quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Andanças dos profetas por esse mundo - o emaranhamento de Moisés, al-Khadir, Elias e Jesus

 

Elias andando sobre o mar e resgatando o príncipe Nur ad-Dahr, em pintura de Mir Sayyid Ali no manuscrito do imperador Mongol Akbar I (1556-1605). Trata-se das estórias chamadas Hamzanama, que narram as façanhas de Ḥamzah ibn Abd al-Muṭṭalib. Esse tio de Muhammad/Maomé juntou um bando de heróis e percorreu o Oriente Médio (em direção à Índia) lutando contra os inimigos do Islã. As histórias sobre ele, de uma tradição oral de longa data, foram escritas em persa. No Ocidente, a obra é mais conhecida pelo enorme manuscrito ilustrado do imperador Akbar, completada em 1562. Na arte islâmica, o fogo sobre a cabeça é um indicativo do Sagrado¹.



Entre a destruição de Jerusalém (70 d.C.) e o final do Império Romano do Ocidente (500 d.C.) houve uma época muito frutífera para a cultura religiosa do Ocidente. Ali no Oriente Médio, os Judeus haviam sido desorganizados da hierarquia dos Saduceus comandando o Templo e recriavam sua estrutura em torno dos Rabis (sábios que falavam nas Sinagogas). Os povos Persas, libertos de Roma Ocidental e vendo a organização de um novo poder Romano no Oriente, se reuniam para em algum tempo formar o que seria o Islã. Os Cristãos, ora atacados, ora apoiados por Roma, viveram a junção da Igreja com o Império Romano e, no Ocidente, viviam finalmente o desmantelamento de tudo isso. Na Europa, os povos Godos, Germânicos, Saxões e Bretões eram os “novos Cristãos”, guardadores da tradição Católica.


Essa época possibilitou criativas misturas entre diversas culturas religiosas. Não foram alterações do cerne literário de cada uma, mas um envolvimento sobretudo das estórias orais, contos e lendas. Embora hoje vistos como um segmento de menor importância dentro da religião, essas tradições precisam ser entendidas como poderosas no sentido em que os textos “canônicos” ou “sagrados” foram, em algum momento, produzidos a partir desse material. O Evangelho de Lucas, por exemplo, começa afirmando ser “segundo nos transmitiram os mesmos que presenciaram desde o princípio, e foram ministros da palavra” (Lucas 1.2), mas foi escrito 60 anos após a morte de Jesus. O Evangelho de Marcos, mais antigo e possivelmente menos influenciado por tradições orais, foi composto pelo menos 20 anos após as falas de Pedro às multidões e, notoriamente, é muito menor do que os demais evangelhos.


Aqui trataremos de algumas dessas tradições orais, e como elas emaranham elementos do Cristianismo, Judaísmo e Islamismo.


As Haggadah são tradições orais dos Judeus registradas desde a destruição de Jerusalém até o séc. 13, em sua maioria no interstício 100-550 d.C. Muitas dessas tradições são interpretações de leis, alegorias, parábolas, ensinamentos, etc. Algumas envolvem personagens lendários como Elias, tema da magnífica pintura no início desse texto.


O PODEROSO ELIAS


Elias viveu no começo do séc. 9 a.C. Ele foi o profeta representando Javé/Jeová contra o rei Acabe e sua nova devoção, o deus dos relâmpagos Baal (1ª Reis 17-18). Elias desafiou os profetas de Baal e acedeu a lenha sob o sacrifício com sua oração a Deus, condenando os profetas e a rainha Jezebel à morte.


As Haggadah contém um extenso material sobre Elias, que inclui o disposto no Velho Testamento e também muitas outras estórias. Temos algo sobre o nobre e herege Hiel (amigo de Acabe, citado em 1ª Reis 16.34), a recusa do boi ao sacrifício para Baal, o silêncio do mundo, o Sol parando no céu, a água saindo das mãos de Elias, a sequência de vento/terremoto/fogo/voz de Deus, a luta com o anjo da morte, a administração das almas dos mortos, a encarnação do anjo Elias, o Templo invisível, a aparição (disfarçada) de Elias ao rei Assuero/Xerxes I (486-465 a.C), Elias como anjo da guarda dos justos e piedosos, Elias como um espírito soltando palavras no ouvido do imperador romano em benefício do Rabi/profeta Naum (615 a.C.) e outros. Às vezes, Elias aparecia como um árabe ou uma prostituta aconselhando.


