domingo, 24 de julho de 2016

Obrigado, Jesus! (Porta dos Fundos deu a idéia)




Recentemente, esse vídeo foi muito criticado pelas comunidades religiosas. Respeitando tanto quem o fez como quem sentiu-se ofendido, eu gostaria de aplicar uma metodologia que vi no livro de Gabriel Jorge Castellá, para fazer uma análise dele.

1. Quem ofende? Aquele que emite o insulto ou quem o recebe? Não há ofensa até que aquele que recebe o impropério o avalie como tal. Por conseguinte, o insulto não ofende nem irrita. É uma pessoa quem se ofende ou se irrita diante da suposta ofensa.

Nesse caso, obviamente deveríamos nos perguntar porque os Cristãos sentiram-se ofendidos com o vídeo. Nele, Jesus (em tom de repreensão) diz que não teve participação em uma cura e, pior, foi responsável por uma morte vã, desnecessária. A ofensa vem pela noção, crença disseminada e ensino de que Jesus é o responsável por todas as curas e, às vezes, até cura a todos que pedem sua ajuda. Qual cristão nunca viu alguém ser repreendido por não alcançar a cura de seus males, o fim de seus problemas? Afinal, se os problemas persistem, é porque ele não clamou a Deus, não tem fé suficiente ou carrega algum pecado muito terrível. Jesus, assim, costuma ter a função de uma entidade que cura a todos ou, pelo menos, aqueles que merecem sua atenção. Os Cristãos sentiram-se ofendidos ao ver um suposto Jesus (e assim dotado de autoridade máxima sobre Sua natureza) dizendo que estão todos enganados. O Jesus de Porta dos Fundos quase diz explicitamente que não se importa com a pessoa sendo operada.

Jesus certamente fez muitas curas. Curou quando a lei dos Fariseus não permitia, curou até involuntariamente (quando a mulher com hemorragia o tocou - ver Marcos 5.30), à distância (quando um certo centurião de Cafarnaum pediu ajuda para seu servo - ver Lucas 7.2-10) e ainda deixou o poder de cura para seus servos (Atos 5.16-16). Mas ele não curou a todos (pois o aleijado em Bethesda devia ter muitos colegas), e não dá explicação alguma para isso. Jó nos mostra que mesmo os queridos de Deus adoecem gravemente, e o falecimento de Lázaro (amigo íntimo de Jesus) mostra que isso também se aplica aos queridos do Messias. Lucas (que era médico) nos aponta que sim, havia medicina antes de seguir a Jesus. E também havia a cura de não crentes, pois o famoso hipócrates (citado a té hoje nos juramentos médicos e como definidor dos princípios farmacêuticos) viveu no séc. 5 a.C., entre os gregos. Mesmo nos tempos de Jesus, Ele curou certa vez 10 leprosos dos quais apenas 1 se mostrou crente (Lucas 17.12-18). Os fármacos celtas (a exemplo folhas de salgueiro, de onde se originou o uso do ác. acetilsalicílico), árabes (como a mirra, levada em presente a Jesus) e chineses (a a exemplo o ópio, de onde até há pouco tempo se extraía a morfina) também datam de tempos muito anteriores ao Cristianismo.

Então, toda cura pode ser atribuída a Jesus? Provavelmente não, a menos que reformemos nosso entendimento religioso e pensemos num Deus distribuindo curas independentemente do credo, feitos, etc, basicamente segundo uma vontade que não nos é compreensível. Jesus curou a todos que se apresentaram a ele? Praticamente sim, mas não a todos. Curou não judeus, não crentes, etc, mas deixou que outros continuassem doentes (em Bethesda) e até queridos seus morressem de enfermidades. Como Deus, seu critério de cura também não nos parece compreensível. Por outro lado, o Jesus bíblico parecia se importar sempre com as pessoas, muito mais do que seus seguidores até, seja qual fosse o destino delas¹.

Voltando ao que pretendia dizer, o Jesus de Porta dos Fundos se torna ofensivo porque contradiz um Jesus aprendido / ensinado aos Cristãos. Mas esse Jesus aprendido / ensinado também não é exatamente o Jesus bíblico, e sim uma figura moldada para ser atraente a todos, em especial aos que precisam de ajuda por conta de uma enfermidade. Claro que o Jesus de Porta dos Fundos também está longe do Jesus bíblico ao desdenhar das pessoas, mas seria difícil esperar algo diferente de qualquer tipo de humor que não se pauta no Cristianismo.

