sexta-feira, 4 de outubro de 2013

O Livro de Jó - 2ª parte - figurativamente falando

Enquanto esperamos Eliú aparecer, vamos escrevendo.

A parte mais antiga do Livro de Jó (cap. 1-2 e 42) provavelmente data dos tempos de Abraão (~ 2000 a.C.), sendo o texto mais antigo da Bíblia. Isso, claro, se desconsiderarmos a tradição oral escrita por Moisés em 1600 a.C., que descreve eventos de talvez 8000 a.C. Em outras palavras, Moisés escreveu depois sobre uma história mais antiga, como se comparássemos uma biografia de 1980 sobre Napoleão com um texto de 1920 sobre a 1ª Guerra.

Aqui, vamos examinar alguns significados "embutidos" no livro de Jó e que rodeavam a forma como os judeus o compreendiam.

ORA, AS MULHERES

No pequeno trecho em prosa que inicia o livro, salta aos olhos um costume pouco convencional e que de fato está bem longe dos costumes contados por Moisés: os filhos de Jó banqueteavam-se em suas casas e chamavam as irmãs a comerem com eles. Na tradição hebraica, as festas eram sempre promovidas pelo patriarca ou rabi (no caso Jó) e apenas os filhos homens eram convidados. Essa tradição seria quebrada muito tempo depois pelos costumes gregos e romanos introduzidos em ~500 a.C. após o Exílio babilônico. Pouco antes disso, em pleno Exílio, encontraremos por exemplo a rainha Vasti sendo chamada pelo rei Assuero (Xerxes o conquistador persa, quem diria) para ser exibida aos convidados (Estér 1.9) e depois a própria Estér (judia) recebendo a famosa oferta: "Rainha Ester, qual é o seu pedido? Você será atendida. Qual o seu desejo? Mesmo que seja a metade do reino, isso lhe será concedido" (Ester 7:2). Repare o poder oferecido! Uma oferta semelhante (senão propositalmente) foi feita a Salomé após dançar para a sedução dos convidados na festa promovida pelo pai Herodes (que era um judeu-grego educado pelos romanos, como convinha ao Império) ¹. Nos tempos de Jó, a moral hebraica condenaria totalmente as festas dos filhos, ainda mais com a presença das filhas! Ok, mas Hebron ainda era uma grande pastagem com tribos de pastores e Israel somente um sonho!

Na Península Arábica (onde ficava Uz e Ur dos caldeus) os costumes eram mais liberais. Haviam rainhas poderosas e também deusas poderosas. Jó era seguidor do Deus hebreu, mas essa era uma das opções nas vizinhanças. Em verdade, cada povoado tinha seus deuses... Desde a antigüidade, a Península Arábica conheceu grandes rainhas e provavelmente era muitíssimo mais igualitária em relação aos sexos. Ali, certamente as filhas de Jó eram tão importantes nas festas que talvez até oferecessem as suas próprias. Postura semelhante com as mulheres somente seria adotada por Jesus.

RECLAME COM O BISPO

Essa frase popular nunca poderia ser mais acertada do que com o Jó dos versículos em poesia. Ou seja, na parte do livro de Jó que foi escrita no Exílio. O Jó dessa parte poética é muito menos submisso do que o Jó da 1ª parte. Esse Jó é um homem profundamente deprimido, que reconhece a mão de Deus em suas agruras. Como escapar se é Deus quem lhe oprime?

