Uma foto interessante do Carl Sagan posando de tripulante da Enterprise
Esse texto vai especialmente para os fãs de ficção científica. Copiei deliberadamente do site Bacia das Almas. Lá, ele se chamava A ASSINATURA SECRETA. É interessante o suficiente para eu não suportar deixá-lo lá. Vai um parabéns ao Paulo Brabo (possivelmente outro fã de ficção) por isso... Ele fala da interpretação científica da Bíblia, coisa que alguns ídolos da minha infância, como Carl Sagan, fizeram (ou morreram tentando fazer).
CARL SAGAN VIVIA DIZENDO QUE, SE EXISTISSE, DEUS DEVERIA TER DEIXADO A SUA EXISTÊNCIA MAIS CLARA
CARL SAGAN VIVIA DIZENDO QUE, SE EXISTISSE, DEUS DEVERIA TER DEIXADO A SUA EXISTÊNCIA MAIS CLARA
Há gente que gostaria que Deus fizesse sentido cientificamente – ou, dizendo melhor, que Deus usasse mais sensatamente a evidência científica como argumento evangelístico. Entre esses estava, surpreendentemente, o falecido astrofísico Carl Sagan, que despejou todo o seu ressentimento contra o Deus em que não acreditava no seu romance Contato (que acabou gerando um filme muito diferente dirigido por Robert Zemeckis).
Carl Sagan vivia dizendo que, se existisse, Deus deveria ter deixado a sua existência mais clara. Para evitar a Bacia das Lamas da nossa condição religiosa, Deus deveria ter deixado a sua assinatura muito visível, onde pudesse ser vista por todos e por cada um. Ao chegarem na lua os primeiros astronautas deveriam ter encontrado um gigantesco painel de neon piscando milagrosamente “Só Jesus Cristo Salva” (ou “Allahu Akbar”, dependendo de quem está contando a história). A Bíblia deveria registrar descobertas científicas impossíveis de se antever no tempo em que foi escrita, como a posição dos elementos pesados na Tabela Periódica, a engenharia da comunicação via-satélite ou uma descrição detalhada do mecanismo da mitose celular. Cada pedra revirada deveria exibir a inscrição Made By God, e cada pôr do sol deveria vir acompanhado de um símbolo muito visível de copyright. Bastaria isso, ou pelo menos uma dessas coisas. Sagan ficava muito chateado com Deus por ser um artista que, se existisse, havia deixado a sua obra sem assinar
Confesso que eu esperava mais do velho Sagan, que de outra forma julgava muito perspicaz e cabeça aberta. Quem disse que a assinatura do universo teria de ser de natureza científica? Não poderia ser uma pegada literária, psicológica, artística? Quem sabe nos deparamos com a assinatura todos os dias e somos simplesmente incapazes de perceber? E se o universo fosse a própria assinatura? Haveria assinatura mais conspícua do que o universo? Quem sabe não haverá uma assinatura particular para cada pessoa, e tantas assinaturas quanto pessoas?
E SE O UNIVERSO FOSSE A PRÓPRIA ASSINATURA?
E SE O UNIVERSO FOSSE A PRÓPRIA ASSINATURA?
A ânsia de Sagan por uma prova irrefutável não me intriga tanto quanto o fato de haver inúmeros cristãos que caem na tentação de procurar enquadrar Deus e a Bíblia num sensato cenário científico. Há aqueles de nós que defendem que o texto bíblico prefigura acuradamente a redondeza da terra, o fato do planeta estar suspenso sobre o vazio, a formação das tempestades, os fundamentos da transmissão por ondas de rádio, a existência dos dinossauros, o ciclo da água, a interdependência das espécies, o mecanismo das placas geológicas, a fisiologia do cérebro, toda a psicologia de Freud e Jung, a natureza química do tecido vivo e até mesmo (como sugerido aqui recentemente) a perna faltante do cromossomo Y.
O que me incomoda neste tipo de alegada evidência é que ela fundamenta-se na interpretação subjetiva de um texto para confirmar a sua verdade científica – e subjetividade e ciência são, por definição, imiscíveis. Estamos explicando a posteriorimetáforas de outros, e de outros que estavam falando a respeito de outra coisa. Trata-se de defesa no mínimo tênue, e para sempre controversa. Pior ainda, este tipo de inferência subjetiva é muito difícil de contradizer porque está baseada numa leitura muito pessoal de um texto que já é suficientemente obscuro. O intérprete pode sempre alegar que a evidência é clara como o sol e que apenas os obstinados e preconceituosos não se dobram diante dele – mas eu posso sempre alegar que quem pode ver um aparelho de rádio na arca da aliança deve ser capaz de enxergar coisa pior em textos ainda mais obscuros.
