer forma, a data da redação do livro de Apocalipse torna impossível que os nicolaítas tivessem qualquer relação com o bispo nomeado pelos apóstolos.

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