sábado, 8 de junho de 2019

O Cristianismo da Pobreza - 3ª parte (1950 até hoje)

Da esquerda para a direita: Walter Rauschenbusch, pastor da Igreja Batista e idealizador do Evangelho Social; Gustavo Gutierrez Merino, padre e teólogo do Peru, um dos idealizadores da Teologia da Libertação; Leonardo Boff (na verdade Genézio Darci Boff), teólogo brasileiro e um dos grandes veiculadores da Teologia da Libertação; o Jesus moreno e sorridente que sempre foi ícone das obras dos irmãos López Vigil, na Nicarágua.

Esse texto é o final de uma trilogia sobre os pobres Cristãos desde os dias de Jesus até hoje. As demais partes podem ser lidas nos links abaixo:


Os movimentos socialistas no séc. 19 não deixaram de penetrar na Igreja. De um lado, a Igreja Católica se opôs ao Socialismo, vendo a pobreza como um desígnio de Deus. Os pobres se aliavam à Igreja na medida em que ela reunia doações dos ricos para educação e saúde; os ricos eram abençoados por esmolas e doações. Do outro lado, Luteranos, Anglicanos e Metodistas aderiram a ações clamadas inicialmente pelos socialistas: as missões luteranas foram as primeiras a implantar serviços estatais na América do Norte, África Ocidental e Índia. Os Ortodoxos, expandindo-se para o Ocidente, também se associaram aos movimentos sociais.

O Socialismo organizou-se politicamente na 2ª metade do séc. 19 com o filósofo alemão Karl Marx (1818-1883). Marx analisou a manutenção da desigualdade social e pregava como única forma de transformação que os pobres se organizassem, conquistassem à força o poder político. Ele também convivia com uma Igreja Católica conivente com a exploração trabalhista, de forma que definiu a religião como “ópio do povo”. Em seu livro “Crítica da Filosofia de Direita de Hegel” (1843), ele assinalou que a religião acalmava as tensões sociais e distraía os pobres de lutarem por seus direitos. Consequentemente, movimentos como as revoluções Russa (1905), Chinesa (1911) e Guevarista, na América Latina (anos 1950-1970), que se inspiraram no trabalho de Marx, quase sempre tentaram instituir o Ateísmo. Isso apenas fortaleceu a oposição Católica ao Socialismo.

LEÃO XIII E O SOCIALISMO

Apesar da oposição socialista ao Cristianismo e vice-versa, já no final do séc. 19, representantes do Catolicismo e do Protestantismo se filiaram a movimentos sociais. Em 1891, o papa Leão XIII publicou sua encíclica Rerum Novarum (mudança política), sobre o Capital e o Trabalho. 

Os elementos do conflito agora são inconfundíveis, na vasta expansão das atividades industriais e das maravilhosas descobertas da ciência; nas relações alteradas entre mestres e operários; nas enormes fortunas de alguns poucos indivíduos e na total pobreza das massas; o aumento da autoconfiança e a combinação mais próxima das classes trabalhadoras (1) … Acrescente-se a isso que a contratação de mão-de-obra e a conduta comercial estão concentradas nas mãos de poucos, de modo que um pequeno número de homens muito ricos colocou sobre as massas abundantes de trabalhadores pobres um jugo pouco melhor do que a escravidão (3) … Que exercer pressão sobre o indigente e o indigente em prol do ganho, e obter o lucro da necessidade do outro, é condenado por todas as leis, humanas e divinas. Defraudar qualquer salário devido é um grande crime que clama à ira vingadora do céu. "Eis que o salário dos trabalhadores, que por fraude foi contido por vós, clama; e o clamor deles entrou nos ouvidos do Senhor dos exércitos." Por fim, os ricos devem abster-se religiosamente de reduzir os ganhos dos operários, seja pela força, por fraude ou por negócios usurários; e com toda a razão maior, porque o trabalhador é, via de regra, fraco e desprotegido, e porque seus meios fracos devem ser considerados sagrados em proporção a sua escassez (20).

A carta de Leão XIII às igrejas era uma clara reação aos movimentos socialistas na Europa, considerados “agitadores”. Mas ela também trazia para a Igreja persuadir os ricos a agir com ética e evitar a desigualdade social.

