Ser mau ou fazer maldades,
eis a questão...
Nós humanos possuímos uma natureza dualista. Somos santos capazes de realizar grandes feitos; de amar, de proteger e cuidar dos necessitados, e de atos de grande nobreza. Somos também capazes de fazer o mal, de mentir, trair, ferir, e matar, até mesmo por motivos torpes. Enfim, somos pecadores.
O comportamento humano é algo que herdamos de nossos ancestrais. Nascemos com o instinto de proteger e cooperar com outros seres humanos, mas também com o instinto de combater e atacar. O instinto de auto proteção se estende aos grupos a que pertencemos, a começar pela família, depois à tribo, nação, etc. Defendemos ao nosso grupo imediato em oposição aos que pertencem a outros grupos. Travamos guerras contra os “de fora”. Tudo isso carregamos em nosso DNA. Faz parte do que significa sermos humanos.
As antigas religiões criaram histórias para explicar o comportamento humano. Entre tais histórias encontramos o belíssimo relato da criação do Gênesis, o primeiro livro da Bíblia judaico-cristã. Através da teologia evolucionária podemos estabelecer um harmonioso ponto de contato entre os antigos mitos de criação e o atual conhecimento científico das ciências biológicas e da psicologia evolucionista. Mas antes de explorarmos a dinâmica de tal ponto de contato, é interessante compreendermos a origem e o significado do relato bíblico da criação, assim como o desenvolvimento das definições clássicas de aspectos da natureza humana, inclusive do pecado original, na tradição cristã.
Os primeiros cinco livros da Bíblia, chamados de Pentateuco, foram escritos por pelo menos quatro autores diferentes, hoje academicamente identificados por biblistas como yahwista (J), eloísta (E), sacerdotal (P), e deuteronomista (D). Posteriormente os textos destes autores foram combinados por um redator (R). Tais fontes documentárias foram escritas em épocas diferentes e representam escolas literárias diferentes. O autor yahwista chama a Deus pelo tetragrama YHWH (Jeová), enquanto o autor eloísta se refere a Deus como Elohim, que no antigo idioma cananeu significa “deuses”. Os sacerdotes responsáveis pela composição do documento sacerdotal (P) utilizaram como fonte o material eloísta, entre outros. O texto eloísta (E) é o mais antigo e antecede o exílio babilônico. A paleografia e a lingüística localiza o texto eloísta no reino israelita do norte entre 799-700 a.C., enquanto os textos de autoria yahwista e sacerdotal foram escritos durante ou logo após o exílio babilônico.
Foi no antigo mito (verdade metafórica) hebreu da criação relatado no livro de Gênesis que os povos monoteístas das três grandes religiões abraâmicas encontraram uma explicação para a natureza humana. Este mito bíblico é rico em verdades espirituais, e divide-se em dois relatos de criação de autoria distinta; um de autoria sacerdotal (P), que vai de Gênesis 1:1 à Gênesis 2:3, e outro de autoria yahwista (J), a partir de Gênesis 2:4. O relato sacerdotal é um elegante e sofisticado poema, enquanto o relato yahwista é uma prosa linguisticamente simples, de vocabulário pobre.
A posição do homem no universo e sua natureza mortal fazem parte da temática dos relatos do Gênesis. O ser humano vive em estado de alienação para com Deus e necessita conectar-se com Ele. Embora estejamos no “topo da cadeia alimentar”, ao ponto de podermos dar nome a todos os animais e de termos domínio sobre eles, somos pó e ao pó voltaremos.
O Gênesis apresenta uma das primeiras explicações da natureza humana, expressa dentro do contexto cultural do antigo povo hebreu. O mito do primeiro pecado reflete o nascimento da consciência humana e a descoberta de nosso potencial para o mal, algo que ocorreu em tempos pré-históricos imemoriais e tem origens evolutivas. O primeiro pecado ocorreu no jardim do Éden. O casal primordial desobedeceu ao Criador por comer do fruto do conhecimento do bem e do mal. Deus revidou expulsando o casal do paraíso e amaldiçoando a todas as gerações posteriores. As conseqüências do pecado foram dramáticas, culminando na história do dilúvio, enviado por um Deus arrependido para destruir a humanidade rebelde.
