domingo, 26 de janeiro de 2014

O contrário da sabedoria

Hrothgar, o rei bêbado
mitologia nórdica

Qual é o antônimo de sabedoria? Citando Paulo Brabo em sua busca (ou ambição) pela necessidade dos contrários, a pessoa SEM sabedoria é aquela que torna sua vida sujeita ao acaso, que restringe sua felicidade ao um grupo seleto de coisas que “deveriam” acontecer. Na Bíblia, o contrário de sabedoria é insensatez, tolice. Essa falta de sabedoria, segundo a Bíblia, é encontrada naquele que age de forma impetuosa, com raiva, levado pela imprudência e pelos impulsos de um coração tormentoso. Por curioso que seja, na Bíblia o livro de Provérbios (onde a Sabedoria é ensinada) é seguido pelo livro de Eclesiastes, onde os sábios testemunham o abandono da Sabedoria entre os reis do povo de Deus.

O autor de Eclesiastes é misterioso. O seu estilo de escrita é compatível com Salomão, e não poucos historiadores atribuem o livro ao famoso rei de Israel, lembrado por milênios por sua incrível sabedoria, por ter construído o Templo e pela suntuosa riqueza. Ao iniciar o livro, esse autor sem nome se apresenta no original hebraico como Qohélet, aquele que fala por todos, ou pela “Ecclesiae”, a Congregação. Daí veio o nome traduzido como “Eclesiastes”.

O Eclesiastes sem dúvida é de um livro para ensino da Sabedoria, assim como Provérbios. Até o estilo de escrita de ambos os livros é semelhante: muda-se rapidamente de assunto, apresentando sempre o que é certo e o que é errado, como se fossem (e olha que improvável, isso) vários pequenos pergaminhos ou tabuletas emendados por copistas do passado.

Salomão pediu a Deus sabedoria para governar. Ele escreveu essa sabedoria na forma de diversos provérbios, mas isso nunca foi uma tarefa solitária a que um rei sábio se entregasse ao longo da vida. Para os hebreus, a Sabedoria provinha do falar dos sábios, do diálogo das pessoas, da Congregação. Por isso, Salomão assim reuniu diversos sábios (alguns dos quais são nomeados, como o rei Lemuel e Agur) e designou uma “equipe” que formaria algo como “livros-texto” para o ensino da Sabedoria dentro da corte e também para o povo. É possível que Qohélet fosse uma espécie de cargo, uma posição mais importante dentre os sábios.

É interessante notar que, de fato, alguns ensinos de Eclesiastes dificilmente poderiam ser atribuídos a um monarca criado entre famílias reais das terras ao redor de Israel e a riqueza que Davi reuniu:

Por isso desprezei a vida, pois o trabalho que se faz debaixo do sol pareceu-me muito pesado. Tudo era inútil, era correr atrás do vento! Desprezei todas as coisas pelas quais eu tanto me esforçara debaixo do sol, pois terei que deixá-las para aquele que me suceder. E quem pode dizer se ele será sábio ou tolo? Todavia, terá domínio sobre tudo o que realizei com o meu trabalho e com a minha sabedoria debaixo do sol. Isso também não faz sentido.

Cheguei ao ponto de me desesperar por todo o trabalho no qual tanto me esforcei debaixo do sol. Pois um homem pode realizar o seu trabalho com sabedoria, conhecimento e habilidade, mas terá que deixar tudo o que possui como herança para alguém que não se esforçou por aquilo. Isso também é um absurdo e uma grande injustiça. (2.17-22)

São palavras que caberiam melhor na boca de um experiente pastor!

OS SÁBIOS E O VAI E VEM DOS GOVERNANTES

Como membros da corte, era de se esperar que os sábios se preocupassem com a sucessão do rei: Davi havia sucedido Saul de uma forma imprevisível, passando de pastor a músico da corte, depois a guerreiro e finalmente levando Saul e seu filho Jônatas à morte. Salomão havia sucedido Davi após uma tentativa de seu irmão Absalão tomar o trono e também após a morte dos demais príncipes na linha de sucessão. Quem sucederia Salomão? Qual dos filhos das suas concubinas? Ou seria um jovem guerreiro anônimo a liderar os exércitos, como Davi?

Os sábios da corte sem dúvida assistiam a esse jogo de poderes, ao passo que reinos vizinhos mais poderosos, como o Egito e a Assíria, hora ofereciam amizade, hora faziam guerra. A fragilização do reino pela disputa interna e o abandono da obediência ao Senhor por parte da realeza levou Israel a ser duramente atacada pelo Egito, antes uma potência mantida à distância. Eis o lamento dos sábios, perante uma casa real que se desintegrava:

O que pode fazer o sucessor do rei, a não ser repetir o que já foi feito?
Qual é o homem, designado desde muito tempo, que virá depois do rei?
(duas versões de Eclesiastes 2.12b)

Mais vale um adolescente pobre, mas sábio, que um rei velho, mas insensato, que já não aceita conselhos; porque ele [o jovem] sai da prisão para reinar, se bem que pobre de nascimento no seu reino.