SOCIALISMO CRISTÃO

Nos EUA, começaram a aparecer figuras Protestantes pregadoras de um “Socialismo Cristão”, que enxergava nas ceias comunais da Igreja Primitiva um modelo alternativo para o Socialismo. Um desses foi o Francis Julius Bellamy (1855-1931), que chegou a ser vice-presidente. Bellamy é conhecido por redigir a Declaração de Aliança, um recital patriótico de aliança dos homens como iguais sob a bandeira dos EUA. Embora ele tenha falado bravamente contra o racismo após a libertação dos escravos e a Guerra Civil estadounidense, defendia a segregação dos imigrantes, chamados de “pessoas menores" que rebaixariam os padrões nacionais. Em 1891, Bellamy foi demitido da Igreja Batista por pregar contra os males do capitalismo e descrever Jesus como socialista. Outra dessa figuras foi Norman Thomas (1884-1968), um pastor Presbiteriano que atuou contra a participação dos EUA na 1ª Guerra. Quando a Igreja deslocou seus recursos da ajuda as populações carentes para o militarismo, Thomas filiou-se ao Partido Socialista.

RAUSCHENBUSCH E O EVANGELHO SOCIAL

Não tardou para que os protestantes estadounidenses, sobretudo Batistas, que foram formados através de massas ex-escravas da Guerra Civil, forjassem um “Evangelho Social”. Tal filosofia não pretendia inserções políticas, mas que nomeava as igrejas para cuidar dos desfavorecidos. O pastor Washington Gladden (1836–1918) deu forma à idéia em seu livro O Jeito Cristão (1877), onde defendia a inserção dos Cristãos em todas as atividades humanas, de forma a melhorá-las segundo a vontade de Deus.

“Aqueles cristãos cuja principal preocupação é a sua própria condição espiritual, são um tipo muito pobre de cristãos. Uma santidade autoconsciente é uma contradição em termos. É através de um serviço de auto-esquecimento que a cultura mais elevada é obtida; através do seguimento fiel dAquele que não veio para ministrar a Si mesmo, e não para ser ministrado, mas para ministrar aos outros; que se tornou Rei dos reis e Senhor dos senhores por sua total auto-rendição; e cujo maior elogio é foi zombado por seus assassinos". (cap. Christians quiet life)

Um paladino desse movimento foi o reverendo Walter Rauschenbusch, da Igreja Batista, que reuniu seus estudos sobre o Socialismo Alemão ao trabalho que realizava em Hell's Kitchen/NY, um bairro extremamente pobre e abundante de criminalidade. Rauschenbusch falava em 2 conversões, uma a Cristo como divindade, outra a Cristo como motor de ajuda às populações pobres. Seu livro “Teologia para um Evangelho Social” (1917) foi um marco para ações da Igreja.

Rauschenbusch afirmava que o Evangelho individualista tornou clara a pecaminosidade do indivíduo, mas não mostrou a pecaminosidade institucionalizada. Segundo ele, e também o que mais tarde seria a versão Católica da Teologia da Libertação, o Reino de Deus é a exata proposta teológica do Evangelho Social. Essa pregação de Jesus foi gradualmente substituída pelo culto à figura de Cristo. Isso foi feito a princípio pela igreja primitiva a partir do que parecia ser uma necessidade, mas Rauschenbusch chamava os Cristãos a retornar à doutrina do "Reino de Deus".

“Mas, de fato, ao longo da história, a política da maioria dos Estados foi moldada para tornar fácil e perpétua a condição pecaminosa. Homens que estiveram sob os ensinamentos do cristianismo durante toda a vida nem sequer percebem que o parasitismo [dos ricos sobre os pobres] é pecado, tão profundamente nosso insight sobre o pecado foi obscurecido pela falta de um ideal religioso da vida social”. (cap. A natureza do pecado)

“Não podemos tolerar que pessoas pobres e trabalhadoras sejam privadas de condição física, juventude, educação, igualdade e justiça, a fim de permitir que outros vivam vidas luxuosas. Nos revolta ver essas condições perpetuadas pela lei e pela força organizadas, ou justificadas pelos formadores da opinião pública. Nenhuma das chaves oferecidas pelo cristianismo individualista pode mudar isso”. (cap. A concepção de Deus)