Quando me deito, fico pensando: ‘Quanto vai demorar para eu me levantar?’ A noite se arrasta, e eu fico me virando na cama até o amanhecer. Meu corpo está coberto de vermes e cascas de ferida, minha pele está rachada e vertendo pus. ... Sou eu o mar, ou o monstro das profundezas, para que me ponhas sob guarda? Quando penso que a minha cama me consolará e que o meu leito aliviará a minha queixa, mesmo aí me assustas com sonhos e me aterrorizas com visões. Prefiro ser estrangulado e morrer do que sofrer assim; sinto desprezo pela minha vida! Não vou viver para sempre; deixa-me, pois os meus dias não têm sentido. ... Nunca desviarás de mim o teu olhar? Nunca me deixarás a sós, nem por um instante? Se pequei, que mal te causei, ó tu que vigias os homens? Por que me tornaste teu alvo? Acaso tornei-me um fardo para ti? Por que não perdoas as minhas ofensas e não apagas os meus pecados? Pois logo me deitarei no pó; tu me procurarás, mas eu já não existirei. (Jó 7.4-21)

Reconhecendo o poder de Deus, Jó expõe todo o amargor do seu coração quanto ao Senhor.

  • Embora inocente, eu seria incapaz de responder-lhe; poderia apenas implorar misericórdia ao meu Juiz. Mesmo que eu o chamasse e ele me respondesse, não creio que me daria ouvidos. Ele me esmagaria com uma tempestade e sem motivo multiplicaria minhas feridas. Não me permitiria recuperar o fôlego, mas me engolfaria em agruras. (Jó 9.15-18)
  • É tudo a mesma coisa; por isso digo: Ele destrói tanto o íntegro como o ímpio. Quando um flagelo causa morte repentina, Ele zomba do desespero dos inocentes. Quando um país cai nas mãos dos ímpios, Ele venda os olhos de seus juízes. Se não é Ele, quem é então? (Jó 9.22-24)

Embora muitas vezes pensemos que tal pessimismo seria um pecado, simplesmente era a verdade! Após ouvir as acusações dos amigos e sentir na pele a perda de tudo o que amava, estaria Jó contente? Claro, os amigos não eram pessoas muito "ouvidoras" quanto ao desabafo de Jó, então ele reclama ao próprio Deus sobre as injustiças que Ele lhe fizera!

Direi a Deus: Não me condenes, revela-me que acusações tens contra mim. Tens prazer em oprimir-me, em rejeitar a obra de tuas mãos, enquanto sorris para o plano dos ímpios? Acaso tens olhos de carne? Enxergas como os mortais? Teus dias são como os de qualquer mortal? Os anos de tua vida são como os do homem? Pois investigas a minha iniqüidade e vasculhas o meu pecado, embora saibas que não sou culpado e que ninguém pode livrar-me das tuas mãos.

"Foram as tuas mãos que me formaram e me fizeram. Irás agora voltar-te e destruir-me? Lembra-te de que me moldaste como o barro, e agora me farás voltar ao pó? Acaso não me despejaste como leite e não me coalhaste como queijo? Não me vestiste de pele e carne e não me juntaste com ossos e tendões? Deste-me vida e foste bondoso para comigo, e na tua providência cuidaste do meu espírito.

"Mas algo escondeste em teu coração, e bem sei que és tu: Se eu pecasse, me estarias observando e não deixarias sem punição a minha ofensa. Se eu fosse culpado, ai de mim! Mesmo sendo inocente, não posso erguer a cabeça, pois estou dominado pela vergonha e mergulhado na minha aflição. Se mantenho a cabeça erguida, ficas à minha espreita como um leão, e de novo manifestas contra mim o teu poder tremendo. Trazes novas testemunhas contra mim e contra mim aumentas a tua ira; teus exércitos atacam-me, em batalhões sucessivos. (Jó 10:2-17)

Essa figura do leão à espreita é bastante recorrente em todo o texto bíblico, indicando um poder de Deus ou do mau: "Sede sóbrios; vigiai; porque o diabo, vosso adversário, anda em derredor, bramando como leão, buscando a quem possa tragar" (1ª Pedro 5.8). Nesse caso, Jó reclama da severidade de Deus em seu castigo, argumentando (contra Ele) pela própria fragilidade.

