quinta-feira, 27 de abril de 2017

O Êxodo fora da novela

canal Bahr Yussef, em uma foto de 1885, colorida à mão

A história do Êxodo sempre inspirou muita discussão, tanto pelo sentido religioso de um pacto feito com Deus quanto pelo sentido militar em que definiu territórios de clãs ou grupos tribais na Canaã antiga. Tento apresentar aqui mais uma teoria (e nenhuma delas é nova) sobre o Êxodo e seu desenrolar.

ABRAÃO
A relação dos Israelitas com o Egito é antiga. O pacto de Deus Todo-poderoso com Abraão foi “de você farei nações, de você procederão reis” e “toda a terra de Canaã darei como propriedade perpétua a você e a seus descendentes” (Gênesis 17). Esse pacto foi selado com Abraão e Sara mudando seus nomes, assim como Abraão circuncidando a si mesmo e a Ismael, seu filho com Hagar, uma serva Egípcia. A referência a essa serva é muito interessante, pois a influência do Egito sobre Canaã antes do Novo Império (supostamente no período Pós-êxodo, a partir de 1550 a.C.) era nenhuma. Assim, o 1º descendente a herdar o pacto com Deus foi, de certa forma, um Egípcio.

Ismael, tido como patriarca pelos muçulmanos, recebeu a promessa de ser prolífero, pai de uma grande descendência, de 12 príncipes e um grande povo (Gênesis 17.20). Por causa disso, hoje os muçulmanos são o grupo mais numeroso a praticar a circuncisão. Isaque, tido como patriarca pelos judeus, foi o ancestral das tribos que conquistaram Canaã a partir do Egito (Com ele [Isaque] estabelecerei a minha aliança, que será aliança eterna para os seus futuros descendentes, Gênesis 17.19)

Abraão deixou tudo o que tinha para Isaque. Mas para os filhos de suas concubinas (como Quetura, que gerou várias tribos árabes) deu presentes; e, ainda em vida, enviou-os para longe de Isaque, para a terra do Oriente (Gênesis 25.5,6).

CHEGANDO AO EGITO
Tudo começa com a chegada dos Israelitas ao Egito. Jacó/Israel, herdeiro de Isaque, teve filhos com Lia e Raquel (irmãs) e com suas respectivas escravas Zilpa e Bila, gerando assim 12 clãs. José e era um dos filhos de Raquel e foi vendido pelos irmãos para uma caravana de Ismaelitas de Midiã vindo de Gileade (terra de Moab), com camelos carregados de especiarias, bálsamo e mirra, que eles levavam para o Egito (Gênesis 37.25). Essa passagem mostra os Ismaelitas como um grupo étnico reconhecido, assim como sugere o Egito como um centro comercial. Lá no Egito, após muitas aventuras, José alcança status e casa-se com Asenet, filha de Potifar, capitão da guarda do faraó (Gênesis 39.1) ou sacerdote da cidade de Om (Gênesis 46.20) (também referida como Iwnw ou Awen), de quem nascem os chefes de clã Manassés e Efraim. Para o Egito também foram os 11 irmãos de José, transferindo assim toda a linhagem real de Jacó/Israel de Canaã para Goshen, ao leste do delta do Nilo, supostamente em um período de estiagem severa.

A Bíblia é controversa ao dizer que os Israelitas ficaram 400 anos no Egito (Gênesis 15.13) e ao mesmo tempo que se trataram de 4 gerações (Gênesis 15.16). Mesmo que o tempo de vida dos descendentes de José e seus irmãos tenha sido muito dilatado (e a Bíblia coloca personagens centenários para isso, apesar da delimitação feita na época do Dilúvio, Gênesis 6:3), teríamos que acreditar que cada chefe tribal gerou um sucessor apenas nos últimos anos de sua longa vida para poder contar só 4 gerações (usualmente 120 anos) e não 10-15 gerações. Como veremos a seguir, a instabilidade de poderes políticos no Egito favorece pensar numa estadia mais curta dos Hebreus por lá, especialmente se estivessem aliados às altas classes do governo (nobreza, guarda, sacerdotes e escribas).

