Enrique Simonet Lombardo, 1892
Nem contarei quantas vezes já ouvi pessoas cobrando que os cristãos se comportem de modo “ortodoxo”, ou na melhor definição da palavra, “como se espera façam”. Naturalmente, isso vem da boca de cristãos e não cristãos.
Os cristãos votam a favor de constituírem um grupo coeso, com mesmas roupas, mesmo tom de voz, mesmas frases, mesmo repúdio a quem for de fora do grupo mais austero e santo do munto. Os “de fora” são vistos como necessitando de conversão, sem a qual não é possível passar sequer um tempo prazeroso em sua companhia. Na história de nossa religião, os “de fora” já foram romanos, gregos, pagãos (os europeus em geral), turcos, islâmicos, outras vertentes do cristianismo, feiticeiras, cientistas, protestantes, católicos, negros ou índios, etc. Hoje, os “de fora” parecem ser os Capitalistas, os de crenças afro, os que não toleram restrições comportamentais e os não-heterosexuais. Contra eles e/ou suas práticas entoam a maioria das vozes nos púlpitos. Evidentemente, num mundo onde mesmo outras vertentes do cristianismo podem ser enquadradas como “de fora”, a vida em sociedade requer bastante flexibilização dos relacionamentos. No fim, as igrejas tornam-se uma espécie de porto seguro dos cristãos, em especial os evangélicos.
O que pretendo aqui é falar um pouco sobre como Jesus - pretendido modelo dos cristãos - se relacionava com os judeus. Obviamente não há como negar que se tratava de outro tempo, outra realidade social: Jesus viveu entre um povo de valores orientais, numa província menor subjugada por Roma. As pessoas ali eram educadas mediante textos exaltando a proteção de Deus ao Seu povo e conviviam com a subordinação de seu Estado a Roma, subordinação de seu povo aos romanos, cobrança de impostos e problemas diante da rejeição de César como seu deus. As nações ao redor tinham mais tranqüilidade, nesse ponto. No tempo de Jesus, os “de fora” eram claramente os não-judeus, com especial ênfase no comportamento das classes mais politicamente poderosas. Para esses, seu status dependia da boa graças dos romanos. Mais especificamente, “os outros” não condizentes com a fé judaica eram samaritanos, gregos, romanos e coletores de impostos.
UM MESSIAS DESTRUIDOR
Estamos falando aqui daqueles que se misturavam nas sinagogas onde Jesus ensinava, que freqüentavam o Templo e a companhia de profetas andarilhos como João Batista. O rabi logo chama a atenção por dizer-lhes para serem diferentes. Diferentes não significa fora da congregação, mas diferentes da congregação. No Sermão da Montanha, tido como uma das maiores expressões da Cristandade e bem detalhado no Evangelho de Mateus, Jesus dá as diretrizes de como um cristão deve se comportar. É talvez nesse ponto ele inaugura o Cristianismo, por apresentar uma lei diferente da Lei de Moisés, diferente do que era lido nas sinagogas pelos Fariseus e Saduceus.
Vocês são o sal da terra. Mas se o sal perder o seu sabor, como restaurá-lo? Não servirá para nada, exceto para ser jogado fora e pisado pelos homens. (Mateus 5.13)
Jesus incita o Seu grupo a serem pobres, humildes, misericordiosos, puros de coração, pacificadores, mais justos que os Fariseus e mestres da lei. Reparemos que, se estas fossem as práticas usuais das pessoas, Jesus não seria um rabi ao ensiná-las. Sua contravenção estava justamente em dizer aos “de dentro”, santos das sinagogas, que deviam ser diferentes… pobres, humildes, etc.
Jesus ia mais longe, ao dizer nas entrelinhas que a própria Lei de Moisés era mundana. Em sua fala, ele fez entender que não era suficiente cumprir a Lei, mas era preciso estar acima dela. Separar-se é permitido pela Lei, diz Ele, mas quem se separa faz mal a si e ao companheiro. Jurar é permitido, mas ninguém é digno de jurar. Vingar-se é permitido, mas perdoar é melhor. Jesus quer excelência, não apenas obedecedores.
