sábado, 9 de novembro de 2013

Sabedoria de Salomão - os autores misteriosos

Salomão, na re-pintura de um famoso desenho de Gustave Doré

Faz tempo que estou ensaiando escrever sobre o livro Sabedoria de Salomão, às vezes simplesmente chamado de Sabedoria. Acho que eu sempre fiquei impressionado com o fato de um livro ser ao mesmo tempo tão religioso, tão humano e tão apócrifo. Faz a gente pensar... Se os livros da Bíblia são os únicos inspirados por Deus, o livro de Sabedoria foi um dos primeiros demitidos desse rol de obras sagradas (em outras palavras, suspeita-se que o autor não foi inspirado por coisa alguma). Se há livros fora da Bíblia inspirados por Deus, porque continuam fora? E se não houve inspiração nenhuma para esse livro, porque ele pesa tanto no coração a ponto de colocar religiosos acalorados em lados distintos da disputa?

Se repararmos bem, só os 10 Mandamentos, em toda a Bíblia, foram ensino racisticamente divino. Todo o restante são exemplos bons, ruins e duvidosos da vida de PESSOAS que se relacionaram com Deus. Pessoas que amaram, sofreram, tiveram ódio, festejaram, encheram a cara, tiveram vermes, bateram, apanharam, casaram, ajudaram, etc. Mesmo o código de leis de Moisés, talvez a parte mais legalista de toda a Bíblia, parece feito e ajustado para as pessoas que viviam junto dele. Paulo e Pedro também falaram (e até brigaram) de regras de comportamento, mas nelas transparece nitidamente um Paulo abandonado nas prisões e um Pedro receoso pelo seu status, a única riqueza de um pescador pobre e velho. Como poderiam não falar do que tinham o coração cheio?

1ª PARTE - PRÓLOGO E ADVERTÊNCIA AOS LEITORES (1.1 até 1.11)

"Somente o puro poderá ler esse livro"... É mais ou menos nesse tom que se inicia a narrativa. O autor dirige-se aos reis e adverte que o Senhor se afasta de qualquer forma de maldade, sendo alcançado somente pela simplicidade de coração. Assim a parte inicial adverte os leitores:

Aquele que profere uma linguagem iníqua, não pode fugir dele, e a Justiça vingadora não o deixará escapar; pois os próprios desígnios do ímpio serão cuidadosamente examinados; o som de suas palavras chegará até o Senhor, que lhe imporá o castigo pelos seus pecados. É, com efeito, um ouvido cioso, que tudo ouve: nem a menor murmuração lhe passa despercebida. (Sab 8.10)

E você preocupado com hackers...

2ª PARTE - O PODER DE DEUS (1.12 até 9.18)

O livro segue então fazendo uma ode ao poder do Senhor, identificado aqui também como a Sabedoria, como no livro de Provérbios. O Senhor/Sabedoria retribui de forma fantástica aos que o seguem em seus modos de vida, e também põe fim ao ímpio. A Sabedoria consiste em uma vida de pureza, como era o pensamento grego:

Não procureis a morte por uma vida desregrada, não sejais o próprio artífice de vossa perda. Deus não é o autor da morte, a perdição dos vivos não lhe dá alegria alguma. Ele criou tudo para a existência, e as criaturas do mundo devem cooperar para a salvação. Nelas nenhum princípio é funesto, e (a Morte, ou o Hades) não é a rainha da terra, porque a justiça é imortal. Mas, (a Morte), os ímpios a chamam com o gesto e a voz. Crendo-a amiga, consomem-se de desejos, e fazem aliança com ela; de fato, eles merecem ser sua presa. (Sab 1.12-15)

Existe uma diferença conceitual entre essa busca por pureza e o que Paulo descreve em suas cartas. Ele enumera princípios espirituais que devem governar a vida das pessoas: amor, gozo, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fé, mansidão, temperança, e que se distinguem das "paixões carnais". Aqui, a pureza se aplica ao mundo carnal (o equivalente do atual "coma verduras", "pratique exercícios"). Tal filosofia de pureza é tipicamente grega e norteou muito do pensamento atual, além do pensamento ROMANO quando João, Jesus e os discípulos pregavam. Por isso, rapidamente a pregação do Cristianismo foi associada a uma moral de comportamentos que, de fato, NÃO APARECE nas falas do Senhor.

