terça-feira, 20 de setembro de 2011

Quadrinhos de uma crença

Essa é uma série de quadrinhos que eu recebi e gostaria de discutir. Ela foi desenhada originalmente pelo cartunista americano Jack T. Chick, que desde os anos 1970 produz material "fundamentalista cristão", conforme dito por ele próprio. Dentre todas as obras de Jack T. Chick, "Esta foi a sua vida" com certeza é a mais famosa. Tenho certeza de que vão gostar.

clique na figura para ler o livreto

Leia a matéria traduzida do The Guardian :

Quem é o best-seller criador de histórias em quadrinhos hoje? Alan Moore, autor de obras como como Do Inferno, Watchmen e A Liga de Cavalheiros Extraordinários? Não. Seria Neil Gaiman, escritor de The Sandman, Stardust, e outros? Não. Seriam os criadores de personagens clássicos como o Homem-Aranha, o Hulk e o Quarteto Fantástico, como Stan Lee, Jack Kirby e Steve Ditko? Nenhuma dessas.

A resposta - de acordo com o site do próprio homem, pelo menos - é Jack Chick, criador da Chick Publications, cujos produtos alcançam mais de 100 países. Mas você não vai encontrar o trabalho de Chick na seção "quadrinhos" de sua livraria local ou sendo transformados em filmes. Ao contrário, ele criou um negócio global em minúsculas "tiras" para levarem "casa adentro" os princípios cristãos fundamentalistas, com a força de uma marreta. Onde você pode encontrá-los? Você pode ter um pressionado em sua mão quando anda por uma rua comercial movimentada. Você pode encontrá-los deixados em mesas de lanchonetes e bares, presumivelmente numa última tentativa para salvar as almas dos pecadores. Na semana passada, eu encontrei um no chão de um estacionamento elevado.

Para não-fundamentalistas cristãos - e, quem sabe? Talvez para eles, também - as vias são muitas vezes (provavelmente sem intenção) hilariantes. O que eu encontrei era um clássico de Chick: a primeira tira que ele produziu, em 1970, chamada "Esta Foi a Sua Vida". Nela, encontramos um cara com uma bela casa e um carro desfrutando de uma bebida e um cachimbo - todas as cenas narradas com passagens da Bíblia abaixo dos quadros. "Este era um homem bom", somos informados em seu funeral, mas quando ele chega ao Portões Celestiais, descobrimos que ele não poderia havia feito o bastante para entrar no reino dos céus. Sua vida é projetada em uma tela, enquanto um anjo observa. Aparecem mentiras, roubo, sussurros, e um quadro onde ele até é descrito como "devasso". "Ele está fora, para o lago de fogo com ele". Então, temos um retrocesso rápido e vemos o que sua vida poderia ter sido: ler a Bíblia para seus filhos na hora de dormir; orações antes das refeições, o seu gerente da empresa falando ao dono da fábrica onde trabalha: "Aliás, senhor, ele não é apenas um dos nossos melhores trabalhadores, mas também ele é um bom cristão! "

E esta é uma das vias mais leves Chick. Nos mais recentes, ele ataca a homossexualidade (A Espada Gay : "Gays e lésbicas são comuns hoje na TV e talk shows"), Halloween (Noite do Diabo , em que uma menina chamada Buffy descobre o verdadeiro horror dos doces ou travessuras), e jogos de RPG como Dungeons & Dragons, que são um atalho para o inferno ( Trevas e Masmorras - "Debbie, seu clérigo foi elevado ao nível 8. Acho que é hora de aprender como realmente fazer feitiços").

Esses trabalhos famosos geraram sátiras saudáveis, com uma das melhores paródias vinda de Daniel Clowes, criador da banda desenhada Ghost World. Sua faixa Devil Doll tem todos os ingredientes de um Chick, com um par boêmio seduzindo uma menina para um mundo de sexo, satanismo e drogas.

O Website de Chick informa que, ao contrário do boato na internet, ele não está morto e está trabalhando em pelo menos duas tiras novas por ano. Seus trabalhos podem ser aterrozizantes, mas provavelmente não na forma como o californiano de 86 anos de idade pretende. Não há uma grande margem para se arrepender no mundo de Chick: seu único propósito é fornecer uma dura advertência aos outros, sobre o tipo de comportamento que o evangelismo fundamentalista protestante de Chick abomina tanto.

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Uma coisa que chama a atenção nessa tira famosa são as “representações” de idéias. Primeiro a memória dos fatos na forma de cinema! Cinema foi uma boa escolha para “segundo as suas obras”, provavelmente algo mais apelativo ao entendimento atual do que os livros mencionados em Ap 20.12. O texto de Apocalipse foi escrito quando livro era, na verdade, um rolo de pergaminhos. 