Mas quando você der esmola, que a sua mão esquerda não saiba o que está fazendo a direita, de forma que você preste a sua ajuda em segredo. E seu Pai, que vê o que é feito em segredo, o recompensará. (Mateus 6.3,4)
Depois de quebrar a auto-santidade das pessoas e a força de sua Lei, nada mais natural que tirar a autoridade de seu julgamento. Jesus afirma então que os recompensados por Deus não são os recompensados pelos homens. Pensemos a respeito disso: os judeus tidos como excelentes, ele dizia que já tiveram seu galardão. Fariseus, saduceus, escribas, exemplos de integridade estariam de fora. O galardão de Deus seria para os que ninguém homenageava...
UM MESSIAS DIFÍCIL DE ENTENDER
Em certas partes de seu ensino, Jesus talvez deixasse os seguidores de cabelos em pé. Ao mesmo tempo em que afirmava a validade suprema da Lei de Moisés, afirmando que passariam Céus e Terra antes que qualquer vírgula fosse alterada (Mateus 5.17-19), Ele seguia com uma enorme série de “a lei diz isso, eu porém vos digo aquilo”. Seu pedido por excelência das pessoas não deixava de ser uma enorme alteração da Lei, no sentido em que substituía o requerido pelo texto pelo requerido por Quem fez o texto. A Jesus não importava o que estava escrito (apesar de Sua referência explícita ao texto da Lei), mas um sentido nas entrelinhas daquilo tudo.
Boa parte dos questionamentos sobre Jesus vinham dos discípulos de João e Fariseus atentos aos Seus descumprimentos de jejum (Mateus 9.14), higiene pessoal (Mateus 15.2), resguardo do sábado (Mateus 12.2) etc, como estava escrito na Lei. A eles, Jesus respondia que simplesmente as circunstâncias não convinham, pois o Noivo estava com eles, era o que vinha de dentro que contaminava o homem e Ele era senhor do sábado¹. Ou seja, Jesus dizia na cara de todos que a Lei não era absoluta, mas devia ser aplicada em algumas situações e não em outras².
FORA DA LEI
Os ensinamentos do Sermão da Montanha e o próprio Messias heterodoxo, às vezes paradoxal, sem dúvida foram criticados por todos atentos a uma representação literal da Lei, algo que fosse maior para os homens do que sua “boa intensão”. Por um lado, Jesus dizia que os seus seguidores deveriam ser conhecidos, que suas obras deviam ser “lâmpadas para serem vistas” (Mateus 5.14-16). Depois, ele emendava que as boas obras deveriam ser feitas em segredo (Mateus 6:1-4). Pelos frutos se conheceria a boa árvore (Mateus 7.16-18), mas nem adiantaria expulsar demônios e fazer milagres, se isso não fosse a vontade do Pai (Mateus 7.22,23). E olha que expulsar demônios era prova de estar a serviço de Deus (Mateus 12.25,26). Jesus também prescrevia o inferno para quem simplesmente chamasse a outro judeu de “louco”, afirmando que isso era equivalente a matar alguém (Mateus 5.21,22), no entanto Ele mesmo repetidamente chamava seus ouvintes de “loucos”, “insensatos”. Como conciliar uma lei escrita com um Messias assim?