Elias assume o papel de vários "ajudadores" nas estórias dos antigos Rabis, testemunhando em favor de um, avisando outro, encenando disfarces para proteger pessoas das autoridades romanas. Mas as narrativas sobre Elias não se restringem a estórias de sabedoria. Elias era um conhecedor de "magias" judaicas como usar orvalho para ressuscitar os mortos e cuspir nos olhos para curar doenças (qualquer semelhança com Jesus não é mera coincidência). Além disso, numa de suas viagens pela Terra, ele se atentou para o que as galinhas e gansos diziam sobre as pessoas da casa onde moravam. Em outra, transformou-se num urso para impedir que três homens de grande fé, orando juntos, devolvessem os mortos à vida.


Algumas são estórias humorísticas até, como os dois casais abençoados. Um casal pobre foi abençoado com seu dinheiro se multiplicando até que quisessem parar de contar, outro casal rico decidiu fazer as necessidades e elas se multiplicaram por toda sua vida..


Numa estória, esse anjo-Elias (chamado Sandalphon, antes da criação dos homens) se oferece para ser vendido como escravo para ajudar um homem pobre. Seu comprador, um príncipe, vê ele erguer em uma só noite um palácio. Noutra estória, ele apareceu ao futuro Rabi Akiva (50-135 d.C.), então alguém muito pobre e dormindo sobre paus, para mostrar-lhe uma pobreza ainda maior, que o animaria a respeito de sua condição.


Quando Jesus perguntou, perto de Betsaida, "Quem dizem que sou?" (Marcos 8.27) e alguns responderam "Elias", provavelmente temos um indício dessas tradições judaicas sobre Elias andando disfarçado pelas estradas, aparecendo para ajudar os homens. Esse mesmo ajudante, no entanto, poderia cobrar de alguém uma atitude de fé ou até matar sem aviso um que encontrasse fazendo suas devoções de forma imprópria.


Um papel interessante que é atribuído a Elias é o de carregador da Sabedoria. Através das estórias com Elias como protagonista, o Talmude judeu cria uma narrativa onde os ensinos de um Rabi são aplicados à vida do outro, em locais distantes e séculos depois, ou antes. Como o leitor que tem todos esses ensinamentos durante de si, capaz de aplicar as falas de Jesus ao profeta Daniel na Babilônia, Elias certamente era um personagem importante das Sinagogas e dava vida a narrativas colcha-de-retalhos misturando as vidas de todos os sábios venerados pelos Judeus: José, Nehorai, Judah, bar Abbahu, Abiathar, Eliezer ben Hyrcanus, Nathan, Judah ha-Nasi, Meir, bar Shila, Joshua ben Levi, Johanan ben Zakkai.


Uma estória sobre Elias, no entanto, é mais notória que as demais. Não por seu conteúdo, mas pela semelhança com uma estória sobre outros personagens contida no Alcorão.


A VERSÃO DOS JUDEUS


"Certa vez, ele [Elias] concedeu a seu amigo, o Rabi Joshua ben Levi, a realização de qualquer desejo que escolhesse. Mas tudo o que o Rabi pediu foi acompanhar Elias em suas andanças pelo mundo. Elias estava preparado para satisfazer esse desejo. Ele apenas impôs a condição de que, por mais estranhas que suas ações parecessem, o Rabi não deveria pedir nenhuma explicação sobre elas. Se alguma vez ele perguntasse por quê, eles teriam que se separar.


Então Elias e o Rabi saíram juntos e seguiram viagem até chegarem à casa de um homem pobre, cuja única possessão terrena era uma vaca. O homem e sua esposa eram pessoas de bom coração e receberam os dois andarilhos cordialmente. Eles convidaram os estranhos para sua casa, colocaram diante deles comida e bebida do melhor que tinham, e prepararam um sofá confortável para passarem a noite.


