quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

O que você pensa de Deus?

Vou precisar de ajuda para ler as novas leis...
Alguém aqui fala grego ou sabe porque
tem um vulcão atrás de mim?

A seguir, um texto dramático destilado ou fermentado a partir da obra do Alex Carrari, que tentamos adaptar para ser samba-enredo. Não tivemos nenhum êxito nisso, mas ele é muito bom para chacoalhar as idéias.

Peço as mais sinceras desculpas aos amigos humanistas, os quais tenho na mais alta estima, que entendem ser o homem o protagonista da Bíblia. Permitam-me discordar e afirmar o contrário: Deus é o grande protagonista apresentado no sacro texto. A Bíblia é a biografia de Deus. Peço as mesmas sinceras desculpas aos amigos protestantes crentes ou somente protestantes, que igualmente estimo - que podem pensar que, embora tardiamente, estou me redimindo dos últimos escritos doutrinariamente escorregadios - pois quero fazer outras duas afirmações: (1) há um manifesto conflito na natureza divina; e (2) o que consta no Novo Testamento é o registro da revisão da identidade de Deus.

A questão da imutabilidade de Deus choca-se com o fato inegável constatado no Antigo Testamento de que há em sua personalidade traços contraditórios, ao mesmo tempo em que se afirma que ele é o mesmo sempre e que sua natureza é invariável. O monoteísmo cristão tenta suprimir a [incômoda] tensão na divindade do monoteísmo judeu negando que sejam traços contraditórios ou uma mudança frequente do temperamento de Deus. Fala-se, assim, de registros originados em diferentes fontes antigas. Foi uma "saída estratégica" para suavizar esse conflito e não desconsiderar o Antigo Testamento, explicando-o através da pena de vários autores que teriam carregado o texto com suas visões pessoais. Claro que isso parece um politeísmo construído sob muitas mentalidades, mas não há quem tenha argumentos para refutá-lo.

O conflito na natureza divina, para ser observado como tal, não deve ser analisado ou descrito. Antes, deve ser considerado como demonstrado pela própria narrativa, em que a personalidade de Deus aparece em progresso ao longo da convivência com os hebreus da forma mais estreita ... e com o resto do mundo, de forma mais ampla.

Uma personalidade ainda mais complexa do que a do Deus Único do Antigo Testamento aparece em Jesus. Deus agora não se insinua mais através de vapores, raios e imponentes eventos. Ele está encarnado em forma humana para reivindica lentamente neste campal provisório todas as funções que eram de intermediários humanos. Ele é, de uma nova maneira, Adão, Moisés, Davi, Elias, Jonas. A imagem de Deus também é o primogênito de uma nova criação, o cumpridor de toda a Lei e divulgador da nova Torá. Ele inaugura um novo Reino, que não é desse mundo, nem de visível aparência. É O operador de milagres que antevê toda história até sua consumação. Jesus é O único que sobe plenamente vivo e consciente da morada dos mortos, depois de três dias morto.

A palavra de Deus proferida por outros, agora se fez carne e armou tenda entre nós.

Como se não bastasse o conflito na natureza de Deus, Jesus os tem e faz questão de os agravar quando fala hora como Deus, hora como homem. Ele fala de duas naturezas em um mesmo ser, mas cada uma com sua função. A "crítica histórica" tenta enfraquecer essa crise vendo Jesus maquiado na voz de diferentes autores, para ter retorno de diferentes ouvintes.

Ao ser reconhecido como o protagonista dos Evangelhos, o Deus encarnado traz consigo as lembranças da vida anterior de Deus, sua relação com o povo de Israel, tudo o que o povo lhe fez e tudo o que Ele fez ao povo. O Deus que esteve aqui antes por meio da Shekinah¹, mas que silenciara por cerca de quatrocentos anos parecendo ter se retirado do mundo; agora Ele está de volta como Filho e cada esperança da memória e tradição dos judeus é transferida para Jesus, que elimina algumas e incendeia outras.

Barnabé escrevendo aos Hebreus² declara que tendo Deus antigamente falado por intermédio dos profetas, em seu tempo tomou Jesus como timbre definitivo da Sua voz. Jesus é a palavra de Deus em pessoa. Se Jesus é a palavra de Deus, o contrário também é verdade: as palavras anteriores de Deus  também são palavras de Jesus. A afirmação do evangelista nos diz que tudo o que Jesus faz, ensina e sofre, é feito, ensinado e sofrido por Deus. Se não adotarmos a saída fácil da "crítica histórica" e tivermos as palavras de Jesus como as mesmas palavras do Deus do AT, seremos levados a crer numa irônica revisão da identidade divina. Jesus é, na forma mais improvável, o resultado dessa revisão.