“Obras” é aquilo que pode ser visto por todos, bem diferente do “pensamento”, que é pessoal e intransferível. Julgar alguém pelas obras é desprezar o que ele pensou e basear-se no que ele fez “visível”. O cinema é assim também: mostra o externo, o que é feito e não o que é pensado. Mas, curiosamente, os livros são diferentes... Possuirá Deus um registro livrístico dos nossos pensamentos? Uma resposta bem embasada no conhecimento de um oleiro sobre o seu vaso é SIM, vide os quadro 11 e 13. Assuste-se com o próprio pensamento quem souber entendê-lo...

Ainda, a parte final de Mt 25 é uma abordagem completamente inovadora de Jesus sobre a Lei mosaica e o que seriam as OBRAS apreciadas por Deus. O próprio Messias fala em crianças como representantes carnais de Si. Não uma, mas todas. Pelo menos quanto às crianças, Ele deixa claro que irá retribuir, no Dia do Juízo, as obras feitas em favor dos pequenos - como se fossem feitas para Ele.

Os quadros 13 e 19 são outras representações fortes. Eles mostram a importância de Jesus na vida do personagem como sendo a participação na igreja; não a igreja como reunião de pessoas, mas explicitamente como instituição e local. Nos tempos de perseguição ao Cristianismo em que os livros do Novo Testamento foram escritos, tal figura simplesmente não existia. Ou pelo menos não era nada de que se orgulhar: casas de gente pobre, plantações, catacumbas...

Quanto à igreja física do Velho Testamento, Jesus inaugura o NT juntando-se aos que discutem os textos sagrados (Lc 2.46-50), mas também fala duramente dos fariseus que passavam mais tempo no Templo, pelas obras que praticavam (Mt 23.23-28). Em outras palavras, Ele parecia valorizar a igreja como local de ensino e culto, mas a abominava como um local onde as pessoas pensavam ganhar um valor perante Deus. Quando condenou o “aprender o que é bom e não fazer”, ou “fazer o que é ruim, seguro de MERECER a graça divina”, Jesus dava uma função clara à igreja como local/reunião de ensino, cujo efeito seria conhecidamente bom ou ruim de acordo com as OBRAS (inclusive pensamentos) de cada um.

Essa tira de Jack T. Chick é bastante criticada porque algumas pessoas vêem nela um anúncio de que OBRAS são necessárias à Salvação prometida por Jesus. De fato, Jesus não exigiu obra alguma de nenhum seguidor. Ele não dispensou Sua graça só para quem o exaltasse, nem para quem fosse agradecer o recebido (Lc 17.12-19). No entanto, quanto à Salvação, o rabi de Nazaré disse que muitos expulsariam demônios e fariam milagres, porém não em Seu nome; e acrescentou que pelos frutos o ceifeiro conheceria as árvores. As ruins seriam lançadas ao fogo (Mt 7.15-23)...

Assim, Jesus coloca as obras em outro plano. Elas são NECESSÁRIAS à Salvação (porque mostram publicamente aqueles que aprenderam o ensino da igreja, sejam obras de pensamento, comportamento ou o resultado de ações) mas não são SUFICIENTES (só as obras de nada valem, sem a devocão primeira a Ele). Repare a semelhança EXTERNA entre a as duas passagens abaixo:

Passagem 1
Acautelai-vos, porém, dos falsos profetas, que vêm até vós vestidos como ovelhas, mas, interiormente, são lobos devoradores. Por seus frutos os conhecereis. Porventura colhem-se uvas dos espinheiros, ou figos dos abrolhos? Assim, toda a árvore boa produz bons frutos, e toda a árvore má produz frutos maus. Não pode a árvore boa dar maus frutos; nem a árvore má dar frutos bons. Toda a árvore que não dá bom fruto corta-se e lança-se no fogo. Portanto, pelos seus frutos os conhecereis.

Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus. Muitos me dirão naquele dia: Senhor, Senhor, não profetizamos nós em teu nome? e em teu nome não expulsamos demônios? e em teu nome não fizemos muitas maravilhas? E então lhes direi abertamente: Nunca vos conheci; apartai-vos de mim, vós que praticais a iniqüidade. (Mt 7:15-23)

Passagem 2
E [Jesus] disse-lhes: Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura. Quem crer e for batizado será salvo; mas quem não crer será condenado. E estes sinais seguirão aos que crerem: Em meu nome expulsarão os demônios; falarão novas línguas; pegarão nas serpentes; e, se beberem alguma coisa mortífera, não lhes fará dano algum; e porão as mãos sobre os enfermos, e os curarão. (Mc 16:15-18)

E, embora a “instituição igreja” às vezes faça alguma força para santificar OBRAS feitas ali e para os dali, não há menção disso na Bíblia. Muito pelo contrário: Jesus foi enfático ao elogiar um centurião romano, uma mulher samaritana e um leproso, todos excluídos da “sociedade” judaica. Anos depois, os apóstolos fizeram OBRAS em favor de gentios e Paulo elogiava a igreja de Beréia, na Grécia. Eram OBRAS do amor aprendido da igreja. Chick traz essa idéia no quadro 20.