SEMITAS NO EGITO
A palavra Semita faz referência a Sem, um dos filhos de Noé. Atualmente, essa palavra é usada para designar os povos da Ásia Ocidental, como Turquia, Irã, Iraque, Síria, Jordânia, Israel, etc. Em certo ponto da história antiga (~ 1800 a.C.), muitos comerciantes Semitas deslocaram-se para o leste do Baixo Egito, para a terra de Goshen. O Egito era então formado mais ou menos por duas regiões: uma extensa planície fértil entre a 1ª cachoeira e a foz do Nilo, onde o rio se reparte em muitos braços,  como no Pantanal brasileiro, chamada Baixo Egito; e outra montanhosa, onde o Nilo é um rio único, acima da 1ª cachoeira. Não havia um poder central, mas diversas cidades-estado com seus faraós e hierarquias de poder entre si.

Lentamente os Semitas dominaram o comércio entre as cidades-estado Egípcias. Por volta de 1720 a.C., haviam transferido para os seus chefes de clãs e estruturaram um poder político próprio, que não apenas desafiou os governantes locais mas assumiu o comando de cidades, enquanto as famílias reais Egípcias duelavam entre si. Logo ergueram uma cidade-estado própria, que denominaram a nova capital do Baixo Egito, chamada Avaris (ou também Hut Waret, Hawat Wurat, etc). O nome significava “grande casa”, pois Avaris contava com imensos depósitos e um porto capaz de ancorar 300 navios de carga.

Os “novos nobres” (na verdade descendentes de clãs reais Semitas que se instalaram no Egito) eram comerciantes e ocuparam-se muito mais de substituir o poder político anterior e formar rotas comerciais do que em conquistar militarmente as terras vizinhas. Em algumas décadas seu poder se estendia até o Alto Egito, comandado pela cidade-estado de Thebas, acima da 1ª cachoeira. Cidades prósperas como Xois, no delta do Nilo, simplesmente estabeleceram tratados de tributos a Avaris ou nem isso, se tivessem produtos ou rotas comerciais a oferecer. Xois, por exemplo, produzia vinhos famosos, vendidos às famílias reais de toda costa do Mediterrâneo. Esse comércio de vinhos contou com a bênção de Avaris e ganhou o apoio de uma frota de navios subindo o Nilo até Thebas e além, para a o reino da Núbia/Cush ao sul. Os navios dessa época eram veleiros com quilhas, uma tecnologia antes desconhecida no Nilo. No Alto Egito, ainda, o comércio de produtos da região costeira (como as tintas de conchas, usadas nas pinturas dos palácios Egípcias que vemos até hoje) chegaram em grande parte levadas por terra, com a introdução de um animal muito comum na Palestina, mas então jamais descrito ou pintado na África: o burro.

Os Semitas não eram adeptos de erguer estátuas dos seus reis ou deuses, de forma que a 15ª dinastia do Egito contrasta muito com o Novo Império e suas estátuas de pedra colossais. Mas uma obra dos reis Semitas persiste até hoje: um grande canal cavado paralelamente ao Nilo, a oeste, se estendendo por metade do Egito e desembocando em um imenso lago artificial, o lago Méris, na depressão de El-Fayoum. Esse canal drenava água do Nilo mesmo nas épocas de baixa e a conduzia por canais menores para as áreas de cultivo a oeste. O nome do canal principal, mantido por gerações de faraós posteriores, é muito sugestivo: Bahr Yousef, ou filho/braço/ramo de José.

Os reis/faraós Semitas foram chamados, pelos Egípcios, de Hyksos. O povo Semita era chamado Aamu. A palavra Hykso aparece em escritos muito posteriores e não se sabe se era, na época deles, um nome em uso. Trata-se mesmo de um nome com significado duvidoso: o historiador Egípcio Manetho, da época de Alexandre o Grande (300 a.C.), interpretou a palavra como “reis pastores”, mas também como “pastores cativos”, apesar de saber que se referia a um grupo de reis. Os Hyksos reinaram no Baixo Egito por 200 anos, havendo depois uma evacuação de todo seu povo, à medida que o poderio militar da nobreza de Thebas cresceu. Manetho, por exemplo, fala em 480 mil Semitas deixando o Egito. Flavius Josephus (ou também Yosef ben Mattityahu), historiador romano-judeu do século 1 d.C., leu os documentos de Manetho e viu nesse movimento o Êxodo das Escrituras.