Posteriormente a história da torre de Babel descreve mais um episódio de interferência divina, desta vez para impedir que os homens alcancem os céus ao construir uma torre suficientemente alta, o que faria com que eles se tornassem poderosos demais. Tais histórias não têm sentido literal algum, mas colocam o ser humano em seu devido lugar. Não somos deuses. Somos humanos falíveis e mortais. Por mais que construamos torres, estações espaciais, e pisemos na Lua, não devemos perder de vista de que no final das contas somos pó, e ao pó voltaremos.
A declaração do Criador de que o cosmo por Ele criado é “bom” tem implicações éticas importantes em relação à nossa própria atitude para com a ordem criada. As questões da responsabilidade ecológica e do aquecimento global pelo efeito estufa remetem ao fato de a criação ser “boa”, e que por isso devemos respeita-la.
Outros aspectos abordam a posição social ideal da mulher ao lado do homem, sendo esta formada a partir de uma costela e não de um osso do pé, assim como a necessidade de semanalmente observarmos um dia de descanso, pois o próprio Deus o observou.
O Gênesis, portanto, é um documento cheio de metáforas e alegorias plenas de significados éticos, sociais e espirituais. Refletir sobre tais metáforas é algo profundamente enriquecedor. Porém, o Gênesis não serve como relato histórico e científico das origens do universo e da espécie humana. A história tem aspectos obviamente mitológicos: uma serpente falante, frutos que contém conhecimento entre o bem e o mal, uma mulher formada de uma costela, anjos que guardam a entrada de um mítico jardim, etc. Certamente os autores originais do Gênesis nunca tiveram a intenção de escrever um relato histórico.
No terceiro século da era cristã, Orígenes de Alexandria já alertava contra o perigo de interpretar o relato bíblico da criação literalmente:
"Qual pessoa inteligente pode imaginar que houve um primeiro dia, depois um segundo e um terceiro dia, tarde e manhã, sem o sol, sem a lua, e as estrelas? E que o primeiro dia, se faz sentido chama-lo assim, existiu até mesmo sem um firmamento? Quem é tolo o suficiente para crer que, como um jardineiro humano, Deus plantou um jardim no Éden no oriente e colocou nele uma arvore da vida, visível e física, para que comendo-se de seu fruto obtenha-se vida? E que comendo-se de uma outra arvore, obtenha-se conhecimento do bem e do mal? E quando é dito que Deus andou pelo jardim quando Adão se escondeu atrás de uma arvore, não posso imaginar que alguém duvidaria que esses detalhes apontam simbolicamente para significados espirituais utilizando uma narrativa histórica que realmente não aconteceu". (Orígenes de Alexandria, DE PRINCIPIIS, século 3)
Os cristãos sempre acreditaram na necessidade de remissão de pecados. Desde o início a crença central do cristianismo foi o sacrifício de Cristo como Cordeiro de Deus para remir os pecados da humanidade, complementada pela centralidade litúrgica da eucaristia como participação dos fiéis neste sacrifício.
A remissão de pecados implicava em salvação, que no cristianismo primitivo possuía alcance universal. A crença na restauração universal de todas as coisas, chamada por Orígenes de apocatástase, era comum entre os patriarcas do primeiro período da patrística. Deus exigia a punição de pecados, mas a redenção pela fé em Cristo mais cedo ou mais tarde alcançaria a todos, nesta vida ou na próxima. Foi Tertuliano quem primeiro advogou que as penas do inferno deveriam ser eternas. Ele não sabia ler nem escrever em grego, fez má exegese bíblica, e a Igreja latina do ocidente se encarregou de completar o estrago.