A idéia de morte apresentada no Velho Testamento, como uma punição ou destruição, aqui é pela 1ª vez contraposta com a Salvação, que inaugura o Novo Testamento:

Ele [o justo morto] agradou a Deus e foi por ele amado, assim [Deus] o transferiu do meio dos pecadores onde vivia. Foi arrebatado para que a malícia lhe não corrompesse o sentimento, nem a astúcia lhe pervertesse a alma. ... O justo, ao morrer, condena os ímpios que sobrevivem, e a juventude, atingindo tão depressa a perfeição, confunde a longa velhice do pecador. Eles verão o fim do sábio, e não compreenderão os desígnios do Senhor a seu respeito, nem por que ele o pôs em segurança. (Sab 4.10-17)

Embora muitos cristãos atribuam essa "mudança de entendimento" à pregação de Jesus, ela na verdade ocorreu um pouco antes e um tanto longe de Israel.

O filósofo grego-judeu Philon (20 a.C. - 50 d.C.) foi um dos que se puseram a estudar o judaísmo na Escola de Alexandria (anexa à Grande Biblioteca), acreditando que a interpretação criteriosa da Torá poderia conduzir o homem ao conhecimento de Deus (Sabedoria). Durante a perseguição do judeus pelo imperador Gaius Julius Caesar Augustus Germanicus (Calígula) quando se recusaram a prestar culto ao imperador, Philon fez a defesa dos judeus contra seus acusadores. Sua obra foi marcada pela idéia da "Salvação do justo", que ele via transparecer na Torá. Por exemplo, quando Calígula recusou-se a ouvir seus argumentos, Philon anunciou ao povo que "a raiva do imperador colocava Deus contra ele". Esse conceito difundiu-se enormemente em toda Roma e Grécia, de forma que a pregação libertária de Jesus talvez tenha sido surpreendente aos judeus pobres, mas certamente não era estranha aos Fariseus como Gamaliel, nem aos romanos como Saulo de Tarso.

A exposição sobre a Sabedoria é sem dúvida a parte mais religiosa do livro, colocando a ação divina como comandadora absoluta das ações humanas perpetradas pelos próprios humanos! E qual era o maior símbolo judeu de Sabedoria? Salomão.

SABEDORIA DE SALOMÃO

O 1º comentário sobre o livro Sabedoria de Salomão apareceu na obra do historiador romano Eusebius de Cesaréia (260-340 d.C.), que escrevia a história dos judeus a partir dos livros sagrados. Para os historiadores de hoje, só isso isso já desqualifica o livro como obra de um rei judeu de 950 a.C. Afinal, AONDE o livro teria estado em todo esse tempo que jamais se falou qualquer coisa dele? Além disso, a cópia mais antiga usa a palavra "sebasma" para identificar "ídolo". Essa gíria foi típica do reinado de César Augustus (63 a.C. - 14 d.C.), quando os imperadores começaram a ser cultuados como deuses... e o próprio livro fala muito sobre idolatria. Finalmente, o modo como foi escrito lembra muuuuito os discursos do de Philon de Alexandria.

Os vários períodos são semelhantes, assim há um consenso de que o livro de Sabedoria deve ter surgido nas últimas décadas a.C., certamente obra de um judeu altamente educado na política e filosofia da época. Talvez um intelectual da escola de Alexandria, até, pois as versões mais antigas estão em diversas línguas. Se fosse a obra de um intelectual, certamente teria sido importante... Mas salta aos olhos que o autor tenta descaradamente passar-se por Salomão:

Tu [Senhor] me escolheste como rei do teu povo e juiz dos teus filhos e filhas. Tu me mandaste construir um templo sobre o teu santo monte, um altar na cidade onde fixaste a tua tenda, cópia da tenda santa que tinhas preparado desde o princípio. ... Assim, as minhas obras ser-Te-ão agradáveis, poderei governar com justiça o teu povo, e serei digno do trono de meu pai. (Sab 9.7-12)

Por isso os Protestantes excluíram esse livro da Bíblia, "por não ser realmente obra da pessoa que o nomeia, ou de alguém que tenha presenciado os fatos que descreve". Quem exatamente foi o autor, ninguém sabe. Não era raro autores atribuírem as próprias obras a gente famosa, a fim de que fossem divulgadas. O valor do livro está em ele ser, cronologicamente, a última obra do Velho Testamento e assim nos deixar em conhecimento de como era o mundo quando Jesus nasceu.