De fato, quando a Bíblia fala em 600 mil homens Israelitas e suas famílias saindo do Egito, não há como negar a semelhança dos eventos. A grande questão é se o José bíblico esteve no Egito antes, durante ou depois dos Hyksos. Se fosse antes, dificilmente as Escrituras não falariam sobre um reino Semita, especialmente quando José fala sobre vacas, que são animais tipicamente pastoreados na planície do Nilo. Se fosse depois, José e sua família jamais seriam bem-vindos: quando Thebas expandiu seu poder militar e unificou o Egito sob seu governo, inaugurando o Novo Império, o Egito se tornou uma nação conquistadora e repeliu ferozmente até nações mais bélicas, como os Assírios, no leste. Curiosamente, quase tudo que sabemos sobre a riqueza do Egito vem do Novo Império, cuja arte, metalurgia, armas e carruagens foram levados para lá pelos comerciantes de Avaris, que Thebas tão duramente combateu. Somos mais ou menos forçados a pensar que José e seus irmãos, chefes tribais de Canaã, fizeram parte do movimento Hykso de ocupação política. De fato, isso se parece muito com José entrando para a nobreza Egípcia e levando seus familiares para ocupar terras. Não se fala em ocupação militar nem na Bíblia, pois tudo indica que a chegada e o estabelecimento dos Hyksos foi bastante pacífica.

ÊXODO
A grande pergunta dos historiadores sempre foi “Como interpretar historicamente o Êxodo?”. Alguns problemas antigos quanto a isso são (1) não há qualquer escrito Egípcio sobre a escravidão de Israelitas e, bem ao contrário, os Egípcios parecem ter sido contrários à posse de escravos; (2) não há qualquer relato Egípcio sobre as 10 pragas; (3) não há qualquer relato Egípcio sobre a perseguição aos Israelitas pelo deserto; (4) a distância entre a cidade de Ramsés - supostamente o ponto de partida do Êxodo - e Jerusalém é suficientemente pequena para ser percorrida em alguns dias de caminhada; (5) as cidades de Canaã contra as quais o livro de Josué registra grandes batalhas deixaram ruínas pequenas, a maioria sem evidência de muralhas, e os resquícios de incêndios ou devastações são muito antigos e espaçados no tempo por até 1000 anos. Aqui, defendo a idéia (nem um pouco original ou mesmo recente) de que o texto do Êxodo é, na verdade, algo como uma colcha de retalhos, juntando histórias de diferentes fontes e diferentes tempos. Perdido esse valor histórico (infelizmente não vejo outra saída para isso), ainda me parece poderosa a idéia de um relato contando sobre as vidas, costumes e contatos com Deus que nortearam a construção de um povo. Afinal, o próprio Jesus falou sobre Moisés.

Moisés é um personagem singular na história bíblica. Ele, Aarão e Miriã/Maria eram filhos de Amram e sua esposa Jocabed, ambos Israelitas (Freud defendia uma idéia diferente, afirmando que Moisés era Egípcio). Jocabed era irmã de Caat, pai de Amram. Caat era filho de Levi, o irmão de José que fundou uma misteriosa dinastia destituída de terras. Ou seja, Moisés era, conforme a profecia feita por Deus a Abraão, a 4ª geração após José (Gênesis 15.16). Pensando em vidas humanas normais, isso coloca Moisés 100-150 anos após José. Seria tempo suficiente para a chegada dos nobres Cananeus ao Egito em 1650 a.C. e sua expulsão pelos faraós de Thebas em 1550 a.C. Além disso, sabemos que a história de Moisés aglutinou a lenda sobre o nascimento de Sargão de Acádia, na Assíria, uns 1000 anos antes.