Quando Elias e o Rabi estavam prontos para continuar sua jornada no dia seguinte, Elias orou para que a vaca pertencente a seu anfitrião morresse. Antes de saírem de casa, o animal havia morrido. O Rabi Joshua ficou tão chocado com a desgraça daquelas pessoas boas que quase perdeu a consciência. Ele pensou: "Essa é a recompensa do homem pobre por todos os seus serviços gentis para nós?" E ele não pôde deixar de fazer a pergunta a Elias. Mas Elias o lembrou da condição imposta e aceita no início de sua jornada, e eles seguiram viagem, sem sanar a curiosidade do Rabi.


Naquela noite chegaram à casa de um homem rico, que não prestou ao hóspede a cortesia de olhá-los de frente. Embora passassem a noite sob seu teto, ele não lhes ofereceu comida ou bebida. Este homem rico desejava que fosse consertado um muro que havia desabado. Não houve necessidade de tomar nenhuma providência para reconstruí-lo, pois, quando Elias saiu de casa, orou para que a parede se erguesse sozinha e, eis! Ficou em pé. O Rabi Joshua ficou muito surpreso, mas fiel à sua promessa, ele suprimiu a pergunta que lhe veio aos lábios.


Assim, os dois viajaram novamente, até chegarem a uma sinagoga ornamentada, cujos assentos eram feitos de prata e ouro. Mas os fiéis não correspondiam em caráter à magnificência do edifício, pois quando chegou o ponto de satisfazer as necessidades dos peregrinos cansados, um dos presentes disse: "Não há falta de água e pão, e os viajantes estranhos podem ficar na sinagoga, onde esses refrescos podem ser trazidos para eles." Cedo na manhã seguinte, quando eles estavam partindo, Elias desejou, para os presentes na sinagoga em que haviam se hospedado, que Deus os levantasse a todos para serem "cabeças" [ou líderes]. O Rabi Joshua novamente teve que exercer grande autocontrole e não colocar em palavras a pergunta que o perturbava profundamente.


Na cidade seguinte, eles foram recebidos com grande afabilidade e serviços abundantes. A esses anfitriões bondosos, Elias, ao partir, concedeu o desejo de que Deus pudesse lhes dar apenas um líder. Agora o Rabi não conseguia mais se conter e exigia uma explicação para as ações bizarras de Elias.


Elias consentiu em esclarecer sua conduta para o Rabi Joshua antes que se separassem. Ele falou o seguinte: “A vaca do pobre foi morta, porque eu sabia que no mesmo dia a morte de sua esposa havia sido ordenada no Céu, e eu orei a Deus para aceitar a vaca em substituição à sua esposa. Quanto ao rico, havia um tesouro escondido sob a parede dilapidada e, se a tivesse reconstruído, teria encontrado o ouro; portanto, ergui a parede milagrosamente para privar o mesquinho da valiosa descoberta. Desejei que o povo inóspito reunido na sinagoga pudesse ter muitos chefes, pois um lugar de vários líderes está fadado a se arruinar pela multiplicidade de conselhos e disputas. Aos habitantes de nossa última estada, por outro lado, desejei uma 'liderança única'. Para quem guiar uma cidade, o sucesso acompanhará todos os seus empreendimentos. Saiba, então, que se você vê um malfeitor prosperar, nem sempre é em seu proveito, e se um homem justo sofre necessidade e angústia, não pense que Deus é injusto". Após essas palavras, Elias e Rabi Joshua se separaram um do outro, e cada um seguiu seu próprio caminho". (Legends of the Jews, 1909)


Na tradição Cristã, Moisés foi o invocador das 10 pragas do Egito, líder da travessia dos Hebreus pelo Mar Vermelho e carregador das tábuas de pedra com os 10 Mandamentos. Mas os Muçulmanos também têm a sua tradição oral, na forma de Hadiths registradas ao longo dos séculos como comentários do Alcorão. Segundo os preceitos do Sufismo, essas tradições devem vir precedidas da enunciação de todos os sábios pelos quais elas passaram, bem no estilo "José falou que Maria falou que Daniel falou que ... que o profeta Muhammad falou". Um similar da estória acima, em especial, aparece parcialmente no Alcorão dentro da Sura 18 (A Caverna), ayas 60-82. Ela introduz um sábio sem nome que ficou conhecido como "O Verde", e que a tradição oral não apenas nomeou mas complementou as estórias de forma bastante coerente.