Vi todos os viventes, que se acham debaixo do sol, apressarem-se junto do adolescente que o ia suceder. Era interminável o cortejo dessa multidão, à testa da qual ele caminhava. Contudo, a geração seguinte não se regozijará por sua causa. Tudo isso é ainda vaidade e vento que passa. (Eclesiastes 4.13-16)

Os sábios também assinalavam a problemática das lideranças que os reis colocavam na corte:

Há outro mal que vi debaixo do sol, um erro cometido pelos que governam: tolos são postos em cargos elevados, enquanto homens de valor ocupam cargos inferiores. Tenho visto servos andando a cavalo, e príncipes andando a pé, como servos. (10.5-7)

Ao que parece, Salomão entregou-se ao estudo cuidadoso e prática daquilo que era a Sabedoria. No fim da vida, entretanto, Salomão deixou-se levar pelo poder que havia ganhado e esqueceu-se que esse poder lhe fora dado por Deus.

PELA INSENSATEZ DE VELHOS ERROS, O REINO SE QUEBRA

Como poderia o rei mais sábio cometer o erro de afastar-se da Fonte? De uma forma engraçada, nem a Sabedoria, nem a Insensatez são perenes em homem algum.

O rei Salomão amou muitas mulheres estrangeiras, além da filha do faraó. Eram mulheres moabitas, amonitas, edomitas, sidônias e hititas. Elas eram das nações a respeito das quais o SENHOR tinha dito aos israelitas: “Vocês não poderão tomar mulheres dentre essas nações, porque elas os farão desviar-se para seguir os seus deuses”
...
No monte que fica a leste de Jerusalém, Salomão construiu um altar para Camos, o repugnante deus de Moabe¹, e para Moloque, o repugnante deus dos amonitas². Também fez altares para os deuses de todas as suas outras mulheres estrangeiras, que queimavam incenso e ofereciam sacrifícios a eles. (1ª Reis 11)

Aparecendo a ele como fizera quando lhe deu sabedoria, Deus simplesmente assegurou que lhe tiraria o reino dos filhos. Era a mesma punição de Saul! De algum lugar surgiria alguém que o destronaria, e o velho Salomão sem dúvida questionava os sábios sobre quem seria esse.

Assim como Samuel avisou a Saul e depois ungiu o pastor Davi, dizendo que ele seria rei, um profeta foi chamado para avisar o futuro rei:

Também Jeroboão, filho de Nebate ... era um dos oficiais de Salomão, um efraimita de Zeredá, e a sua mãe era uma viúva chamada Zerua.
...
Naquela ocasião, Jeroboão saiu de Jerusalém, e Aías, o profeta de Siló, que estava usando uma capa nova, encontrou-se com ele no caminho. Os dois estavam sozinhos no campo, e Aías segurou firmemente a capa que estava usando, rasgou-a em doze pedaços e disse a Jeroboão:

“Apanhe dez pedaços para você, pois assim diz o SENHOR, o Deus de Israel: ‘Saiba que vou tirar o reino das mãos de Salomão e dar a você dez tribos. Mas, por amor ao meu servo Davi e à cidade de Jerusalém, a qual escolhi dentre todas as tribos de Israel, ele terá uma tribo. Farei isso porque eles me abandonaram e adoraram Astarote, a deusa dos sidônios³, Camos, deus dos moabitas, e Moloque, deus dos amonitas, e não andaram nos meus caminhos, nem fizeram o que eu aprovo, nem obedeceram aos meus decretos e às minhas ordenanças, como fez Davi, pai de Salomão. Mas não tirarei o reino todo das mãos de Salomão. Eu o fiz governante todos os dias de sua vida por amor ao meu servo Davi, a quem escolhi e que obedeceu aos meus mandamentos e aos meus decretos. Tirarei o reino das mãos do seu filho e darei dez tribos a você. Darei uma tribo ao seu filho a fim de que o meu servo Davi sempre tenha diante de mim um descendente no trono em Jerusalém, a cidade onde eu quis pôr o meu nome.

Quanto a você, eu o farei reinar sobre tudo o que o seu coração desejar; você será rei de Israel. Se você fizer tudo o que eu lhe ordenar e andar nos meus caminhos e fizer o que eu aprovo, obedecendo aos meus decretos e aos meus mandamentos, como fez o meu servo Davi, estarei com você. Edificarei para você uma dinastia tão permanente quanto a que edifiquei para Davi, e darei Israel a você. Humilharei os descendentes de Davi por causa disso, mas não para sempre.”

Salomão [tomado pela insensatez] tentou matar Jeroboão, mas ele fugiu para o Egito, para o rei Sisaque, e lá permaneceu até a morte de Salomão. (1ª Reis 11)

De uma forma estranha e trágica, o que era passado voltava ao presente. Um jovem militar se tornaria poderoso, seria líder e depois perseguido pelos exércitos do velho rei. Em seguida voltaria e assumiria o trono.