Como dito antes, Manetho cometeu uma confusão ao interpretar a palavra Hykso, pois no idioma Semita que usavam, podia significar pastor, estrangeiro ou cativo. Curiosamente, a exata mesma confusão ocorria com a palavra Canaã. Assim, é possível que os escritores do texto do Êxodo tenham interpretado que Israelitas no Egito eram “cativos”, quando podia significar “pastores” (pois Thebas mesmo pagava aos Hyksos para cuidar de seus rebanhos de vacas no delta do Nilo) ou simplesmente “estrangeiros”. A Bíblia de fato é muito pobre ao descrever a vida dos Israelitas como escravos, não apresenta nomes de locais nem de governantes. O que coincide entre a história e o texto do Êxodo, de forma ainda que fabulesca, talvez seja a perseguição dos Egípcios aos Israelitas.

PARA FORA DO EGITO
Manetho falava de reis como Ahmés/Ahmosis I atacando Avaris de tal forma que as mulheres ficaram estéreis e a cidade foi arruinada. Mas ele não viu esses eventos; pior, os Egípcios tinham o mal hábito de registrar a história como convinha e não como realmente foi. Tutankhamen, por exemplo, que foi um peão dos sacerdotes de Thebas e morreu aos 20 anos sem jamais ter ido a uma batalha, teve seu túmulo todo decorado com cenas de batalhas e vitórias militares fictícias. Quanto a Manetho, as ruínas de Avaris mostram que as muralhas foram reconstruídas durante vários anos. O primeiro faraó de Thebas a conduzir um ataque à cidade, Seqenenre Tao (ou Taa) morreu com um golpe de lâmina no lado direito do rosto, em batalha. E mesmo após a queda de Avaris, há sinais de que os Hyksos mantiveram o controle comercial do Baixo Egito por outros tantos anos. Assim, é possível que, à semelhança de Manetho, o Êxodo bíblico retrate como uma fuga apressada o que foi um movimento lento de desocupação das terras e substituição do poder por uma nova monarquia. Ainda, é provável que tenha sido um movimento de evacuação dos “pastores” ou ainda dos “estrangeiros”, mas não dos “cativos”.

De qualquer forma, é estranho que o Êxodo não faça qualquer referência a Avaris, a cidade forte dos Hyksos e sua capital. Apesar disso, fala-se de Ramsés, ou mais propriamente Pi-Ramsés, uma cidade do Novo Império erguida pelo faraó de mesmo nome ao lado e sobre as fundações da antiga Avaris, usando seus grandes silos de grãos e até mesmo as estruturas do palácio real. Escrito bem depois da partida dos Hyksos, os autores do Êxodo provavelmente se depararam com a grande Pi-Ramsés e suas estruturas elaboradas (de tijolos!) contendo muitos símbolos Semitas. Na Bíblia, os tijolos são citados como fruto do trabalho dos Israelitas, o que provavelmente se deveu às grandes obras que alguma testemunha encontrou, mais tarde. Os tijolos nunca foram um material de construção típico do Egito, mas sim da Caldéia, entre os grandes rios Tigre e Eufrates, de onde saiu Abraão.

Os Egípcios desmantelaram algumas estruturas da cidade, como seu templo, para usarem as pedras nos assoalhos de Pi-Ramsés. Nas inscrições que seriam eternizadas, chamaram os Hyksos de horda do leste que desrespeitava os deuses. Até compuseram uma mítica batalha entre Hórus, o vingador filho de Rá/Osíris e Set, um deus da tempestade forjado a partir de Baal, a divindade dos Hyksos. Nessa batalha, Hórus derrota Set e o expulsa para o deserto oriental. Até Apep/Apophis, o último rei Hykso, teve seu nome demonizado na forma de uma criatura da noite que duelava com Rá para devorar o Egito.

[Jacó a José] [dize ao Faraó] que teus servos criam rebanhos desde pequenos, como o fizeram nossos antepassados. Assim lhes será permitido habitar na região de Goshen, pois todos os pastores são desprezados pelos egípcios. (Gênesis 46.34)

RUMO A CANAÃ
Se o deus dos Hyksos era Baal, exatamente onde entra Javé nessa história? Uma teoria é que os Hyksos, tal como mostra a variedade de registros que deixaram, eram um povo misto, formado por dois ou mais grupos étnicos dos Semitas. Isso explicaria conflitos estranhos como os envolvendo Madianitas: Moisés passou um tempo em Madiã, até se casou e teve filhos com uma Madianita, era aconselhado por um sogro sacerdote de Madiã, mas empreende extermínios e até guerras contra os Madianitas!