O discurso desse Jesus fora-da-Lei entretanto não deixava de conquistar as multidões. Ele instruía a não reagir a ofensas (Mateus 5.38-41) e abandonar-se à providência, pois Deus cuidava até dos menores animais (Mateus 6.25-32). Muitos críticos dizem que ensinamentos como esses, embora fossem prontamente acolhidos pelos menos favorecidos entre os quais Jesus pregava (e somente por eles), ao invés de equilíbrar as relações entre as pessoas, induzem a um estado de vitimização. Em outras palavras, não levaria a nenhuma melhoria social nas relações com os romanos. Talvez crendo nisso, embora Jesus tenha chamado de “bem-aventurados” os pacificadores e os perseguidos (Mateus 5.9-12), os Cristãos de fato logo buscaram poder político e abandonaram seu status de humildade perante outras crenças…
Jesus também prescrevia que perdoassem e amassem os inimigos (Mateus 5.43-47), que orassem em secreto (Mateus 6.5-8). Ao mesmo tempo, Ele colocava que não haveria misericórdia para quem O negasse (Mateus 10.32,33). Dizia para que não ficassem repetindo orações como os pagãos, mas emendava com o ensino do Pai Nosso aos seus ouvintes (Mateus 6.7-15). Quem poderia deixar tudo e segui-Lo, largar terras, família (Mateus 10.37,38), não voltar nem para enterrar um parente? Aparentemente, foi o que muitos fizeram, gerando um Cristianismo que muito se importava com o que Jesus representava e nem tanto com o que Ele havia de fato ensinado.
O CRISTIANISMO DE JOÃO
O Sermão da Montanha, embora tomado como supremo ensinamento Cristão, está longe de ser um conjunto de diretrizes norteando a vida dos Cristãos. Embora exista toda uma valorização da Igreja Primitiva conforme descrito no livro de Atos dos Apóstolos (tido como uma continuação do Evangelho de Lucas), o Sermão não foi seguido fielmente no passado e talvez em nenhum momento da história cristã. Como dito antes, talvez segui-lo em substituição à Lei de Moisés seja impraticável.
Os próprios evangelistas discordam quanto a sua existência. O Evangelho de Mateus apresenta um discurso organizado e proferido sobre uma montanha na Galiléia, perto de Cafarnaum, para onde Jesus teria convocado seus seguidores. Marcos nem cita a existência desse sermão, embora partes dele apareçam claramente no texto, fora de ordem e de forma bem mais sucinta do que em Mateus. Lucas coloca Jesus chamando os seguidores a um local plano, o que faria um “Sermão da Planície”. Há uma quantidade menor de ensinamentos e parte do que está listado em Mateus aparece em outras partes do Evangelho de Lucas, fora de ordem. O Evangelho de João não cita o Sermão nem qualquer dos ensinamentos descritos nos outros evangelhos³. Apenas algumas sugestões são dadas em certas passagens.
Quadro comparativo do Sermão da Montanha, segundo apresentado no Evangelho de Mateus. As referências a João são suposições, sem uma estrutura do texto como nos demais livros.
Se o Sermão não se trata de um conjunto real de ensinamentos de Jesus, mas algo trazido do Velho Testamento ou da cultura judaica em que Jesus e os apóstolos estavam (ver João 7.3,4, condizente com o tema “Lâmpada para ser vista”), então o livro de João é o que temos de mais preciso sobre as falas do Senhor. Em João, não há um Messias fora-da-Lei nem tão heterodoxo, mas alguém que realizava milagres, que perdoava (João 8.3-11), que clamava ardentemente para ser honrado como a representação de Deus4, que pregava a humildade (João 13.1-17), que os homens amassem uns aos outros (João 15.12), que afirmava que estaria sempre com seus discípulos (João 14.21). Curiosamente, com exceção dessa última afirmação, as demais são exatamente o cerne das “Bem-aventuranças” descritas nos Sinópticos como a introdução do Sermão da Montanha ou da Planície.
Embora o Jesus de João seja radicalmente diferente do deus legalista de Moisés, especialmente por pregar mais a fé em Sua pessoa do que o seguimento de leis/ensinamentos, ele está mais próximo do Cristianismo conforme praticado do que os Sinópticos. Claro, os poucos ensinamentos desse Jesus em particular também não foram seguidos…
MUDANDO UMA VELHA HISTÓRIA
Temos de admitir que a ética do Sermão da Montanha, do nosso Jesus fora-da-Lei, é exatamente como é a ética do Antigo Testamento. Nada é dito no sermão sobre a incapacidade do homem para fazer o bem (conforme assegurado por Paulo); nem há nada sobre a necessidade de Jesus como mediador (conforme o Evangelho de João), ou sobre a redenção pelo Seu sangue (Mateus 26.28; Marcos 14.24; Lucas 22.20; João 6.53-57). O que está no Sermão da Montanha é o perfeccionismo, a salvação pela retidão moral do próprio homem. O Sermão da Montanha, assim, se coloca plenamente no contexto do Antigo Testamento e do Judaísmo.