O Egito havia sido afastado por Salomão e possivelmente alguns egípcios (negros) haviam se tornado escravos em Israel. Esses seriam os instrumentos do levante do novo rei:

Ora, Jeroboão era homem capaz, e, quando Salomão viu como ele fazia bem o seu trabalho, encarregou-o de todos os que faziam trabalho forçado, pertencentes às tribos de José. (1ª Reis 11.28)

Salomão foi sucedido por seu filho Roboão, de quem o Senhor assegurou que tiraria o trono. Quando Roboão assumiu, chegou a ele o pedido dos escravos: “Teu pai colocou sobre nós um jugo pesado, mas agora diminui o trabalho árduo e este jugo pesado, e nós te serviremos”. Os sábios então aconselharam Roboão a fazer o que os escravos pediam, mas não foram ouvidos! O lamento do Qohélet contra o rei demonstrava que já os soberanos haviam desdenhado dos “sábios do reino”.

Quando todo o Israel viu que o rei se recusava a ouvi-los, respondeu ao rei: “Que temos em comum com Davi? Que temos em comum com o filho de Jessé? Para as suas tendas, ó Israel! Cuide da sua própria casa, ó Davi!” E assim os israelitas foram para as suas casas.

Quanto, porém, aos israelitas que moravam nas cidades de Judá, Roboão continuou como rei deles. O rei Roboão enviou Adonirão, chefe do trabalho forçado, mas todo o Israel o apedrejou até a morte. O rei, contudo, conseguiu subir em sua carruagem e fugir para Jerusalém.

Dessa forma Israel se rebelou contra a dinastia de Davi, e assim permanece até hoje. Quando todos os israelitas souberam que Jeroboão tinha voltado, mandaram chamá-lo para a reunião da comunidade [a Ecclesiae] e o fizeram rei sobre todo o Israel. Somente a tribo de Judá permaneceu leal à dinastia de Davi. (1ª Reis 12)

FINDADO O REINO GRANDE, FINDAR-SE-ÃO OS MENORES

Roboão ficou como rei de Judá (com 2 tribos, a maior sendo Judá) e Jeroboão tornou-se rei de Israel (com 10 tribos, a maior sendo Efraim).

Apesar de ungido para o trono como Davi, Jeroboão rapidamente acreditou que chegara ao trono por seus próprios méritos. Empreendeu uma campanha para descaracterizar o reinado de Salomão (onde estava o Templo), criando ídolos de ouro a quem ele e o povo ofereciam sacrifícios por sua libertação do Egito! Então o Senhor mandou o profeta Aías dizer a sua mulher:

Vá dizer a Jeroboão que é isto o que o SENHOR, o Deus de Israel, diz: ‘Tirei-o dentre o povo e o tornei líder sobre Israel, o meu povo. Tirei o reino da família de Davi e o dei a você, mas você não tem sido como o meu servo Davi, que obedecia aos meus mandamentos e me seguia de todo o coração, fazendo apenas o que eu aprovo.

Você tem feito mais mal do que todos os que viveram antes de você, pois fez para si outros deuses, ídolos de metal; você provocou a minha ira e voltou as costas para mim. Por isso, trarei desgraça à família de Jeroboão. Matarei de Jeroboão até o último indivíduo do sexo masculino em Israel, seja escravo ou livre. Queimarei a família de Jeroboão até o fim como quem queima esterco. Dos que pertencem a Jeroboão, os cães comerão os que morrerem na cidade, e as aves do céu se alimentarão dos que morrerem no campo. O SENHOR falou!” (1ª Reis 14)

Houve conflito entre as duas dinastias, de Judá e de Israel, pelos 2 séculos seguintes, quando a Assíria invadiu Israel e, depois, quando a Babilônia organizou-se e levou cativos os restantes de Israel (então abrigados em Judá) e os habitantes de Judá.

O que foi tornará a ser, o que foi feito se fará novamente; não há nada novo debaixo do sol. Haverá algo de que se possa dizer: “Veja! Isto é novo!”? Não! Já existiu há muito tempo, bem antes da nossa época. Ninguém se lembra dos que viveram na antigüidade, e aqueles que ainda virão tampouco serão lembrados pelos que vierem depois deles. (Eclesiastes 1.9-11)

O insensato, curiosamente, sujeita-se às ações de Deus tanto quanto o sábio. Ele apenas condiciona sua felicidade a algo que dificilmente Deus faria.

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¹ Camos ou Qemósh era, aparentemente, o deus das entranhas. Supostamente os devotos defecavam em seus locais de culto, para que os sacerdotes fizessem previsões a partir das fezes.

² Moloque era um deus agrícola da fertilidade, ao qual seus devotos ofereciam os primogênitos bebês em sacrifício, queimando-os vivos nos altares. Daí o apelido “moleque”.

³ Astarote ou Astarte era a deusa que controlava o destino dos homens, associada geralmente às estrelas (daí a palavra “star” ou mesmo o nome Ishtar). Talvez sua adoração estivesse associada à queda de um grande meteorito no Oriente Médio, perto de onde hoje fica Meca.

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