A VERSÃO ISLÂMICA


“O Profeta (que a paz esteja com ele) disse: "Uma vez o Profeta Moisés se levantou e dirigiu-se a Banu Israel [banu = clã]. Foi perguntado a ele: "Quem é o homem mais culto entre as pessoas?" Ele disse: "Eu sou o mais culto."


Allah admoestou Moisés, pois ele não atribuiu conhecimento absoluto a Ele (Allah). Então Allah o inspirou: "Na junção dos dois mares, há um escravo meu que é mais erudito do que você". Moisés disse: "Óh meu Senhor! Como posso conhecê-lo?" Allah Todo-Poderoso disse: "Pegue um peixe em uma cesta grande e prossiga. Você o encontrará no local onde perderá o peixe".


Então Moisés partiu com seu servo, Yusha bin Nun [Josué filho de Nun] e carregou um peixe em uma grande cesta até chegarem a uma rocha, onde deitaram-se e dormiram. O peixe saiu da cesta e foi para o mar como através de um túnel². Portanto, foi uma coisa incrível tanto para Moisés quanto para seu servo.


Eles prosseguiram pelo resto da noite e o dia seguinte. Quando o dia amanheceu, Moisés disse ao seu menino: "Traga-nos nossa refeição antecipadamente. Sem dúvida, sofremos muito cansaço nesta viagem". Moisés não se cansou até que passou pelo lugar em que estava ordenado a ir. Lá o menino disse a Moisés: "Você se lembra de quando nós nos deitamos na pedra? Eu esqueci o peixe". Moses comentou: "Isso é o que temos procurado!” Então eles voltaram refazendo seus passos, até chegarem à rocha. Lá eles viram um homem coberto com um capa. Moisés o cumprimentou.


Al-Khadir respondeu dizendo: "Como as pessoas se cumprimentam em sua terra?" Moisés disse: "Eu sou Moisés." Ele perguntou: "O Moisés de Banu Israel?" Moisés respondeu afirmativamente e acrescentou: "Posso segui-lo para que me ensine esse conhecimento que você recebeu?". Al-Khadir respondeu: "Verdadeiramente! Mas você não será capaz de permanecer paciente comigo, ó Moisés! Eu tenho um pouco do conhecimento de Allah, que Ele me ensinou e você não sabe, embora você tenha algum conhecimento que Allah lhe ensinou que eu não sei". Moisés disse: "Se Deus quiser, você me achará paciente e não te desobedecerei em nada". Então, os dois partiram caminhando à beira-mar, pois não tinham barco.


Um barco passou por eles e pediram à tripulação para irem à margem. A tripulação reconheceu Al-Khadir e os levou a bordo sem tarifas. Então um pardal veio e ficou na borda do barco e mergulhou seu bico uma ou duas vezes no mar. Al-Khadir disse: "Óh Moisés! Meu conhecimento e seu conhecimento não diminuíram o conhecimento de Allah, nem o tanto quanto este pardal diminuiu a água do mar com seu bico".


Al-Khadir foi para uma das tábuas do barco e arrancou-a. Moisés disse: "Essas pessoas nos deram uma condução grátis, mas você quebrou o barco deles e o afunda para afogar as pessoas!" Al-Khadir respondeu: "Eu não disse que você não seria capaz de permanecer paciente comigo?" Moisés disse: "Você me lembrou o que eu esqueci". A primeira desculpa de Moisés foi que ele havia esquecido.


Então eles continuaram e encontraram um menino brincando com outros meninos. Al-Khadir segurou a cabeça do menino pelo alto e arrancou-a com as mãos (ou seja, matou-o). Moisés disse: "Você matou uma alma inocente que não matou ninguém!" AI-Khadir respondeu: "Eu não te disse que você não poderia permanecer paciente comigo?"