Foi Santo Agostinho de Hipona quem, no século 4, primeiro formulou o dogma do pecado original. Ele concluiu que todos já nascem com a natureza pecaminosa herdada do casal primordial. Antes de Agostinho prevalecia na Igreja uma visão semelhante ao pelagianismo: as crianças nasceriam sem pecado e permaneceriam inocentes até que se tornassem capazes de começar a pecar por iniciativa própria. Agostinho, em seu zelo por combater Pelágio, conseguiu estabelecer um novo paradigma: todos já nasceriam com a culpa da queda adâmica inscrita no tecido da essência humana. Desenvolveu-se então, a crença de que o poder regenerativo do batismo incluiria também a remissão do pecado original herdado, além dos pecados cometidos pela própria pessoa.
É digno de nota que no Novo Testamento, a crença no poder do batismo para remir pecados encontra respaldo no livro de Atos:
“Pedro então lhes respondeu: Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo, para remissão de vossos pecados; e recebereis o dom do Espírito Santo”. (Atos 2:38)
Até o século 5, muitos cristãos protelaram o batismo até o leito de morte, devido a expectativa de que os pecados considerados mortais cometidos após o batismo não fossem remissíveis¹. Esta estranha crença não vingou, e logo prevaleceu a prática do batismo infantil. O clero passou a batizar crianças para evitar o risco de que morressem com a culpa de Adão, o que poderia acarretar penalidade após a morte. Na época a doutrina das penas eternas (inferno perpétuo) já estava enraizada na igreja latina do ocidente, e gradualmente se popularizava no oriente grego. No século 9, Pedro Abelardo propôs a doutrina do limbo, lugar para o qual as crianças pequenas iriam se morressem antes de remidas pelo batismo.
Por muito tempo arrastou-se a polêmica acerca do pecado original. Durante a reforma do século 16 vários grupos protestantes rejeitaram a doutrina agostiniana, adotando uma posição semelhante à do antigo pelagianismo. O ser humano não nasceria já culpado pelo pecado de Adão. Bebês natimortos seriam salvos e não iriam para o limbo, pois não tiveram oportunidade de pecar em suas vidas. Havia, porém, um consenso universal quanto ao fato de que o homem já nasce com uma natureza pecaminosa. Independentemente de nascermos ou não com a culpa pelo ato original de Adão, todos nascemos propensos a pecar. Surpreendentemente, este consenso não apenas sobreviveu ao ceticismo iluminista do seculo 18, como fortaleceu-se com as descobertas da ciência moderna.
Durante a maior parte dos primeiros 1500 anos da história da Igreja, os conceitos cosmológicos pré-científicos da Bíblia não foram seriamente questionados. Veio então a ciência para mudar isto de forma irreversível. No século 16, o heliocentrismo de Nicolau Copérnico, subseqüentemente apoiado pelas observações de Galileo Galilei, foi apenas um prelúdio ante a grande transformação que estava porvir. A partir do século 18, com o advento do iluminismo, interpretações literalistas da Bíblia passaram a enfrentar crescente ceticismo. Novos paradigmas filosóficos e teológicos varreram a civilização ocidental. Uma enorme explosão de conhecimento científico abalou a humanidade, e as coisas nunca mais foram as mesmas.
Sir Isaac Newton descreveu um cosmo racional regido por leis físicas previsíveis, Robert Plot descobriu o primeiro fóssil de dinossauro, Louis Pasteur e Robert Koch contribuíram com a descoberta de que as doenças são causadas por germes, Anton van Leeuwenhoek descobriu que os espermatozóides fecundam os óvulos na reprodução, Charles Darwin descobriu que a seleção natural é o principal mecanismo por trás da origem evolutiva das espécies, Gregor Mendel descobriu os mecanismos da hereditariedade, Alfred Wegener descobriu a deriva continental, Edwin Hubble descobriu a existência de galáxias fora da via láctea, e a dupla Watson/Crick descobriu a estrutura molecular do DNA. Estes e outros homens da ciência acenderam a forte luz da razão, e o obscurantismo que encobria a civilização se esvaeceu. O mundo outrora assombrado por demônios foi exorcizado. Com tudo isto, a compreensão literalista dos relatos bíblicos gradualmente caiu em descrédito². Porém, as descobertas da ciência iluminaram os significados metafóricos das narrativas bíblicas da criação, em especial os que abordam o comportamento humano.
