sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Todos os medos

Cristo no deserto - Ivan Nikolayevich Kramskoy, 1872

Resolvi deixar aqui uma passagem que considero muito especial, de um ótimo livro.

Numa fria manhã de janeiro de 28, seus passos o levam a montanha de Gebel Quruntul. Em suas abas estende-se Jericó. Nos flancos das gargantas áridas, a rocha escancara bocas cavernosas onde habitam chacais, rastejam serpentes e águias buscam provisões para seus ninhos. Abaixo, entre areias de ouro, o solo abre-se ao leito do Jordão. Ao norte, os montes da Samaria sentinelam o Hermon, que, atrás, desponta com sua coroa de neve. Ao sul, na planície cintilante de sal, paira a água estéril do mar assombrado.

Jesus adentra o deserto lacerado por dúvidas. Por que João curvou-se a minha presença? Não é ele o profeta, o precursor, o novo Elias? Não encarna a esperança desses deserdados que, de mãos vazias, recorrem a ele ansiosos por salvação? E aquela Voz? Será mesmo que o Pai me gerou como seu filho e nutre por mim tanto afeto? Não será João o Messias? Ele padece prolongados jejuns; eu aprecio a boa mesa. Ele se abriga no deserto; eu prefiro as cidades. Ele usa linguagem direta como lança certeira; eu falo em metáforas. Ele recebe todos, mas não se mistura; eu convivo com pecadores, publicanos, pagãos. Meu Deus, arranca as escamas dos meus olhos, destrava as correntes de meu coração! O que esperas de mim?

Mira a paisagem desolada do lado oposto a Betânia da Transjordânia, onde recebera o batismo. Ali as manhãs inflamam-se de luz e calor, como se o Monte Nebo exibisse línguas de fogo. Ao fim da tarde, o sol afunda entre a copa rasteira dos arbustos e esconde sua face nas sombras das escarpas. A noite desce sem prenúncios, grávida de agouros malditos.

O testemunho do primo induz Jesus a não trazer alimentos e aliviar a sede com as gotas de orvalho recolhidas pela rara vegetação. Quer entreter-se consigo e com Deus. Ficar só por algum tempo, ouvir o silêncio, descobrir sua vocação. Respira o sopro amargo do “khamsin”, o Vento da Arábia, e medita nos quarenta dias e nas quarenta noites que as águas do Dilúvio recobriram a Terra; nos quarenta dias e nas quarenta noites que Moisés permaneceu no alto do Monte Sinai; nos quarenta dias e nas quarenta noites que Elias caminhou até a montanha de Deus. Entrega-se a oração. Deixa que o Espírito harmonize-lhe corpo e alma, esvazie sua mente de todas as distrações, dilate seu coração à vontade divina. Percorre as sendas mistéricas que conduzem do difuso ao infuso e experimenta a vertigem de ser virado ao avesso. Deleita-se no inefável.

No décimo dia, a língua cola-se ao chão da boca, o ventre rosna vazio, o espírito enche-se de aridez. Deus está mudo. Os olhos de Jesus percorrem os desfiladeiros que contornam a exígua caverna na qual se abriga. Não vê pedras, vê pés recheados de frutas secas e adoçados com mel. As rochas são peixes grelhados; os seixos, figos ressecados; os calhaus, bolos recobertos com calda de melão.

É assaltado por ímpetos de abandonar preces e meditação, fugir desse lugar onde o silvo das cobras amplia-se ao rumor dos ventos e produz o som de risadas sarcásticas. Quer ir ao encontro de tortas de romãs e doces de amêndoas que sua mãe tão bem prepara. É retido por uma força mais íntima do que ele a si próprio. Deve quedar-se, amargar o jejum, descartar alucinações, manter-se atento à voz misteriosa de Deus. Um versículo das Escrituras reboa em sua mente: Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que brota da boca de Deus. Não basta saciar-se de pão; antes, é preciso também aplacar a fome de beleza. Buscar no miolo vazio do pão inexistente o sentido, o fermento que leveda a massa, o gesto que faz da copa comunhão.

No vigésimo dia, o vácuo por dentro do umbigo traga-lhe as entranhas. O estômago grita como choro de criança doente, os intestinos liquefazem-se, a cabeça ferve sob um peso insuportável. Quem se julgava amado sente-se, agora, abandonado. Luta, dois dias e duas noites, contra o poder invisível, o mesmo contra o qual lutou Jacó até agarrar o anjo de Deus e impedir que ele se afastasse sem antes dar-lhe a bênção.

Súbito, vê-se em Jerusalém, de pé no pináculo do Templo, a uma altura de sessenta metros do solo. Seus olhos sobrepassam as torres da cidade e se estendem ao horizonte quimérico de impérios grandiosos: Nínive, Babilônia, Assur, Passárgada. Ouve vozes: Se és Filho de Deus, renuncia das tuas responsabilidades e joga-te daqui. O sotaque destoa daquele que, no Jordão, lhe fez declaração de amor. A voz, agora soturna, prossegue: Cruza os braços, apaga da mente todo juízo, aceita os desígnios do Todo Poderoso, não com fé, mas com a cegueira de quem tem os olhos vazados. Porque a Escritura diz: “Ele dará ordem a Seus anjos e eles te tomarão pelas mãos, para que não tropeces em nenhuma pedra.”