Então ambos prosseguiram até as pessoas de uma cidade e pediram comida, mas eles recusaram-se. Então eles encontraram lá uma parede no ponto de colapsar, cair sobre si mesma. Al-Khadir a consertou com suas próprias mãos. Moisés disse: "Se você desejasse, certamente você poderia ter sido pago por isso". Al-Khadir respondeu: "Este é o momento de nos separarmos".


O Profeta (Muhammad (que a paz esteja com ele) acrescentou: "Que Allah seja misericordioso para com Moisés! Oxalá ele pudesse ter sido mais paciente para aprender mais com Al-Khadir.


"Quanto ao navio, pertencia aos Masakin (gente pobre) que trabalhavam no mar. Então, eu danifiquei a embarcação porque havia um rei atrás deles, que apreende todos os navios à força. Quanto ao menino, seus pais eram crentes, e sabíamos [Alláh e al-Khadir] que ele os oprimiria com rebelião e descrença. Então pedi que meu Senhor mandasse para eles um outro filho, melhor em justiça e mais próximo da misericórdia. Quanto à parede, sob ela estava enterrado um tesouro pertencente a dois meninos órfãos na cidade, {como disse Suhaili} filhos de Asram e Sarim de Kashih. Seu pai era um homem justo, e seu Senhor pretendia que eles atingissem a idade de plena força e retirassem o tesouro como uma misericórdia de seu Senhor". Disse al-Khadir: "E eu não fiz o que fiz por minha própria vontade. Essa é a interpretação dessas coisas sobre as quais você não conseguiu aguardar". (Moses and AI-Khadir, Al Khaf 60-82, Stories of the Quran, reunidas por Ibn Katheer)


COMPARANDO AS ESTÓRIAS


Numa estória, o sábio itinerante é Elias, seguido pelo Rabi Joshua ben Levi. Na outra, é al-Khadir (o Verde, ou o Negro, segundo uma interpretação sobre palavras para identificar os Africanos), seguido por Moisés. O contexto de encontrar o sábio e segui-lo até questionar suas ações, recebendo depois uma explicação e um adeus, são idênticos.


Elias pede a morte de uma vaca para salvar uma mulher, depois arruma uma parede para ocultar o tesouro de um homem rico e mesquinho, depois ajuda pessoas segundo sua recepção nos povoados. Al-Khadir por outro lado afunda um barco para salvar seus tripulantes, mata um garoto por seus pecados futuros e conserta uma parede para esconder o tesouro pertencente a dois irmãos pobres. Os episódios mais ou menos se pareiam: as paredes com tesouro embaixo, a vaca/o garoto. Cronológica e geograficamente, também há grandes chances de um texto ser parente do outro, pois ambos correspondem à região entre o Jordão e a Babilônia, habitada tanto por Judeus quanto Ismaelitas no final do Império Romano.


Grande parte da lenda sobre al-Khadir ficou registrada no Alcorão, enquanto a lenda sobre Elias ficou somente na tradição oral (Talmude) dos Judeus. Os textos Judaicos foram organizados principalmente até nos sécs. 1-6, enquanto os Islâmicos são dos sécs. 7-9. 


A versão de Elias que nos chegou pela Bíblia só diz respeito a sua atuação enquanto "vivo", nos tempos do rei Acabe (sécs. 10-9 a.C.). Mesmo assim, Elias secou a chuva e até o orvalho sobre Israel, multiplicou os alimentos de uma viúva pobre em Sarepta, cidade vizinha do grande porto Fenício em Sidom, no Líbano, e ainda ressuscitou o filho dessa mesma mulher. Novamente, uma semelhança forte com as estórias que os Evangelhos guardaram sobre Jesus.. Na tradição Muçulmana, não há lendas sobre Elias, apenas um relato conciso do seu enfrentamento ao rei Acabe, no próprio Alcorão.