A exposição histórica em favor de um autor “Salomão” é tremendamente humana. E certamente poucos livros mereceriam tanto o lugar de Apócrifo como esse, dada sua autoria fortemente fora da narrativa dos demais livros e deliberadamente feita para ser um instrumento de ensino religioso-filosófico para os reis.

A HISTÓRIA (10 ATÉ 19)

"Salomão" faz uma valiosa descrição da história judaica até o "seu reinado". Esse trecho tem a particularidade de ser bastante implícito, sem que os fatos seja enumerados, como seria de se esperar de um historiador alheio. Ao invés disso, ele fala como se falasse a um judeu capaz de "detectar" o conteúdo histórico em suas frases:

Quanto aos que a honram, a Sabedoria os liberta de sofrimentos; foi ela que guiou por caminhos retos o justo que fugia à ira de seu irmão; mostrou-lhe o reino de Deus, e deu-lhe o conhecimento das coisas santas. Ajudou-o nos seus trabalhos, e fez frutificar seus esforços. Cuidou dele contra ávidos opressores e o fez conquistar riquezas. Ela o protegeu contra seus inimigos e o defendeu dos que lhe armavam ciladas; e no duro combate, deu-lhe vitória, a fim de que ele soubesse quanto a piedade é mais forte que tudo. (Sab 10.9-12)

Nesse trecho, fala-se em Jacó fugindo de Esaú, sendo explorado por Labão e lutando contra o Anjo do Senhor. Através da história como é apresentada, podemos ter idéia de quais pontos eram valiosos e críticos para os habitantes da época:

  • o dilúvio tinha vindo por causa de Caim (10.4)
  • Abraão era irrepreensível diante de Deus (10.5)
  • as 4 cidades vizinhas a Sodoma eram interligadas e sucumbiram juntas ao fogo; a terra ao seu redor ainda era fumegante no tempo de "Salomão" (10.6)
  • José foi acusado injustamente (10.14)
  • Moisés se opôs a reis temíveis (11.16)
  • os egípcios foram engolidos pelo Mar Vermelho (11.19)
  • a 1ª Páscoa foi celebrada em meio a milagres (11.21)
  • com o Nilo tornado em sangue, a sede dos egípcios havia sido assustadora (11.8)
  • os egípcios foram punidos por sua adoração a animais "estúpidos" (11.15)
  • os judeus acreditavam que a punição dos egípcios havia sido pequena (11.17-19)
  • Deus ama tudo o que existe (11.24)
  • os antigos habitantes de Israel eram detestados por Deus, por causa de seus ritos mágicos e sacrifícios humanos, em especial de crianças (12.4-6)
  • Deus usa os animais em seus propósitos, dividindo-os em animais bons e “estúpidos” (12.8)
  • o Senhor é indulgente: após o pecado, há tempo para a penitência (12.18-19)

Provavelmente, esses pontos estão presentes na adoração cristã e judaica dos dias atuais ainda, com vários rebuscamentos permissíveis em épocas de paz. No caso, uma ênfase especial do autor que difere dos dias atuais está na importância ou qualidade dos animais e objetos associados a Deus. Entre os animais usados nas pragas do Egito, por exemplo, era importante que fossem “animais estúpidos” ou “sem valor”, como forma de humilhação. De fato, o adjetivo “desprezível” é usado constantemente com os egípcios e todo inimigo dos judeus, como uma reafirmação constante contra a submissão do povo que o autor se recusava a ver. Como podia o povo de Deus estar sob jugo de uma nação idólatra?

OS IDÓLATRAS

O autor de Sabedoria discorre sempre longamente sobre o Egito dos faraós, vinculando-o ao seu próprio tempo. Talvez lhe incomodasse muito o fato de estudar os textos hebraicos numa época em que os judeus eram dominados (pelos romanos) justamente numa cidade da terra onde haviam sido escravos. Sempre vinculada ao Egito aparece a idolatria de animais “estúpidos” e objetos “sem valor” construídos pelos próprios homens. Nisso ele elabora lindas parábolas sobre as formas pelas quais os homens se afastam do verdadeiro Deus: “São insensatos por natureza todos os que desconheceram a Deus, e, através dos bens visíveis, não souberam conhecer Aquele que é, nem reconhecer o Artista, considerando suas obras” (Sab 13.1). É nesses trechos sobre a idolatria e o Êxodo que vemos a brilhante humanização do relato bíblico, com a transposição para os sentimentos humanos de assuntos fortemente teológicos.