2. O porque e o para quê do insulto. Toda pessoa que insulta age dessa maneira porque se sentiu ferida, maltratada, desprezada, desonrada ou ofendida por esse “vil”, “desprezível” ou “incompetente malfeitor” destinatário do insulto. 

Claro que o interesse do vídeo em questão parece ser muito mais o humor e a atenção da audiência do que uma resposta a alguma provocação. Mas o humor em questão se faz justamente porque muitas pessoas (e daí essa abordagem da religião) se sentem de fato ofendidas pelos comportamentos Cristãos. São essas as pessoas que se vêem representadas no vídeo. Em especial, sentem-se ofendidas intelectualmente: como se pode atribuir uma cura a Jesus quando o médico estudou, aprimorou-se para chegar a essa cura? Quando há toda uma infra-estrutura, profissionais e medicamentos que foram usados para chegar-se? Para não falar da história de vida da paciente, se mantinha-se saudável, se cultivava bons hábitos. No final, havendo a morte da paciente, é o médico/enfermeiro o culpado. O vídeo inverte toda essa situação atribuindo a cura ao médico, e a morte a Jesus.

Como a Bíblia não é muito clara em questões da saúde (apesar de Deus ensinar noções valiosas de higiene e sanidade aos Judeus, enquanto peregrinavam com Moisés pelo deserto), talvez seja útil tomar uma reflexão bíblica sobre a participação do homem em sua Prosperidade. Decerto curar-se de uma enfermidade pode ser incluído na noção de Prosperidade.

Se não for o Senhor o construtor da casa, será inútil trabalhar na construção. Se não é o Senhor que vigia a cidade, será inútil a sentinela montar guarda. Será inútil levantar cedo e dormir tarde, trabalhando arduamente por alimento. O Senhor concede o sono* àqueles a quem ama. (Salmos 127.1,2) [*em algumas traduções: durante o sono]

Como é feliz quem teme ao Senhor, quem anda em seus caminhos! Você comerá do fruto do seu trabalho, e será feliz e próspero. (Salmos 128.1,2)

Esses dois trechos foram escolhidos por tratarem-se de ensinos sapienciais dos palácios do tempo de Salomão. O 1º deles atribui claramente a Deus o sucesso dos empreendimentos e trabalhos humanos. O 2º deles coloca como recompensa de amar a Deus o simples fato de ter o fruto do seu trabalho. Aplicando isso ao vídeo, de fato não haveria cura se não fosse pelo trabalho do médico, medicamentos, etc. E ao mesmo tempo tais esforços seriam em vão sem a ajuda de Deus. Estritamente, Deus instituiu uma retribuição de 10% sobre os ganhos para aqueles que reconhecessem a sua providência. Não algo espiritual, mas 10% em espécie (ouro, animais, colheita, etc) para a provisão de Seus sacerdotes e templos. Assim, de certa forma, 90% dos ganhos de cada um eram retribuição de seu próprio suor, assim como se poderia pensar que 90% da cura (aqui interpretada como fruto do trabalho médico) seria retribuição dos esforços da equipe, infra-estrutura, cuidados da paciente com a própria saúde ao longo da vida, etc. Agradecimentos (e pagamentos) a tudo isso são usuais e praticados, mas seria interessante lembrar ao menos aos crentes dos 10% referentes à ajuda referida no Salmo 127. Como nada pode existir como apenas 90% de si… Exceto os mais ateus (talvez como o Jesus de Porta dos Fundos), ninguém se recusará a um agradecimento de 10%.

Por menos religiosos que sejam tais vídeos, sempre são uma boa expressão de crenças e visões sobre os Cristãos. Para agir com verdade e sabedoria, sempre vale a pena entender o que é dito e o porque dizem isso. Além de umas boas risadas, é claro.

Aquele que cobre uma ofensa promove amor, mas quem a lança em rosto separa bons amigos. (Provérbios 17.9)

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¹ Claro que Jesus (o verdadeiro) não matou ninguém e, ao contrário, até trouxe alguns de volta à vida. Mas Ele também prometeu morte pior que a Dele a quem O seguisse (João 15.18-21), o que de fato inaugurou a Era dos Mártires. Dessa forma, em sua preocupação com as pessoas Ele parecia colocar a morte em 2º plano, como se fosse algo menos importante do que seguir a Ele.

TIRADO DO PROFUNDO DA MANGA

Castellá GJ, 20 formas sadias de responder ao insulto, ed. Paulus, 2006.

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