123 E também Elias foi um dos mensageiros. Vê que ele disse ao seu povo: ‘Não temeis a Deus? Invocais Baal e abandonais o melhor dos criadores, Deus, vosso Senhor e Senhor dos vossos antepassados?’ E o desmentiram. Porém, sem dúvida que comparecerão (para o castigo), salvo os servos sinceros de Deus. E o fizemos passar para a posteridade. Que a paz esteja com Elias! Em verdade, assim recompensamos os benfeitores. E ele foi um dos Nosso servos fiéis. (Alcorão, Sura 37 - Os enfileirados)


A versão de Moisés que nos chegou conta algo sobre suas andanças com Josué filho de Num (Números 11), mas esse último já adulto e no contexto da peregrinação final no deserto até Canaã. Nada de grandes aventuras em busca de sabedoria e as maravilhas do Senhor (existem algumas delas na narrativa do deserto).


Ambas as estruturas se encaixam em um modelo de literatura asceta que ficou muito popular no final da Era Romana. Asceta porque estimulava as pessoas a buscarem a oração em lugares isolados, como são os mosteiros e conventos Cristãos (apesar disso, a comunidade asceta mais antiga pode ter sido Qumram, nas margens do Mar Morto, no séc. 1 a.C.). Nos contos ascetas, geralmente, alguém que vivia dessa forma pura ou simples era informado de um outro ainda mais sábio que ele. Então o sábio asceta partia - geralmente através de um deserto - para encontrar o sábio maior, tanto a jornada quanto o encontro sendo recheados de ensinamentos. No caso, os sábios maiores são representados por Elias e al-Khadir.


É curiosa a substituição de Elias e Moisés. Elias é um personagem de muitas estórias Judaicas, mas não Moisés. Mesmo na tradição oral Muçulmana, Moisés só aparece em 4 estórias: os profetas, o Novilho (Sura 2), al-Khadir e Korah/Coré. Ele não aparece e desaparece como Elias, mas faz essa viagem por sabedoria (na tradição Muçulmana) até o encontro dos dois mares (possivelmente Suez ou Aqaba) procurando por al-Khadir. Alguns estudioso supõem que a troca seja resultado da confusão entre o Rabi Joshua ben Levi e o tradicional companheiro de Moisés, Joshua ben Num. Assim, J. ben Levi e Elias se tornariam J. ben Num, Moisés e al-Khadir. De fato, a narrativa Muçulmana começa com 3 personagens e termina com dois.


É também interessante como, apesar da narrativa sagrada mais rígida historicamente, os Judeus mantiveram estórias lendárias costurando outras narrativas sobre os profetas. O Alcorão não segue essa rigidez histórica, sendo mais precisamente uma mistura de estórias sobre o poder de Alláh, repletas de chamamentos "Lembra-te quando.." que remetem a outras estórias, também Judaicas e Cristãs.


CONCLUSÃO


Enfim, a conexão das duas estórias nos faz uma forte sugestão de origem comum. A narrativa sagrada, mais rígida, então parece descender de um conjunto de estórias mais volúveis e fluidas, de sábios lendários como Elias e Moisés.


Na prática, por outro lado, isso lança uma especulação talvez assustadora sobre a confecção dos textos religiosos: a de que tenham sido colhidos dentro de uma gama de estórias, para produzir uma narrativa coerente de geografia, tempo e contexto. Por exemplo, muitas estórias sobre Moisés, como tirar o veneno das águas (Êxodo 15.22), encontrar um veio de água (Êxodo 17.2, Números 20.2), a serpente de bronze (Números 21.4), a queda das andorinhas (Números 11), as flores nascendo no cajado (Números 17) têm semelhanças a Elias/al-Khadir. Isso para não falar de estórias sobre Jesus, em episódios como a produção de vinho em Caná da Galiléia (João 2), as migalhas que caem da mesa e são pegas pelos cãezinhos (Mateus 15), secar a figueira (Marcos 11, Mateus 21) ou narrativas pós-ressurreição (Lucas 24). Lembremos, os textos apócrifos (não incluídos no Cânon) sobre Jesus também são numerosos..


Como ferramentas de ensino moral, tais contos sempre foram valiosos. A própria estratégia de ensino/pregação de Jesus, com suas parábolas, deixa isso evidente. E talvez mesmo a realidade das religiões como ajustadores de regras morais se tornasse muito menos atraente sem essa característica de ensino das grandes figuras lendárias. Em sua famosa obra "As Crônicas de Nárnia", Clive Staples Lewis explorou lindamente essa ponte entre o Cristianismo e as tradições.