1. Tomaram o fogo, ou o vento, ou o ar agitável, ou a esfera estrelada, ou a água impetuosa, ou os astros dos céus, por deuses, regentes do mundo. (Sab 13.2)

2. Um lenhador cortou e serrou uma árvore fácil de manejar. Habilmente ele lhe tirou toda a casca, e com a habilidade do seu ofício, fez dela um móvel útil para seu uso. Com as sobras de seu trabalho, cozinhou comida, com que se saciou. O que ainda lhe restava, não era bom para nada, não passando de madeira torcida e toda cheia de nós; contudo, ele a tomou e consagrou suas horas de lazer a talhá-la; ele a trabalhou com toda a arte que adquirira, e lhe deu a semelhança de um homem, ou o aspecto de algum vil animal. Pôs-lhe vermelhão, uma demão de uma tinta encarnada, e encobriu-lhe cuidadosamente todo defeito. Em seguida, preparou-lhe um nicho digno dele. e o fixou à parede, segurando-o com um prego: foi por medo que caísse, que tomou este cuidado, porque sabe muito bem que ele não pode ajudar-se a si mesmo, pois não passa de uma estátua que tem necessidade de um apoio. Mas quando lhe implora por seus bens, seus casamentos, seus filhos, não se envergonha de falar ao que é inanimado, e pede saúde ao que é desprezível. (Sab 13.11-17)

3. Um pai aflito por um luto prematuro, tendo mandado fazer a imagem do filho tão cedo arrebatado, honrou, em seguida, como a um deus aquele que não passava de um morto, e transmitiu, aos seus, certos ritos secretos e cerimônias. Este costume ímpio, tendo-se firmado com o tempo, foi depois observado como lei. (Sab 14.15-16)

4. Foi também em conseqüência das ordens dos príncipes que se adoraram imagens esculpidas, porque aqueles que não podiam honrar pessoalmente, porque moravam longe deles, fizeram representar o que se achava distante, e expuseram publicamente a imagem do rei venerado, a fim de lisonjeá-lo de longe com seu zelo, como se estivesse presente. Isto contribuiu ainda para o estabelecimento deste culto, mesmo entre os que não conheciam o rei. Foi a ambição do artista, que, talvez, querendo agradar ao soberano, deu-lhe, por sua arte, a semelhança do belo. E a multidão, seduzida pelo encanto da obra, em breve tomou por deus aquele que tinham honrado como homem. (Sab 14.17-20)

5. Eis, portanto, um oleiro que amassa laboriosamente a terra mole, e forma diversos objetos para nosso uso, mas da mesma argila faz vasos destinados a fins nobres e outros, indiferentemente, para usos opostos [pinicos]. Para qual destes usos cada vaso será aplicado? O oleiro será o juiz. Do mesmo barro forma também, como obreiro perverso, uma vã divindade, ele que, ainda há pouco, nasceu da terra, e em breve voltará a ela, de onde foi tirado, quando lhe serão pedidas as contas de sua vida. (Sab 15.7-8)

EGITO - UM PESADELO FILOSÓFICO

O autor de Sabedoria discorre em longos trechos sobre os animais das pragas lançadas sobre o Egito,  os animais repugnantes, a praga da escuridão em especial e o maná. Uma vez que o texto do Êxodo é muito menos detalhado a respeito disso, podemos supor que se tratam de elucubrações das quais se ocupariam, isso é claro, um filósofo grego. Sua dedicação a expor os detalhes intimistas do Êxodo nem deixa espaço para o conto histórico! É nesses trechos finais sobre a idolatria e o Êxodo que vemos a brilhante humanização do relato bíblico, com a transposição para os sentimentos humanos de assuntos fortemente teológicos. Por exemplo, é muito clara a separação entre animais estúpidos, desprezíveis, etc (sapos, moscas, vespas) e os outros animais (codornizes, bois, etc). A diferenciação, entretanto, é imputada a Deus, num legítimo processo de generalização (se eu não uso... então não serve para nada):

... os mais odiosos animais, que são piores ainda que outros animais irracionais, e nem mesmo possuem o que outros seres viventes possuem: bastante beleza para serem amados, que foram excluídos de aprovação e da bênção de Deus (Sab 15.18-19)

... aqueles [os egípcios], mau grado a sua fome, diante do aspecto hediondo dos animais enviados contra eles, experimentaram a náusea; estes [os hebreus], após uma curta privação, receberam um alimento maravilhoso [codornizes caídas do céu] (Sab 16.1-3)

O maná também é idealizado como um “alimento dos anjos” nessas elucubrações filosóficas, de uma forma que não aparece no Livro do Êxodo nem em qualquer outra parte da Bíblia.

