- Ei Baltazar, quantos podem chegar onde está aquela estrela?
- Na Bíblia não tem número definido. Nem para nós.
- Isso me deixa muito mais tranqüilo...
O Natal não celebra o nascimento de Papai Noel, e sim de Jesus Nazareno. No entanto, várias controvérsias rondam essa data que, na grande verdade e a meu ver muito míope, celebra a família e a fartura do ano. Fazem-se belas ceias, com pratos que são muito caros ou muito elaborados para se comer durante o ano e tais pratos não são oferecidos a qualquer um, mas à família das pessoas. Poucas ocasiões são tão certas para reunir os membros de uma família quanto o Natal.
Algumas famílias dão caráter religioso a data passando-a nas igrejas, mas a maioria dos brasileiros, embora conhecedores do fundamento religioso, aplica nesse dia a dádiva de bem-receber seus familiares em casa ou estar na casa de um deles. Reúnem-se no Natal famílias que muitas vezes pouco se falaram durante o ano todo e que, nessa breve data, tentam recuperar os conhecimentos perdidos de uns sobre os outros, tentam recuperar algo da comunhão, da participação de uns na vida dos outros e assim dizer um não ao sentimento tão moderno de ESTAR SÓ NO MUNDO.
Quando crianças, muitos de nós tiveram a chance de ter em comunhão, numa mesma casa, três gerações da família. Isso apresentou a cada um uma prova (viva e ilustrativa) da continuidade das pessoas, com os avós falando aos pais e os pais aos filhos. Quando crescemos, o número de gerações na casa diminui para duas e finalmente a apenas uma. O homem deixa seu pai e sua mãe, para unir-se à mulher com quem era-é-ou-será apenas um, diz a Bíblia (Gn 2.24, Ef 5.31). No entanto, quando isso acontece, o modelo já foi desenhado e, intimamente, todos que saíram de sua casa buscam um dia refazer aquilo que foi perdido, as várias gerações juntas. O Natal é uma boa desculpa para isso, assim como outras festas de nascimento que chamamos aniversários.
A FESTA DE FIM DE ANO
Por outro lado, quem chama os familiares quer dar boas notícias do ano que se passou. Quando os contatos durante o ano foram poucos, pobres ou até não ocorreram, fica ainda mais séria a necessidade de contar e mostrar o que se deu nesse tempo. Mas não necessariamente tudo: se o Natal é a reunião da família, é também a hora em que todos medem sua habilidade de chefiar o grupo, mesmo que esse grupo só mostre que existe, de fato, no Natal. A Grande Festa é a forma de todos saberem uns dos outros, mas saberem para fazer o quê?
Manda uma grande regra não escrita que seja essa reunião uma cerimônia de agradecer pela fartura do ano. Mas todos tiveram fartura para agradecer? Quem acredita que não teve fartura, logo deixa a idéia de festejar o Natal em sua casa, para buscar a fartura de alguém que a comemore. Afinal, o Natal é data de alegria!
Nos lugares que sofrem com o inverno, o Natal é o meio exato dessa estação, a época e até o dia mais frio do ano. Em 23 de Dezembro a Terra alcança sua inclinação máxima em relação à rotação dos dias e ocorre o solstício no qual os países do norte têm sua noite mais longa e os do sul têm seu maior dia! Por isso as tradições européia pagãs (leia-se rurais) tinham o que festejar: quem sobreviveu até o Natal, quem conseguiu guardar mantimentos até essa noite teria dias cada vez melhores à frente. Assim, embora Natal seja um termo para se referir ao nascimento de Jesus usado desde a cristianização de uma Roma que abrangia toda a Europa, é um termo de 2ª mão, usado muito antes para indicar o re-nascimento do sol e seu mais óbvio significado para as pessoas: o calor.
O ÚNICO NATAL DA BÍBLIA
Na Bíblia, não são comemorados os Natais, isso entre os cristãos e pelo menos até o final do 1º século, quando foram escritos os livros mais novos. No entanto, a Bíblia nos dá uma referência do 1º Natal como sendo no reinado de César Augusto (27 a.C. a 14 d.C.) e com a visita de três rabis (no livro de Mateus fala-se em magos do Oriente (Mt 2.1), no livro de Lucas em pastores (Lc 2.8-20)) que seguiam uma estrela e vão até um local bem modesto onde Jesus nascera havia pouco. Essa cena do presépio, retratada em quase todos os cantos, é a referência bíblica mais comum sobre o Natal e justamente ela reforça a idéia dos presentes. O nascimento do Rei dentre os reis é mostrado junto ao oferecimento dos sinais de fartura: ouro (o mais admirado dos metais), incenso (a oferta dada aos deuses) e mirra (o grande remédio, para os povos do deserto). Esses singelos sinais de fartura, curiosamente, se refletem nas ações das pessoas em torno do natal: oferecer presentes (e tanto mais valiosos quanto possível) e banquetes (e tanto mais deliciosos e fartos quanto possível) ao familiares. Mesmo as estórias natalinas que ouvimos, repetimos, contamos e encenamos carregam como elementos a família, a comemoração, a comida e os presentes.