Mas por que Deus agiu assim? Por que ele se fez homem? Mais ainda: por que, ao se tornar homem, Ele escolhe ser o tipo mais desprezível? Por que afinal de contas um leão resolve se comportar como um cordeiro?

Um Deus que aniquilou sem esforço o maior exército-império do mundo antigo, agora se tornara carpinteiro de vida comum que acaba seus dias com pouco mais de trinta anos, tido por maldito, trocado por um bandido e agonizando até a morte entre outros dois numa cruz. Porque?

O papel sacrificial que Jesus assume deixa seus discípulos perturbados. Pedro até tenta aliviar o pessimismo do mestre em relação ao prognóstico que Ele faz sobre si mesmo, mas é repreendido como um Satanás. De início, Nietzsche teria concordado com Pedro e considerado a encarnação como sendo o grande azar que se abateu sobre o Senhor dos Exércitos. Mas, ao refletir, Nietzsche capta melhor do que nós, apolíneos devotos, o significado da cruz: loucura.

Deus ainda tem algo inconcebível a dizer sobre si, que só pode ser dito humilhando-se a si próprio. Para não destruir a esperança, o Senhor de Toda a Terra arranjou um meio para ser ele próprio sentenciado à morte como Rei dos Judeus. Ele substituía uma esperança vã – sair debaixo do julgo de Roma – por outra possível. Aquilo que o Senhor dos Exércitos não pode conquistar através do poder das armas, Jesus substitui por um tipo de vitória que o poder militar não pode dar.

A dupla natureza una em Cristo – não duas naturezas de Cristo – tornou possível a Deus valer-se de sua morte para mostrar a pedagogia da formação de sua identidade, que não poderia ser demonstrada a menos que ele fosse humano. Se, como Deus, ele não pode cessar sua existência, como homem Ele pode provar a morte. Ele torna dramática essa mensagem, que por ser acintosamente violenta, não há como ser comunicada em palavras. Derrotado por Roma e sentindo novamente a opressão que havia experimentado com o cativeiro babilônico, Deus de maneira surpreendente transforma a derrota em triunfo. No rebaixamento a que se submete, Ele ergue-se em exaltação no lenho. Nesse gesto, Ele se deixar derrotar de uma maneira para triunfar de outra, que afronta a mais pudorada imagem que dele façamos. O Deus de Israel, o Senhor de Toda Terra, foi confrontado na forma mais terrível e intensa possível, morrendo nas mãos do inimigo do povo eleito, ao invés de libertá-lo e salvar-se.

Como Leão da tribo de Judá Deus ruge e não pode ser ameaçado nem ser morto. Como Cordeiro, Deus emudece, é levado ao matadouro, esmagado e morto. No Novo Testamento, a biografia de Deus em suas últimas páginas é revisada de forma extraordinária; ele desce às partes baixas da terra, torna-se um ser humano. Como Deus não sabe o que é a morte, faltando-lhe algo para que possa ser completo. Como Jesus, Ele prova a morte e emerge como o primogênito dos mortos. Encorpa Sua biografia, chamando os homens para se erguerem da morte junto com Ele. Assim, Ele une os reinos do céu e da terra, completando-se.

Transformando-se não em qualquer homem, mas neste homem, Jesus de Nazaré, o Deus do AT provoca uma reversão aterrorizante em sua natureza. Ele dá retoques finais em sua identidade, revisando-a completamente desde o início.

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¹ Palavra hebraica, não existente no português, que significa a presença física de Deus em um lugar. "Então a nuvem cobriu a tenda da congregação, e a glória do SENHOR encheu o tabernáculo; de maneira que Moisés não podia entrar na tenda da congregação, porquanto a nuvem permanecia sobre ela, e a glória do SENHOR enchia o tabernáculo." (Êxodo 40:34-35)

² Ninguém sabe quem é o autor da Epístola aos Hebreus, esse é um mistério dos primórdios do Cristianismo. O Alex brincou dizendo que foi Barnabé, mas ele de fato é um dos grandes candidatos. Barnabé de Chipre era um levita bem instruído e fazia parte do primeiro grupo de cristãos, sendo o braço direito de Paulo e João Marcos (mais conhecido como Marcos) na evangelização dos gentios.

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