Outra teoria significativa é de que houve, como numa colcha de retalhos, vários “Moisés”: um sacerdote Egípcio cultuador do deus Aten, um sacerdote Madianita cultuador dos deuses El e YWH e um legislador-lider político Árabe, provavelmente seguidor dos deuses El e Baal. Essas três lideranças (e talvez pelo menos o Egípcio, mais recente de todos, se chamasse realmente Moisés) teriam sido associadas a uma mesma pessoa nos tempos de Ezekias (aprox. 690 a.C.), Josias (aprox. 620 a.C.) ou Esdras (aprox. 460 a.C.), quando a história dos Israelitas foi colocada em textos. O aparecimento de Javé como motivador e guia do Êxodo teria a ver com sua elevação (em tempos bem mais recentes) acima de outros deuses dos Hyksos como El (grande parte das cidades e Canaã leva o nome do “senhor dos leões”), Baal (deus da tempestade, também muito comum nos nomes das cidades de Canaã) e YHW (deus dos vulcões e da guerra, em tempos mais antigos, com nome só reproduzido em cidades a leste da Síria).

Nos tempos do Novo Império, quando os Semitas recuaram e o poder de Thebas transcendeu o Egito, os comerciantes Cananeus foram repelidos para a terra de Sharuhen (no sudoeste da Judéia), onde ergueram uma cidade fortificada e mais tarde, segundo Manetho, acabaram fugindo para fundar uma cidade chamada … Jerusalém! Sharuhen é citada muito tempo depois, como um dos limites de terras no livro de Josué (Josué 19.6). A cidade foi cercada pelas tropas do neto de Seqenenre Tao por 3 anos, até que os Egípcios a destruíram. Algumas teorias sobre o desaparecimento das referências aos reis Hyksos após esse evento são de que a linhagem real foi exterminada pelo ataque Egípcio a Sharuhen ou de que o poder passou a linhagens nativas de Canaã, como Her e Onã, filhos de Judá. Também, Gad e Rúben, filhos de Jacó/Israel que são relatados no Egito com José, são compelidos a apoiar os exércitos de Josué, como se não fossem parte do exército, mas senhores fixos na terra por onde o exército passa.

“Se podemos contar com o favor de vocês, deixem que essa terra seja dada a estes seus servos como nossa herança. Não nos façam atravessar o Jordão". Moisés respondeu aos homens de Gade e de Rúben: "E os seus compatriotas irão à guerra enquanto vocês ficam aqui? Por que vocês desencorajam os israelitas de entrar na terra que o Senhor lhes deu?” (Números 32.5-7)

NÃO É UMA VISÃO ORTODOXA
Apesar do desvio do entendimento que o Êxodo propõe da história, algumas partes da trajetória dos Israelitas são documentalmente muito fictícias. Muitas cidades citadas como sendo edificadas pelos clãs dos Israelitas são (hoje sabemos) lugares habitados desde a pré-história. Os Horreus, um povo cuja destruição também é citada, são referidos em outros momentos como se fundindo com os filhos de Esaú nas montanhas de Seir (Gênesis 36). Essa inconsistência histórica, em geral, se deve à redação de um texto em épocas bem posteriores aos eventos que ele descreve.

Em seu célebre estudo sobre Moisés, Freud atentou para um fato pouco discutido, que era a prática de circuncisão entre os Egípcios. O historiador grego Heródoto (450 a.C.), em seus passeios pelo mundo antigo, guardou esse fato. A inscrição mais antiga mencionando a circuncisão é a tumba do Egípcio Uha, em Saqqara, de 2400 a.C., bem antes da presença Semita no Egito. Mesmo que os Israelitas não praticassem a circuncisão antes do Egito (apesar do que falam os escritos sobre Abraão), com certeza compartilharam esse costume com os Egípcios. Ao retornarem para Canaã, talvez a coisa mais improvável fosse que esquecessem tal costume (o próprio culto de Ápis, que não era tão significativo no Egito, foi levado pelos Israelitas). Dois eventos muito curiosos quanto a isso são a circuncisão de um dos filhos de Moisés (Gérson ou Eliézer, o texto não deixa evidente) no caminho entre Madiã e o Egito (Êxodo 4.24-26); e também a circuncisão por Josué dos que nasceram no caminho entre o Egito e Canaã (Josué 5.2-9).