A GRANDE PERGUNTA

O poder teológico do livro de Jó é enorme. Sua antigüidade e referência histórica devem ter feito dele muito importante para os judeus no Exílio. Além disso, Jó dispõe uma pergunta terrível do monoteísmo: "se não é Ele, quem é então?". Se não é Deus quem deixa o mal em toda a volta de Jó, quem é então?

Embora a teologia atual coloque o diabo como operante do mal, isso é muito raro em toda a Bíblia. Satanás é citado fazendo maldades no Gênesis, no início do livro de Jó, na tentação de Cristo, no confronto de Jesus com alguns endemoniados e depois no Apocalipse. Em todo o Velho Testamento, em especial, o mal representa punições e ações de defesa praticadas por Deus contra Seu povo (que se afastou na adoração de outros deuses como Baal) ou contra os inimigos do Seu povo (de quem o Senhor mandou muitas vezes matar as crianças e até mesmo o gado).

  • E viu o Senhor que a maldade do homem se multiplicara sobre a terra e que toda a imaginação dos pensamentos de seu coração era só má continuamente. Então arrependeu-se o Senhor de haver feito o homem sobre a terra e pesou-lhe em seu coração. E disse o Senhor: "Destruirei o homem que criei de sobre a face da terra, desde o homem até ao animal, até ao réptil, e até à ave dos céus; porque me arrependo de os haver feito." (Gênesis 6.5-7)
  • Entregá-los-ei ao desterro em todos os reinos da terra; por causa de Manassés, filho de Ezequias, rei de Judá, e por tudo quanto fez em Jerusalém. Porque quem se compadeceria de ti, ó Jerusalém? Ou quem se entristeceria por ti? Ou quem se desviaria a perguntar pela tua paz? Tu me deixaste, diz o Senhor, e tornaste-te para trás; por isso estenderei a minha mão contra ti, e te destruirei; já estou cansado de me arrepender. E padejá-los-ei com a pá nas portas da terra; já desfilhei, e destruí o meu povo; não voltaram dos seus caminhos. (Jeremias 15.4-7)
  • E tudo quanto havia na cidade [de Jericó] destruíram totalmente ao fio da espada, desde o homem até à mulher, desde o menino até ao velho, e até ao boi e gado miúdo, e ao jumento. (Josué 6.21)
Apenas no Novo Testamento o mal assume o real caráter de "obra de Satã" ou de ameaça à fé dos homens. No caso de Jó, sabemos de antemão que Deus estava envolvido em seus sofrimentos e de certa forma isso representava uma prova a mostrar para Satanás. Será esse o caso de todos os sofrimentos que a humanidade enfrenta, com crianças morrendo de fome, mortes em guerras, mortes por acidentes naturais, falta de condições mínimas de saúde, etc? De quantas testemunhas Satanás ainda precisaria?

O Novo Testamento, por outro lado, induz a pensarmos que o mal surge quando Satanás se apodera das pessoas:
  • Entrou, porém, Satanás em Judas, que tinha por sobrenome Iscariotes, o qual era do número dos doze. (Lucas 22.3)
  • Geralmente se ouve que há entre vós fornicação, e fornicação tal, que nem ainda entre os gentios se nomeia, como é haver quem possua a mulher de seu pai. ... Seja, este tal, entregue a Satanás para destruição da carne, para que o espírito seja salvo no dia do Senhor Jesus. (1ª Coríntios 5:5)
  • Disse então Pedro: Ananias, por que encheu Satanás o teu coração, para que mentisses ao Espírito Santo, e retivesses parte do preço da herdade? Guardando-a não ficava para ti? E, vendida, não estava em teu poder? Por que formaste este desígnio em teu coração? Não mentiste aos homens, mas a Deus. (Atos 5.3-5)
  • Por isso bem quisemos uma e outra vez ir ter convosco, pelo menos eu, Paulo, mas Satanás no-lo impediu. (1ª Tessalonicenses 2.18)
Como pode ser Deus bom e ao mesmo tempo o operante ou permitidor de tanta maldade?