Outra representação é o Deus semi-humano. Trata-se de um Deus que NÃO é homem, mas que fez o homem à sua imagem e semelhança. Chick fez questão de não dar expressão facial a Deus, o que é uma marca do ser humano, entre as outras espécies animais. Nós temos rostos expressivos e seria difícil ver um Deus não-humano com um rosto familiar... É uma abordagem contrária a artistas como Michelângelo, Da Vinci, Rafael, etc, para os quais a expressão do rosto de Deus fazia entender que Deus era SENSÍVEL à vida dos homens.

A Bíblia traz um Deus que se ira, se arrepende, que se agrada e que ama. Quando Jesus esteve entre os homens, Ele ainda sofreu, participou de festas, chorou, irou-se e descansou. O Deus imutável (e sem expressão) que os gregos pregavam antes de Paulo parece terrivelmente diferente daquele que o Rabi de Nazaré veio anunciar.

Finalmente, Chick desenhou uma MORTE bastante popular nos quadros 2 e 21, na forma do ceifeiro Grim Reaper. Esse sujeito começou a aparecer no século XV em ilustrações, na época em que a peste bubônica matou boa parte da população de Londres. A arte do Grim Reaper misturou o Ankhou celta (um morto com capuz) com a imagem do aguilhão de 1Co 15.55-56:

Onde está, ó morte, o teu aguilhão? Onde está, ó inferno, a tua vitória?
Ora, o aguilhão da morte é o pecado, e a força do pecado é a lei.

Na Bíblia há raras referências à morte como uma criatura. Fala-se dela assim no livro de Oséias (Onde estão, ó morte, as tuas pragas?) e em Apocalipse (E naqueles dias os homens buscarão a morte, e não a acharão; e desejarão morrer, e a morte fugirá deles. E a morte e o inferno foram lançados no lago de fogo.). No ocidente, a morte já foi um esqueleto e também uma velha, mas desde a peste de Londres ela é o Grim Reaper. A Bíblia simplesmente fala do “ato de morrer”, podendo esse ser causado por punição divina, uma arma (humana ou de anjo) ou ainda pela vontade de Deus.

Nos dois quadros em que esse Grim Reaper aparece, ele está invisível (sempre atrás do personagem) e o toca com a mão (então, para que a foice?), produzindo dor no coração. Todos temos essa idéia do “infarto fatal” como algo imprevisível. Jack T. Chick não mostra o personagem velho (morte iminente), mas dá a entender a morte totalmente inesperada (por isso atrás dele). Eis algo que assusta.

Todas as tiras de Jack T. Chick trabalham sobre a idéia de algo assustador (e muitos outros cartunistas famosos também fazem isso) para prender a atenção do leitor. Essa também é uma estratégia usada (inclusive na Bíblia) para fixar mensagens. Na maioria dos quadros, a expressão do personagem é de pavor, assombro, etc.

Funcionou com você?

2 comentários:

  1. Sou desenhista e cristão. Devo admitir que o trabalho de Jack tem sido um incentivo e inspiração para mim. Houve um tempo em que eu desenhava e guardava meus trabalhos em um portifolio na esperança de conseguir distribuí-los mais tarde. Mas aí veio o desânimo e resolvi abandoná-los pois não conseguia mais acreditar que poderia fazer progresso assim. Eu pensava "ora, ninguem gosta de quadrinhos nessa cidade. Ninguem dá valor a esse tipo de coisa". Daí pesquisei sobre hqs cristãs que já era algo que estava tentando fazer antes e descobri o trabalho deste homem. Agradeço a Deus por isso pois voltei a me interessar em desenvolver novos trabalhos.

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    1. Abraão, toda forma de evangelização é importante. Também sou fã de quadrinhos. Depois que descobri o poder de memorização que coisas humorísticas do tipo "Os Simpsons", fiquei pensando também em usar isso para a igreja (segundo a lenda, ninguém nunca esquece um episódio). Fazendo eu também umas tentativas na aba "Jesus tá veno".

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