A impossibilidade de cumprir os ensinamentos do Sermão talvez se pareça com o Cristianismo no sentido em que Paulo falaria, mais tarde, sobre uma Lei que não leva a salvação alguma, mas serve para escancarar o pecado de cada um (2ª Coríntios 3). Dessa forma, contudo, o Jesus dos ensinamentos e parábolas dos Sinópticos se tornaria o Jesus de João. Segundo alguns estudiosos, o Sermão que faz um Jesus fora-da-Lei de fato se parece muito a uma coletânea de instruções isoladas, propositalmente organizadas para servirem - muito curiosamente - como uma espécie de instrução pré-batismo.
Quem ensinaria com instruções que não podem ser cumpridas? Talvez a simplicidade do Jesus de João mostre porque, afinal, o Cristianismo nunca tenha podido ser rígido e exato como os mais fundamentalistas desejam.
---------------------------
É LENDO QUE SE ENTENDE A FRASE
Bob Zunjic, Phylosophy, Sermon on the mount
Joachim Jeremias, 1961, The Sermon on the Mount
Gospel of John - wikipedia
Pré ou Pós Conceito: Porque os evangélicos são vistos como radicais?Kurt Aland, 1885, Gospel Parallels
Sermon on the Mount - Iron Chariots Wiki
---------------------------
¹ A respeito do sábado, a Lei de Moisés mandava
Fazer santo significa oferecer a Deus e, nesse caso excepcional, assim como em sua explicação a respeito de Davi, seguir a Jesus podia ser aceito como cumprimento da Lei.
² No entanto, é difícil pensar em boas aplicações de instruções para matar.
³ As discrepâncias de conteúdo entre o Evangelho de João e os de Mateus, Marcos e Lucas (sinópticos) são tão grandes que alguns estudiosos julgam impossível que ambas as versões sejam verdadeiras. Apesar disso, tanto João quanto os sinópticos são condizentes com os anos que se seguiram a Jesus. As variações nas ordens dos acontecimentos sugerem que o material todo se tratava originalmente de ensinos isolados, talvez escritos em tabuletas independentes, como no livro de Provérbios. Em algum momento, esse material teria sido juntado em um texto contínuo, na seqüência que cada autor achou mais conveniente. Alguns erros de datas (ex. o censo de Quirino sendo no tempo de Herodes) e divergências dos fatos (ex. sobre o nascimento de Jesus) são aceitáveis como inclusões próprias de cada autor.
As repetições de alguns ensinamentos reforçam a idéia de uma “arrumação” dos fatos. Mas isso não resolve a questão da diferença de conteúdo. Em todos os pontos onde uma ordem cronológica pode ser traçada (por exemplo com referências a colheita, estações do ano, etc), o Evangelho de João parece ser o mais correto. Também, onde as evidências históricas atuais podem ser confirmadas, o Evangelho de João mostra-se mais preciso que os demais. Enquanto nos Sinópticos os ensinos de Jesus aparecem como falas esparsas (estilo do Velho Testamento) ou parábolas (estilo grego), em João esses ensinamentos aparecem como discursos típicos das sinagogas. Apesar disso, trata-se de um livro mais pobre que os Sinópticos em fatos sobre Jesus, tratando essencialmente de Sua natureza divina.
4 Opinião pessoal: eu diria que a insistência do Jesus de João nesse tema lembra bastante as repetições de Javé sobre “não terás outros deuses” nos livros de Êxodo e Deuteronômio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe um comentário!