MONSTROS, UM DIABO E JESUS

A influência estrangeira se faz sentir de maneira muito sutil no livro de Jó. Os rabis Elifaz, Bildade, Zofar e Eliú trazem a mentalidade (conservadora) das nações vizinhas, mas não introduzem grandes elementos culturais. É o próprio Jó quem faz isso! Aqui e acolá são citados elementos culturais de outros povos como Raabe (monstro ou dragão egípcio do caos que habitava o mar) e Nergal (deus sumério da guerra e pestilência).

  • Deus não refreia a sua ira; até o séquito de Raabe encolheu-se diante dos seus pés. (Jó 9.13)
  • As colunas dos céus estremecem e ficam perplexas diante da sua repreensão. Com seu poder agitou violentamente o mar; com sua sabedoria despedaçou Raabe. Com seu sopro os céus ficaram límpidos; sua mão feriu a serpente arisca. (Jó 26.11-13)

Seria natural ver Moisés falando sobre um monstro egípcio que contraria a ordem natural posta por Deus, mas Jó somente falaria isso se ele fosse posterior ao cativeiro no Egito. Nergal (senhor do fogo e apelidade rei dos infernos pelos hebreus) também aparece, mas de forma não nomeada:

A calamidade tem fome para alcançá-la, e a desgraça está à espera de sua queda. Ela consome partes da sua pele; o primogênito da morte devora os membros do seu corpo. Ele é arrancado da segurança de sua tenda, e o levam à força ao rei dos terrores. O fogo mora na tenda dele; espalham enxofre ardente sobre a sua habitação. (Jó 18.12-15)

Sem dúvida, os hebreus no Exílio tinham uma visão demonizadora dos deuses babilônicos. É bastante curioso que as associações entre o Diabo e um reino de fogo são características do Novo Testamento. O Satanás do Velho Testamento se comporta muito mais como um anjo ou espírito maligno, geralmente associado à mentira. A imensa maioria das citações de Satanás no Velho Testamento está nos dois primeiros capítulos do livro de Jó!

Jó também faz uma curiosa referência ao Messias. Em seu debate com os amigos, ele aponta primeiro que Deus é bom, depois que deus não sofre com as amarguras humanas, e finalmente que ninguém poderia protegê-lo do julgamento (desigual e às cegas) de Deus. A única forma de haver justiça no mundo seria através de um mediador poderoso entre Deus e os homens, que pudesse olhar nos olhos do Todo Poderoso e mostrar-Lhe a verdade.

Ah! terra, não cubras o meu sangue e não haja lugar para ocultar o meu clamor! Eis que também agora a minha testemunha está no céu, nas alturas está o meu advogado. O meu intercessor é meu amigo, quando diante de Deus correm lágrimas dos meus olhos. Ele defende a causa do homem perante Deus, como quem defende a causa do amigo. (Jó 16.18-21)

Quem poderia ser o defensor dos homens, afirmar sua fragilidade e inocência perante um Deus que desconhece o sofrimento humano?

FOFOCA

¹ Salomé não é citada na Bíblia como sendo a filha de Herodes II. Em verdade, o nome da filha não aparece em qualquer lugar do Novo Testamento. Essa anotação foi feita pelo historiador romano Flávio Josephus no livro Antigüidades dos Judeus: "Herodias era casada com Herodes, o filho de Herodes o Grande e Mariane II, filha de Simão, o Alto Sacerdote. Herodes II e Herodias tiveram uma filha, Salomé...".

---------- NÃO DEIXE DE LER A 3ª PARTE !!! ----------

LITERATURA QUE OS RABIS TROUXERAM

Ivo Storniolo, Como ler o livro de Jó - o desafio da verdadeira religião, Ed. Paulus, 2008
Nergal - wikipedia1
Nergal - wikipedia2
Paradise Café Discussions - Raab, the dragon

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