... foi com o alimento dos anjos que alimentantes o vosso povo, e foi do céu que, sem fadiga, vós lhes enviastes um pão já preparado, contendo em si todas as delícias e adaptando-se a todos os gostos... Ela se adaptava ao desejo de quem a comia, e transformava-se naquilo que cada um desejava. ... O que não era destrutível pelo fogo fundia-se ao calor de um raio de sol. (Sab 16.25-27)

Sabores são impossíveis de se descrever em palavras, mas o Livro do Êxodo coloca que o maná simplesmente tinha o sabor de uma torta de mel. Esperemos que todos imaginassem o mel então... Quanto aos 3 dias de densa escuridão lançados sobre o Egito (Ex 10.21), as elucubrações também são notáveis:

Mesmo o canto mais afastado em que se abrigavam não os punha ao abrigo do terror: ruídos aterradores ressoavam em torno deles, e taciturnos espectros de lúgubre aspecto lhes apareciam. Nenhuma chama, por intensa que fosse, chegava a iluminar. E a luz brilhante dos astros era impotente para alumiar esta noite sombria. Mas aparecia-lhes de súbito nada mais que uma chama aterradora, e, tomados de terror por esta visão fugitiva, julgavam essas aparições mais terríveis ainda ... dormiam num mesmo sono, agitados, de um lado, pelo terror dos espectros, e paralisados, de outro, pelo desfalecimento da alma ... O silvo do vento, o canto harmonioso dos passarinhos nos ramos espessos, o murmúrio da água correndo precipitadamente, o estrondo das rochas que se despenhavam, a carreira invisível dos animais que saltavam, os urros dos animais selvagens, o eco que repercutia nas cavidades dos montes: tudo os paralisava de terror. Enquanto o mundo inteiro era alumiado de uma brilhante luz, e sem obstáculo se entregava às suas ocupações, somente sobre eles se estendia uma pesada noite, imagem das trevas que mais tarde os deviam acolher; e eram para si mesmos um peso mais insuportável que esta escuridão. (Sab 17

Contudo, para vossos santos havia uma luz brilhantíssima. Sem verem seus semblantes, os outros ouviam-lhes a voz, e julgavam-nos felizes por não sofrerem os mesmos tormentos. (Sab 18.1)

Assim, a Escuridão no Egito foi  traduzida como medo e pavor na alma dos egípcios. Esse detalhamento de sentimentos vai muito além do texto mais "seco" do Êxodo, e novamente faz parte do pensamento intimista grego, estando quase ausente nos textos sobre “a coletividade” dos judeus.

Na derradeira praga, que exterminaria os primogênitos dos egípcios, o autor enxergou a retribuição pelo massacre dos inocentes quando Moisés foi salvo (Ex 1.15-16; 1.22). Na ocasião, o Faraó havia mandado exterminar os meninos hebreus. Agora, pois um anjo vinha exterminar os meninos egípcios:

Uma mesma sentença feria o escravo e o senhor, o homem do povo sofria o mesmo castigo que o rei. Todos igualmente tinham um número incalculável de mortos abatidos da mesma maneira; os sobreviventes não eram suficientes para sepultá-los. Porque, num instante, sua melhor geração era exterminada. (Ex 18.11-12)

E dessa forma o livro termina, sem um dito sequer sobre os profetas, juízes, ou o reinado de Davi. É provável que nem todo o material da Torá estivesse ao alcance do autor, ou que (o mais provável) a escrita do livro tenha sido deliberadamente interrompida. Afinal, já se constituía em uma obra bem distante dos livros sapienciais como Salmos e Provérbios, tornando-se em uma bela análise humana.

Embora Sabedoria seja um livro extra-bíblico (ao menos para os protestantes), definitivamente trata de uma iniciativa bela (e fantasiosa, claro) de entender ou tornar íntima a história judaica.

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VAI LÊ, FIO, VAI SIM

Ivo Storniolo, Como ler o livro da Sabedoria, Paulus, 1993
Philo of Alexandria - wikipedia

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