O primeiro evento é uma lembrança clara a Moisés do pacto de Abraão, sobre um povo do qual ele supostamente fazia parte apenas pela via biológica. O segundo evento já fala da retomada de um costume esquecido nos tempos de Moisés como líder e retomado por seu sucessor. Não há como ambos serem verdadeiros, no sentido literal. Se a circuncisão foi tomada como pacto religioso-social, talvez Freud tivesse razão ao pensar que tanto um evento como outro sinalizasse a junção de outros povos aos Israelitas; primeiro um secto dos Madianitas e depois um secto dos Egípcios. Entre uma coisa e outra, o segundo evento marca a chegada em Canaã, com a sucessão de líderes: Moisés, depois Josué, depois os líderes das famílias que receberam terras. Essa sucessão de 3 lideranças levaria, pelo menos, 40 anos! Isso pode indicar que o tempo do Êxodo, ao invés de uma simples peregrinação de poucos quilômetros pelo deserto, poderia ser uma sucessão de lideranças de clãs até a fixação da nova estrutura de poder em Canaã.

De qualquer forma, após a queda de Sharuhen, acabaram os relatos Egípcios sobre os Semitas como um povo guerreiro. Mas, 200 anos após sua saída do Egito, quando o Novo Império já sofria com disputas entre as famílias nobres de várias cidade-estado, uma carta de barro em idioma de Acádia, da cidade-estado de Biblos, no litoral, trouxe ao faraó informações sobre os Semitas:

“Rib Hadda [rei de Biblos] diz ao seu senhor, rei de todos os países, grande rei: Que a Senhora de Gubla [Baalat, forma feminina de Baal] conceda poder a meu senhor. Eu caio aos pés de meu senhor, meu sol, sete vezes e sete vezes. Que o rei, meu senhor, saiba que Gubla [Biblos], a serva do rei dos tempos antigos, é segura e sã. Entretanto, a guerra dos Apiru [Hebreus] contra mim é severa. Nossos filhos, filhas e os móveis das casas se foram, vendidos na terra de Yarimuta por provisões para nos mantermos vivos. Por falta de cultivador, meu campo é como uma mulher sem marido. Eu escrevi repetidamente ao palácio [do faraó Akenathen] por causa da doença que me aflige, mas não houve quem olhasse as palavras que continuam chegando. Que o rei dê ouvidos às palavras do seu servo ... Os Apiru mataram Ad [o rei] de Irqata ... E eles continuam tomando os territórios por si mesmos. ... Eu estou com medo … ”

A carta faz pensar numa atividade militar de muitos reinos, semelhante ao descrito no livro de Josué, porém bem além de Canaã. Isso dá conta de que os Hyksos/Aaamu repelidos do Egito não eram apenas um povo comercial, mas uma estrutura política e militar que se estabeleceu de forma poderosa do sul ao norte do rio Jordão, o que se refletiria em toda história bíblica posterior.

----------------------------------------

RESTOS DE UM PAPIRO QUEIMADO
Bernal M, Black Athena: The linguistic evidence, Rutgers University Press, 1987
Blumenthal F, The Circumcision Performed by Zipporah, Jewish Bible Quarterly 35(4):255-259, 2007
Engberg RM, The Hyksos Reconsidered, University of Chicago, 1939
Canaan- wikipedia
Manetho on the Hyksos, An introduction to the history and culture of Pharaonic Egypt, reshafim.org.il
Mark JJ, Hyksos, Ancient History Encyclopedia, fevereiro de 2017
Mark JJ, Sargon of Akkad, Ancient History Encyclopedia, setembro de 2009
Mark JJ, Xois, Ancient History Encyclopedia, fevereiro de 2014
Rib-Hadda - wikipedia
Sharuhen - biblehub.com
Sharuhen - wikipedia
Wiener N, The expulsion of the Hyksos, biblicalarchaeology.org, novembro de 2015
Wood BG, Debunking "The Exodus Decoded", biblearchaeology.org, setembro de 2006

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe um comentário!