Imagina-se como João, os rins cingidos por um cinturão de couro, a Voz potente a anunciar a libertação aguardada por Israel, as multidões a segui-lo. Ah, como tudo seria mais simples e sedutor se os prodígios de Moisés se repetissem e todos vissem a vara se transmutar em cobra e a cobra em vara, e Javé irromper numa sarça ardente! Assaltam-lhe imagens da unção de um rei que tem o seu perfil e, montado num cavalo árabe, percorre triunfante as ruas de Jerusalém aclamado pelo povo. Na poeira soprada pelo Vento vislumbra o rei Salomão, glorioso, aproximar-se e oferecer-lhe o cetro real e todos os tesouros, incluídos os memoráveis presentes da rainha de Sabá.

Aterrorizado pelas imagens que sua mente gulosa saboreia, levanta-se, esmurra as cenas que se descortinam a seus olhos, pula sobre o solo duro e arenoso para ter a certeza de que esta ali, próximo ao Jordão, e não na cidade do Santuário. Grita, a si mesmo e a quem possa escutar,a palavra da Escritura: Não tentarás o Senhor teu Deus! Não tenho que imitar João, fingir que sou Elias, revestir-me da realeza de Salomão, de Davi ou da glória de Moises. Devo seguir o meu caminho, beber do cálice de sangue e comer do pão que não esta isento do fermento dos fariseus. Meu Pai, Deus de amor, o que me reservas?

Mergulha, a partir desse dia, no sofrimento de quem, em plena vida, anseia por renascer. Quer reafirmar suas opções mais profundas. Mas quais? Quem sou? O que Deus quer de mim? Não sou filho de sacerdote, nem estudei com monges ou escribas. Criado num vilarejo, sou apenas o filho de um carpinteiro.

Por que, Senhor, povoas tão fundo o centro de meu espírito? Por que, no batismo, me chamaste de Filho Amado? Não és o Inacessível, o Inominável, o Transcendente? No entanto, sinto-te muito próximo, mais íntimo a mim do que minhas intuições mais recônditas. És um outro, diferente de mim e, contudo, teu Espírito funda a minha verdadeira identidade. És o meu verso e reverso. És o avesso de minha pele, a cor do sangue que corre em minhas veias, a luz que acende meus olhos. És o pássaro que atravessa o meu horizonte, as árvores que sombreiam o meu caminho, as águas que banham o meu corpo. És o Cosmo e também esta pedra na qual me recosto, o nó de meus sentimentos, o afago e o desafio. És Pai e, no entanto, sinto-te Mãe.

Seu espírito apazigua-se. Percebe, pela primeira vez, os grilos amarelados que saltitam entre cascalhos. A oração, com seu toque sutil, clareia aos poucos sua mente e dilata-lhe os olhos. O tempo é breve, não quer dispor de poder como os que governam, nem apropriar-se da tenda que Deus lhe arma. Entregar-se-á ao Espírito, guardará fidelidade às suas intuições, não recuará diante das veredas imprevisíveis.

No trigésimo dia, a fome o tortura e a sede queima-lhe a garganta. Sente-se fraco, as pernas bambeiam ao tentar andar. Observa, com uma ponta de inveja, o voejar delicado de pequenas borboletas brancas. Também no deserto há vida, basta ter olhos para ver. Ao crepúsculo, contempla o poente, embevecido pelo jogo de cores. O sol recolhe suas espadas douradas em aljavas rubras e a noite abre, cautelosa, seu véu escuro cravejado de brilhantes. De repente, os olhos rodopiam. No céu, não são estrelas, são reluzentes diamantes. Da linha do horizonte avançam em sua direção, suspensos no ar, palácios e castelos. Distingue nos terraços, entre ameias, odaliscas que retorcem o ventre nu ao som de citaras. Umbigos delicados giram ao ritmo de pandeiros. Têm a pele de pêssego, o requebro insinuante, o olhar lascivo. Não são mulheres, são frutas maduras a avivar-lhe o apetite. São serpentes a exalar fragrância de maçãs e transformar o deserto num harém tão luminoso como o incêndio que arde em suas entranhas.

Um forte ímpeto percorre seu corpo. Eis o que um homem deve almejar! De que vale a vida sem o ter, o poder e o prazer? Esquálido, apóia-se no galho que lhe serve de bengala, ergue-se cambaleante, estira o madeiro aos céus e, com o fio de voz que lhe resta, brada: Vai-te, Satanás, porque a Escritura diz: Ao Senhor teu Deus adorarás e só a ele prestarás culto.

Cai prostrado. A noite se derrama em sua mente. O suor salpica-lhe a pele, a respiração ofegante parece tragar a terra. Sua pele não sente o chão e seu ser ignora o corpo. É nada. Está extenuado, como se tivesse caminhado, como Hillel, do Eufrates ao Jordão. Um imenso vazio o povoa. Imponderável, mergulha na escuridão de um mundo que não nasceu, aborto sem olhos e sem vida.

Aos poucos, recobra a consciência. Não, não são as lembranças da memória e as conexões da inteligência que falam mais forte. São os ardores do coração. Não o seduzem a cobiça sensual, a voracidade de poder, o sonho da imortalidade. Está livre, invadido por uma profunda paz. Vagas brilhantes a inundar o oco do oceano. Sentidos, razão e espírito moldam-se em seu ser como uma só unidade. Tudo nele converge, imanência, transcendência e transparência, Enlaçam-se, num só complexo, todas as dimensões de sua vida.

Pressente, enfim, que nada mais poderá apartá-lo do Amor. Renascido, ao irromper do quadragésimo primeiro dia ele desce a montanha.

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Frei Betto, Um homem chamado Jesus, Ed. Rocco, p80-86, 2009.

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