Hoje a psicologia evolucionista constata que os teólogos da idade média sabiam do que estavam falando: os aspectos sombrios da natureza humana são de fato hereditários. Um tipo de pecado original realmente existe e é transmitido de geração a geração em nosso DNA.
A evolução moldou a espécie humana. A seleção natural determinou as características que nos definem como humanos. Como toda e qualquer espécie que tenha evoluído em nosso planeta, nossos ancestrais travaram uma luta de vida ou morte pela sobrevivência. Tal luta levou à seleção de características positivas e negativas que permitiram que o gênero Homo se perpetuasse. O que chamamos de pecado original é a soma de nossas características hereditárias negativas.
A origem do comportamento humano está vinculada à evolução do cérebro. Nos últimos 3,5 milhões de anos, o crescente desenvolvimento de habilidades sociais facilitou o acesso e compartilhamento de informações sobre a disponibilidade de alimentos, o que proporcionou o suporte metabólico necessário para que o volume do cérebro humano se expandisse tremendamente, a partir dos 300 mL do Australopitecus afarensis, até atingir seu tamanho atual de 1400 mL cerca de trezentos mil anos atrás. Com a expansão do cérebro humano, evoluímos a capacidade de auto consciência, e com isso aprendemos a discernir entre o bem e o mal. O fruto do conhecimento do bem e do mal tem um preço, pois na espécie humana o tamanho da elipse encefálica do feto requer uma maior expansão da bacia, região vulvo-perineal, e vagina durante o parto, o que provoca dores de parto mais intensas do que as sentidas por fêmeas de outras espécies (Gn 3.16).
Além do aumento no tamanho médio do cérebro humano, ocorreu também a diferenciação entre os tipos de células nervosas que o compõe. Isto foi imprescindível para a evolução da inteligência em nossos ancestrais e pode ser constatado através do estudo de nossa fisiologia cerebral.
A fisiologia do cérebro humano é claramente resultante da evolução. Nossa estrutura cerebral mais antiga é o cérebro reptílico, chamada assim por ser herança do tempo em que nossos ancestrais ainda eram répteis. O cérebro reptílico situa-se na base da nuca, e é constituído pelo tronco cerebral e o cerebelo. Nós compartilhamos esta estrutura primitiva com todos os répteis e mamíferos. Aqui originam nossos instintos primordiais de autodefesa, sustentação alimentar e reprodução sexual. Aqui se encontram os impulsos mais primitivos de defesa territorial e agressão. O cérebro reptílico é bem representado pela serpente do mito bíblico da criação, que desde o Éden primordial nos tenta a pecar e a perder a harmonia com o Criador.
Logo acima do cérebro reptílico encontramos o cérebro paleo-mamífero, também conhecido como sistema límbico. Esta estrutura cerebral herdamos do tempo em que nossos ancestrais répteis evoluíram e se tornaram mamíferos primitivos. Nós compartilhamos o sistema límbico com todos os mamíferos existentes, mas os répteis nunca adquiriram esta estrutura cerebral. Bem mais complexo que o cérebro reptílico, o sistema límbico é constituído por várias partes, incluindo a amígdala, o tálamo, o hipotálamo, o giro cingulado, a fórnix e o septo. Aqui originam as fortes emoções, como a paixão reprodutiva e o afeto pela prole. Vínculos familiares e a cooperação recíproca com outros da mesma espécie são possíveis graças ao cérebro paleo-mamífero.
Envolvendo o cérebro paleo-mamífero encontramos a parte maior e mais recentemente evoluída do cérebro humano, o cérebro neo-mamífero ou neocórtex. No neocórtex se encontram as funções executivas do cérebro, incluindo nossas faculdades racionais. Com o neocórtex somos capazes de utilizar linguagem simbólica, fazer cálculos matemáticos, antecipar eventos futuros, tomar decisões morais entre instintos conflitantes, e buscar o propósito de nossas vidas. É no neocórtex que se desenrola o ainda misterioso fenômeno da consciência.