Tanto Judeus, quanto Cristãos e Muçulmanos trazem de alguma forma essas estórias, preservadas como um conhecimento secundário, mas onde pode-se perceber o quanto as tradições chegam perto umas das outras³.



--------------------


¹O texto original da Hamzanama de Akbar I está em grande parte perdido. Tratava-se de um volume artístico, grande o suficiente para ser segurado por um contador de estórias enquanto mostrava as páginas ilustradas para sua platéia e lia o texto no verso. Do que restou dessa obra, temos parte da estória sobre Elias e o príncipe: Nur ad-Dahr, que em outro lugar se chama Asthe filho do Príncipe Badi'uzzaman, costumava sentar-se na base de uma árvore onde os homens se reuniam diariamente para contemplar sua beleza. Entre esses admiradores estava uma garota infiel (não-muçulmana), filha de um certo Kayvan Buland-Rif’at. Um dia, um demônio (mais tarde identificado como Andarut) conta-lhe que na noite anterior ele havia sequestrado Nur ad-Dahr e jogado ele no mar. A menina, por sua vez, transmite esta notícia perturbadora para o inteligente Umar (uma espécie de herói persa), que está preocupado tanto com a segurança de Nur ad-Dahr quanto com a recalcitrância que isso causaria em Pahlavan Karb. Este príncipe declarara que, até que Nur ad-Dahr fosse localizado, ele renegaria sua promessa de enviar um emissário para Hamza (o herói dos contos Hamzanama). Pela primeira vez, no entanto, o engenhoso Umar não é chamado para resolver esta situação. Em vez disso, o texto narra de maneira prática que "Quando o demônio jogou o príncipe Nur ad-Dahr no mar, o profeta Santo Elias o tirou da água. Nur ad-Dahr descansava ferido em uma ilha."


²Desde a Antiguidade acredita-se numa passagem subterrânea entre os mares Vermelho e Mediterrâneo, que de fato chegam a pouco mais de 100 Km um do outro, numa região repleta de grandes lagos, chamados pelos Judeus de "lagos amargos".

³Uma Haggadah faz curiosa ponte com o Cristianismo. Lembrando, o Messias judeu é um ser escatológico, cujo aparecimento indicaria o Fim do Mundo.


"Este rabi [Joshua ben Levi] era um dos favoritos de Elias, que até lhe conseguiu uma entrevista com o Messias. O Rabi encontrou o Messias entre a multidão de pobres aflitos reunidos perto dos portões da cidade de Roma, e ele o saudou com as palavras: "A paz esteja contigo, meu mestre e guia!" Ao que o Messias respondeu: "A paz seja contigo, filho de Levi!"


O Rabi então perguntou-lhe quando Ele apareceria, e o Messias disse: "Hoje." Elias explicou ao Rabi mais tarde que o que o Messias queria dizer com "hoje" era que Ele, de sua parte, estava pronto para trazer a redenção de Israel a qualquer momento. Bastava estarem prontos". (Louis Ginzberg, Legends of the Jews)


--------------------


OBRAS NAS REBARBAS DO CREDO


Aggadah - wikipedia

ALGOOD, Marcus “Ishma’il”. Moses & the African Al-Khadir (The Green One), 9/13/2016.

Elias and Prince Nur ad-Dahr, British Museum of Art.

GINZBERG, Louis. Legends of the Jews,New York, 1909, v. 4, cap. 7.

GRAHAN, Ron. Miracles in the wilderness, 2012.

Hamzanama - wikipedia

IBN KATHEER, Stories of the Quran, reunidas por Imad ad-Deen Isma'il ibn Umar ibn Katheer al-Basri ad-Dimashq, 1300-1374.

The adventures of Hamza: painting and storytelling in Mughal India, Sackler Gallery, Smithsonian Institute, Washington, DC, 2002. Archive.org

WHEELER, Brannon M. The Jewish Origins of Qurʾān 18: 65-82? Reexamining Arent Jan Wensinck's Theory. Journal of the American Oriental Society, p. 153-171, 1998.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe um comentário!