Não consigo engolir esse tipo de argumento “não haveria como estar ali sem a intervenção divina” por diversos motivos além de me parecerem subjetivos e pouco convincentes. Acredito demais na consistência de Deus e na integridade da ciência para crer que Deus precisaria/utilizaria uma confirmação científica dessa natureza para se legitimizar.
A REVELAÇÃO MAIS INEQUÍVOCA NÃO BASTARIA PARA ALGUÉM QUE FOSSE CÉTICO O BASTANTE
Primeiro porque, no caso da escritura, a suposta revelação embutida no texta sagrado não teria valor algum para o público original, que não teria naturalmente como detectá-la e impressionar-se com ela. Pessoalmente, suponho que não seria justo atribuir mais significado ao texto do que o seu leitor original teria condições de captar. Se os primeiros leitores não precisaram compreender as revelações científicas secretamente embutidas no texto que adotaram imediatamente, não imagino porque o público posterior precisaria/mereceria evidência maior.
Em segundo lugar, está muito claro para mim que mesmo a revelação mais inequívoca não bastaria para alguém que fosse cético o bastante. Talvez haja textos, sagrados ou não, de outras culturas, que acertam numa mosca para a qual não apontaram, mas estou certo de que as supostas “revelações” bíblicas não despertariam mais do que um bocejo de ceticismo em alguém como Carl Sagan – ou Philip Klass, o famoso debunker de discos voadores. Os dois caras exigiriam evidência muito mais inequívoca antes de se dobrarem – e eu, pelo meu lado, creio que para eles nenhuma evidência seria conclusiva o bastante. É preciso fé para acreditar que textos sagrados estejam falando de ciência.
Finalmente, se Deus fosse menos tímido do que aparentemente é e mais como Sagan gostaria que ele fosse, se a existência de Deus e a consistência de determinada religião ficasse realmente inequívoca, incontestável, à prova de balas; se Deus fosse entrevistado no Jô e desse concertos no Central Park e se tornasse testemunha-chave em todos os julgamentos possíveis; se a palpabilidade de Deus se tornasse questão de senso comum e de vez em quando tropeçássemos nele no shopping; se fosse assim, algo muito fundamental mudaria no nosso relacionamento com ele, algo que não estou certo que ele (ou mesmo eu) queira que mude. Se algumas tensões seriam relaxadas, outras pressões muito maiores e difíceis de avaliar seriam criadas pela opressiva e onichateante presença de Deus.
Bem, fato é que a Bíblia não contém previsões científicas inequívocas, apenas o mesmo tipo de sugestões vagas e controversas que, descobri recentemente, alguns encontram no Alcorão. Mais importante, talvez, é que a Bíblia diga descaradamente que é pela fé (isto é, não pela evidência científica, que) entendemos que os mundos foram criados pela palavra de Deus; de maneira que aquilo que se vê não foi feito do que é aparente (Hebreus 11:3). Esta última frase esgota, naturalmente, qualquer pretensão de consistência científica que a Bíblia ou Deus poderiam ter.
DEUS NÃO PRECISA PROVAR NADA PARA NINGUÉM
Como qualquer agnóstico pode atestar, a prova inequívoca parece não fazer parte do modus operandi de Deus. Se Deus existe, parece ter optado por um austeríssimo recato quase nunca interrompido. Emblema disso são as três tentações às quais Jesus resistiu no deserto, todas elas provocações para que ele quebrasse o recato divino e tornasse inquestionáveis diante de todo o mundo a sua missão e a sua divindade. Todas as tentações diziam, de certa forma, a mesma coisa: “prove a si mesmo e aos outros que é Deus”; numa de suas respostas à tentação, Jesus rebateu com um verso da Bíblia Hebraica que equivale a dizer: “Deus não precisa provar nada para ninguém”. Isso evidentemente não prova nada a respeito de nada, mas aparentemente era essa mesmo a idéia.
Devido a todo esse consistente recato divino, não tenho como deixar de simpatizar com a perplexidade e o ressentimento dos agnósticos que encontro freqüentemente. Apenas peço que me anexem como evidência de um sentimento semelhante: eu mesmo creio irrestritamente em Deus, mas sou cético demais para deixar-me convencer por qualquer prova inequívoca da sua existência.
Minha fé diz mais respeito às minhas dúvidas do que às minhas certezas.
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