O neocórtex contém cem bilhões de células nervosas, e é dividido em lobos frontal, parietal, temporal, e occipital. Aqui se destaca o lobo frontal, região mais evoluída nos grandes primatas, em especial no Homo sapiens sapiens. No lobo frontal encontramos o córtex pré-frontal, onde se encontra a circunvolução de Broca, área do cérebro humano que permite a linguagem falada.
Através da expansão do lobo frontal conseguimos aprimorar nossos instintos de empatia, altruísmo, e cooperação grupal de forma extraordinária. Descobrimos que fortes vínculos familiares são muito vantajosos. Isto nos ajudou a sobreviver em bandos de caçadores-coletores cada vez maiores, que gradualmente se tornaram tribos.
Instintos sociais negativos, tais como o egoísmo e a agressividade, também favoreceram a sobrevivência de indivíduos e grupos. Tais comportamentos negativos foram inicialmente vantajosos na defesa contra predadores de outras espécies, e posteriormente contra humanos de outros grupos competitivos. A necessidade de defesa contra ataques físicos, assim como a escassez de recursos alimentares, resultaram na seleção de fortes características competitivas. Desenvolvemos fortes comportamentos territoriais.
A territorialidade tribal surgiu com a necessidade de defender áreas onde havia abrigo e alimento de incursões inimigas, enquanto a territorialidade reprodutiva é resultante das diferenças comportamentais e fisiológicas entre os machos e fêmeas da espécie.
A espécie humana não é naturalmente monogâmica. Hoje a monogamia favorece a coesão da vida humana em sociedade, mas no passado as coisas não eram assim. Os machos do gênero Homo evoluíram com o instinto de espalhar seus espermatozóides o máximo possível, de forma a favorecer a própria continuidade genética. As fêmeas, por outro lado, evoluíram com o instinto de selecionar os melhores machos, de forma a garantir que a prole tenha maiores chances de sobrevivência. Estas diferenças entre os sexos refletem distinções hormonais e neurofisiológicas que foram necessárias para a perpetuação da espécie humana no passado remoto. Até hoje carregamos em nossos genes esta herança, que nos causa os conflitos sociais relacionados à territorialidade reprodutiva.
O fruto da territorialidade reprodutiva é o ciúme, reação emocional à possibilidade de traição pelo parceiro reprodutivo. A traição pode surtir uma variedade de conseqüências sociais negativas. Por exemplo, pode fazer com que uma fêmea seja abandonada e substituída por outra mais jovem, assim como fazer com que um macho crie filhos que não foram gerados por ele. O ciúme é herança natural instintiva da evolução e tem sua função social: evitar a traição. No entanto, quando o ciúme não é controlado, pode exacerbar-se em sua irracionalidade, levando-nos a cometer crimes passionais que podem levar à morte.
Como desde tempos imemoriais nossos diversos comportamentos territoriais levaram a situações conflitantes, tornou-se necessário o estabelecimento de regras comuns que regulamentassem nossos instintos sociais, mas isto só foi possível com a invenção da escrita, complementada pela agricultura e pecuária.
As invenções da agricultura e pecuária fizeram que as pequenas populações das tribos nômades da pré-história explodissem. Com o assentamento de terras as tribos se tornaram vilarejos, cidades, reinos, e depois impérios.
A invenção da escrita permitiu que nossos instintos sociais fossem codificados pelas mais antigas religiões da humanidade. Nossos instintos sociais negativos passaram a ser desencorajados através de penalidades previsíveis, enquanto nossos instintos sociais positivos receberam a ênfase necessária para dar continuidade e coesão a cada cultura incipiente. Surgiram então o código de Hamurabi e as leis bíblicas encontradas nos livros de Levítico e Deuteronômio. Isto ocorreu no período conhecido como Era Axial, entre 800 e 200 a.C.