TRÊS REIS, BURRO E BOI
Em 1224, o monge Francisco de Assis montou pela primeira vez um presépio vivo, querendo reviver as cenas da noite da natividade na cidade italiana de Greccio. Com moradores locais, ele encenou a noite do nascimento de Jesus com José, Maria, o Menino, os reis magos Melchior, Baltazar e Gaspar, juntamente com um boi e um burrinho. O presépio vivo de Francisco de Assis inspirou a criação do presépio em todos os sentidos da arte: encenação, escultura, literatura, música e finalmente desembarcou no Brasil do século 16, trazido pelo frade Gaspar de Santo Agostinho. Para quem conheceu os tempos mais antigos, pode-se dizer que “antigamente imperava o presépio como símbolo da festa da família, sendo poucas as casas em que não se armava o presépio”. No séc. 19, as famílias ricas montavam grandes presépios em suas salas abertas à visitação, onde as pessoas faziam oferendas, cantos e danças. Como tradição, o presépio hoje foi quase substituído pelo pinheiro enfeitado (bem menos teatral e religioso), embaixo da qual os presentes fazem questão de aparecer.
Naquele 1º Natal em meio a animais da vida agropastoril, certamente estavam presentes a família (ainda que pequena) e os presentes, a Bíblia nos diz isso. E diz também que havia festa nos céus (Lc 2.14), o que dá excelente margem à comemoração. A comida foi um valor inserido ao longo das eras pelas pessoas, que tradicionalmente se juntam nas horas das refeições, desde os longínquos tempos de Jó (Jó 1.4). Quero dizer assim que, embora as festas natalinas não sejam muitas vezes uma recitação da Bíblia, elas encenam de uma forma ou outra o 1º Natal, como fazia o presépio de Assis, e ainda re-apresentam às pessoas os valores que elas lá no fundo têm de mais fortes, mesmo que tenham dificuldade de praticá-los: a família reunida e a comunhão de uns com os outros que Jesus buscava quando comia na casa de Fariseus, Publicanos, etc e quando convidava a sua mesa pescadores, zelotes, e todos quanto encontrasse precisando Dele.
VOLTANDO À FAMÍLIA
Seguindo o que Jesus ensinara ainda a sua geração, os membros da igreja primitiva tentaram ser uma comunhão familiar, com os Cristãos repartindo propriedades, capas, pãos e histórias entre si. Separados, os cristãos ainda mandavam notícias, dinheiro e ordenamentos entre si. Sabemos disso das suas cartas que tivemos a honra de ler (e quantas não lemos?), quase 2000 anos depois de escritas. Você seria duro ou profundamente sincero com alguém com quem não tem comunhão, que não fosse seu mais terno amigo, pelo menos? Nem eu, e imagino que também Paulo, Tiago, Pedro, João Marcos, Lucas ...
Na era da informação, dos mundos e identidades virtuais particulares, muitas pessoas só sabem de seus familiares quando os encontram na festa de Natal. Ali, juto àqueles que referenciam sua organização mental de “como um mundo bom deve ser”, e talvez em uma única noite, tentam recriar a comunhão de todo um ano contando quem nasceu, quem morreu, quem fez o que fez de suas vidas, as lutas e os prazeres que teve. Mais importante ainda, é nessa hora que cada um terá de contar e mostrar aos outros membros da sua tribo qual a importância que tem. Nas falas, infelizmente só há tempo de contar um resumo entre o “bem vindo”, a comilança e o “boa noite”, pois não quiseram ou não puderam levar as famílias junto a esses acontecimentos importantes, e nessa única noite talvez guardem as imagens que terão uns dos outros por todo um novo ano. Essa imagem precisa ter algo de bom, para ela tentamos vestir a melhor roupa, ter o melhor sorriso, levar o melhor prato e o melhor presente, apresentar os melhores filhos.
NÃO PERCA O ESPÍRITO
A festa de Natal é um tempo de alegria, mas também de compromissos de uns para com os outros que cada qual imagina. É juntar sua melhor imagem, alguns presentes e a sua família para re-falar aquilo que o presépio de Assis contava, sobre uma festa onde os pais apresentam seu fruto e os convidados presenteiam mostras de sua fartura. Contudo, o livro de Eclesiastes diz que é vaidade quase toda ação humana, e mesmo o sacrifício da própria vida pode ser inútil se não houver amor (1 Co 13). Também, o fruto que José e Maria mostravam aos reis pastores não era deles, e sim do Alto. Se não pudermos oferecer algo de Deus às pessoas, mesmo que seja a nossa oração, nada de diferente estaremos fazendo nessa grande noite. A festa, que seja preparada por amor, não por compromisso. A ceia, que leve o amor de quem fez para quem come. Os presentes, que sejam uma parte de si dada ao outro. E a família, ainda que só por uma noite resgate os bons tempos passados juntos, mesmo que noutros natais, muito mais do que serem relatórios não solicitados sobre as nossas vidas.
Talvez alguém pergunte: onde está Jesus nisso? Talvez seu nascimento até passe esquecido nesse vai e vem de pessoas, como passou esquecido para todos os escritores bíblicos no NT. Bom é que não passe mas, se houver amor entre os homens, Ele certamente se sentirá convidado a entrar e falará pessoalmente a todos.
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COISAS ALHEIAS QUE NOS PEGARAM LENDO
Elza de Mello Fernandes, Terno-de-reis e boi-de-mamão em içara (SC): as relações dialógicas na linguagem folclórica do ciclo natalino num município multiétnico, Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Ciências da Linguagem na Universidade do Sul de Santa Catarina, Tubarão/SC, 2004.
Mércia Pinto, Pastoril: estabilidade e mudança numa festa popular brasileira, Em Pauta 13(20), 2002.
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