quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

A demasia das palavras


DEVE-SE EVITAR A DEMASIA DAS PALAVRAS

1. Evita quanto puderes o bulício dos homens: porque o trato de coisas mundanas, ainda que se faça com intenção pura, é muito prejudicial. Pois depressa nos deixamos manchar e prender pela vaidade.

2. Bem quisera eu muitas vezes haver-me calado, e não ter estado entre os homens. Mas, por que gostamos tanto de falar e conversar com outros, se tão poucas vezes voltamos ao silêncio sem dano da consciência?

A razão por que falamos assim tão de boa vontade é que, com tais conversas, procuramos consolar-nos mutuamente, e desejamos aliviar o coração cansado de tantas preocupações. E de muito boa vontade nos pomos a falar ou pensar nas coisas que amamos e desejamos, ou nas que nos contrariam.

3. Mas, ai! Muitas vezes em vão e sem fruto; porque esta consolação exterior é de pouco dano e a consolação interior é divina. Vigiemos, pois, e oremos, para que não passe o tempo inutilmente.

Se for lícito e conveniente falar, dize coisas edificantes. O mau costume e o descuido de nosso aproveitamento muito contribuem para a pouca guarda de nossa língua. Não pouco, porém, aproveitam para o progresso espiritual as piedosas palestras sobre assuntos espirituais, especialmente quando se reúnem no Senhor pessoas animadas do mesmo coração e espírito.

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Esse é um pequeno fragmento do precioso IMITAÇÃO DE CRISTO, um manuscrito feito entre 1220-1240 por João Gersen, abade do mosteiro de S. Estevão, em Vercelli (Itália). Os 4 manuscritos originais foram depois organizados por Tomás de Kempis no séc. 15 e usado em larga escala para o ensino religioso na Europa. Pode-se dizer que boa parte do que conhecemos por Cristianismo está associado a esse livro.

O texto acima trata sobre o uso da fala, que deve ser pequeno e tido como inferior à consolação interior, divina. Embora todos possamos reconhecer o silencio habitual dos monastérios nessa passagem, em diferença da exaltada “conversa mundana” que “alivia o colação”, seria isso mesmo o que a Bíblia ensina? Não estaríamos frente a mais uma forma de purificação enraizada na mente humana? Para responder a essa pergunta, recorro ao Livro de Provérbios, que trata de assuntos variados com a sabedoria que foi ensinada e propagada a partir de Salomão.

Ali encontramos algumas sentenças instrutivas como

Não pode faltar o pecado num caudal de palavras (10.19a)
[Uma cidade] é destruída pelas palavras dos maus (11.11b)
O homem sábio guarda silêncio (11.12b)
O perverso trai os segredos (11.13a)
O homem se farta com o fruto de sua boca (12.14a)
O homem prudente oculta sua sabedoria; o coração do insensato proclama sua loucura (12.23)
Quem vigia sua boca guarda sua vida; quem muito abre seus lábios se perde (13.3)
A boca dos tolos sacia-se de loucuras (15.14b)
A boca dos maus vomita o mau (15.28b)
O que mede suas palavras possui a ciência (17.27a)
Mesmo o insensato passa por sábio quando se cala; por prudente quando fecha sua boca (17.28)
A boca do tolo é a sua ruína; seus lábios são uma armadilha para a própria vida (18.7)
Quem responde antes de ouvir passa por tolo e se cobre de confusão (18.13)
O que vigia sua língua e sua boca preserva sua vida da angústia (21.23)
Viste um homem precipitado no falar; há mais esperança no tolo do que nele (29.20)


Todos esses versículos recomendam de fato o que diz o texto do Imitação de Cristo, ou seja, que a fala seja pouca. Mas atentemos que o Livro de Provérbios refere-se, quase sempre, à fala do Tolo, do Mau, do Perverso. Esses são personagens caricatos de Provérbios que falam bastante e prejudicam a todos com as mentiras, as loucuras e as traições de segredos que proferem. Principalmente, são personagens que falam antes de ouvir, que desprezam e promovem brigas:

A boca dos maus [sabe dizer] o que é mau (10.32b)
Quem despreza seu próximo mostra falta de senso (11.12a)
Ao insensato parece reto o seu caminho (12.15a)
O falador fere com golpes de espada (12.18)
Uma palavra dura excita à cólera (15.1b)
A língua perversa corta o coração (15.4b)
A boca do insensato atrai açoites (18.6b)

Nesse caso, como diz o Imitação, “bem quisera eu muitas vezes haver-me calado, e não ter estado entre os homens”, pois trata-se da marca do insensato. Em outras palavras, aquele-que-não-pensa.

Mas o Livro de Provérbios, ao contrário, não recomenda o silêncio. Ele enaltece a palavra que provém da meditação segundo a Sabedoria fornecida por Deus (nas palavras de Jesus, em amor ao Pai e ao próximo).

Os lábios do justo sabem dizer o que é agradável (10.32a)
Um coração leal mantém ocultos os segredos (11.13b)
O sábio ouve os conselhos (12.15b)
A língua dos sábios cura (12.18b)
Uma boa palavra restitui a alegria [ao coração] (12.25b)
Uma resposta branda aplaca o furor (15.1a)
Como é agradável uma palavra oportuna! (15.23b)
O coração do justo estuda sua resposta (15.28b)
A doçura da linguagem aumenta o saber (16.21b)
Dá um beijo nos lábios o que responde com sinceridade (23.16)
Amáveis instruções surgem da língua [da mulher virtuosa] (31.26b)

Embora o Imitação coloque bons adjetivos apenas nas “palestras sobre assuntos espirituais”, o Livro de Provérbios propositalmente coloca esses ensinos sobre a linguagem no meio daqueles sobre todos os outros assuntos. Não se trata de horas especiais onde há um “falar” positivo: isso se aplica a todos os momentos, mesmo os mais corriqueiros.

Ainda, o Livro de Provérbios apresenta que certas vezes a palavra não deve ser contida, especialmente se ela provém do Justo ou do Sábio, outros personagens caricatos:

A língua do justo é prata finíssima (10.20a)
A boca do justo produz sabedoria (10.31a)
A boca dos justos salva [os ímpios] (12.6b)
Os lábios sinceros permanecem constantes (12.19a)
Quem visita os sábios torna-se sábio (13.20a)
A língua dos sábios ornamenta a ciência (15.2a)
A língua sã é uma árvore de vida (15.4a)
O coração do sábio torna sua boca instruída (16.23a)
Jóia rara é a boca sábia (20.15b)
Abre tua boca a favor do mundo, pela causa de todos os abandonados (31.8)
Faze justiça ao aflito e ao indigente (31.9b)

Dessa forma, Provérbios instrui a falar após buscar aconselhamento e sabedoria, de forma amável, a favor dos abandonados, aflitos e indigentes.

Quanto ao aconselhamento íntimo (ou auto-aconselhamento), que o Imitação indica como “divino”, isso é assunto duvidoso para os seguidores de Salomão:

É do fruto de sua boca que um homem se nutre; com o fruto de seus lábios ele se farta (18.20)
Água profunda [ou tenebrosa] é o conselho [ou intento] no íntimo do homem; o homem inteligente sabe pô-los para fora (20.5)

Já dizia Jeremias. Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e perverso; quem o poderá conhecer? (Jeremias 17.9)

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