Compreender que nosso jeito tão humano de ser foi moldado pela evolução é algo poderosamente libertador (Jo 8.32). Hoje sabemos o porquê de sermos tentados por fortes impulsos e confrontados com decisões morais difíceis. Podemos lidar com nossos instintos sociais de forma esclarecida, sem temer que seres diabólicos invisíveis estejam nos assombrando, influenciando nossos pensamentos e sentimentos. Não somos fantoches manipulados por demônios. Somos seres autônomos dotados de livre arbítrio. Os demônios são apenas símbolos de nossos próprios impulsos conflitantes interiores. Libertos dos antigos legalismos baseados em psicologias pré-científicas, podemos tomar a livre iniciativa de enfatizar nossos comportamentos positivos e evitar os negativos, isentos de culpa e paranóias demonomaníacas.
O esclarecimento evolucionário nos possibilita tomar decisões morais de forma responsável. Não é mais necessário esconder o fato de termos dentro de nós impulsos e desejos que podem causar conflitos em nossos relacionamentos com as pessoas que amamos. Não precisamos reprimir ou esconder que temos sentimentos causados por nossos instintos como se fossem segredos inconfessáveis. Sabemos que todas as pessoas compartilham de tais impulsos e desejos, pois somos todos frutos da evolução. Podemos compartilhar nossas dificuldades com aqueles que amamos e buscar ajuda profissional quando necessário, pois somos todos iguais. Podemos pulverizar os tabus moralistas, banir a vergonha e resolver conflitos de forma transparente e esclarecida.
Podemos também ser mais compreensivos com outras pessoas, pois sabemos que elas também herdaram os mesmos instintos que nós. Somos todos humanos, e nenhum de nós escolheu nascer com a herança evolutiva do pecado original em nosso DNA. Nossos atos são decisões morais que conscientemente tomamos, mas nossa herança evolutiva é involuntária. Reconhecer este fato faz com que o ato de perdoar se torne muito mais fácil.
A evolução produziu em nossa espécie tanto a bênção original quanto o pecado original. Ao reconhecer que nossos comportamentos são frutos da evolução, podemos honrar o passado e venerar o espírito das leis levíticas e deuteronômicas sem cair nas armadilhas do fundamentalismo bíblico. Assim somos livres para viver de acordo com a lei do amor.
Como disse Jesus de Nazaré, “em apenas dois mandamentos se sustentam a lei e os profetas; amar a Deus de forma total e imersiva, e amar a outros seres humanos como amamos a nós mesmos” (Mt 22.37-40). Esta lei do amor é suficiente, pois nela todo legalismo intransigente se dissolve. Se amamos ao nosso próximo, não ousaremos fazer nada que o prejudique. Assim podemos automaticamente viver em comunidade de forma justa e harmoniosa. Este é o espírito do verdadeiro e puro cristianismo. Vivamos neste espírito, então, como pessoas evolucionariamente esclarecidas.
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¹ O Império Romano era grande demais, mesmo para o governo. No ano de 308 d.C., Roma chegou a ter 6 imperadores simultâneos, cada qual com sua região. Inevitavelmente os imperadores entraram em batalhas sucessivas nas terras bárbaras, matando um ao outro, até que em 323 d.C. apenas Constantino II permaneceu, assumindo o controle de todo o império e fundando a 2ª Capital em Constantinopla. Em 313 d.C. Constantino declarou o Cristianismo como a religião oficial de Roma, mas ele mesmo somente se deixou batizar no leito de morte, em 337 d.C.
² Há uma longa história de duelos entre a fé bíblica e o conhecimento científico. Boa parte dessa briga se origina da crença que a Bíblia é A ÚNICA fonte de conhecimento "verdadeira". As pessoas que escreveram os textos bíblicos, no entanto, nunca pareceram interessadas em fazer um livro científico (e muitos trabalhos "científicos" foram feitos simultaneamente aos textos bíblicos, pelos judeus inclusive), mas sim um livro que conduzisse as pessoas à fé em Deus. Mesmo hoje, esse duelo permanece.
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