“A Ceia do Senhor estava conectada com a realização dos ideais sociais e esperanças da Igreja. A prevalência da profecia no cristianismo primitivo aponta na mesma direção. Ele agia como uma interpretação da Ceia do Senhor. A perspectiva do retorno do Senhor tornou-se fraca com o passar do tempo. O ato eucarístico desligou-se da refeição fraterna, e isso diminuiu muito seu valor social. A refeição ainda era realizada ocasionalmente à noite, mas se transformou em uma apresentação de caridade onde os ricos alimentavam os pobres e, finalmente, tais eventos cessaram de acontecer. O ato eucarístico estava agora ligado ao culto da igreja no domingo de manhã”. (cap. Batismo e a Ceia do Senhor)

YMCA

Nos EUA e na Europa, o Evangelho Social gerou abrigos e escolas para órfãos, imigrantes e pobres, principalmente na região de Chicago/EUA. Esses abrigos recebiam imigrantes e proviam alimentação e educação para as crianças, assim como cursos de inglês e profissionalizantes para os adultos, sobretudo italianos. Mais tarde eles se expandiram para playgrounds, piscinas, campos, teatros e ginásios públicos. Outro fruto foi o grupo, hoje internacional, denominado YMCA* (YMCA = Young Men's Christian Association), que surgiu na Inglaterra com o objetivo de levar desenvolvimento físico, espiritual e mental aos povos. O grupo inicialmente pretendia ajudar imigrantes do campo a se estabelecer nas cidades, mas suas estruturas de escolas, institutos profissionalizantes e centros esportivos acabaram se convertendo em pólos sociais nas cidades do Canadá e Europa. Em todas as unidades do YMCA, sempre foi dada importância à pregação Cristã e estudos religiosos. Na América Latina, o YMCA teve contribuições importantes no desenvolvimento do Panamá e Peru.

CONCÍLIO DO VATICANO

A vertente Católica não se interessou prontamente pelo Evangelho Social que, apesar disso, lembrava muito as obras sociais Católicas. A idéia de argumentar pela “igualdade das pessoas” parecia revolucionária demais para a Igreja! No entanto, em 1961 o papa João XXIII (1881-1963) convocou todos os cardeais para uma longa revisão das atuações da Igreja. Na sua encíclica Pacem in Terris (paz na terra), ele deixou exposto, quando morreu, as novas diretrizes definidas para os Católicos.

44. Ao invés, universalmente prevalece hoje a opinião de que todos os seres humanos são iguais entre si por dignidade de natureza. As discriminações raciais não encontram nenhuma justificação, pelo menos no plano doutrinal. E isto é de um alcance e importância imensos para a estruturação do convívio humano segundo os princípios que acima recordamos. Pois, quando numa pessoa surge a consciência dos próprios direitos, nela nascerá forçosamente a consciência do dever: no titular de direitos, o dever de reclamar esses direitos, como expressão de sua dignidade, nos demais, o dever de reconhecer e respeitar tais direitos.

56. Acresce que por sua mesma natureza, todos os membros da sociedade devem participar deste bem comum, embora em grau diverso, segundo as funções que cada cidadão desempenha, seus méritos e condições. Devem, pois, os poderes públicos promover o bem comum em vantagem de todos, sem preferência de pessoas ou grupos, como assevera nosso predecessor, de imortal memória, Leão XIII: "De modo nenhum se deve usar para vantagem de um ou de poucos a autoridade civil constituída para o bem comum de todos". Acontece, no entanto, que, por razões de justiça e eqüidade, devem os poderes públicos ter especial consideração para com membros mais fracos da comunidade, pois se encontram em posição de inferioridade para reivindicar os próprios direitos e prover a seus legítimos interesses.

89. Realmente não pode um homem ser superior a outro por natureza, visto que todos gozam de igual dignidade natural.

João XXIII assumia como direitos inalienáveis várias coisas às quais a pobreza priva o homem, como educação, saúde, alimentação, participação no Estado, etc, atribuindo ao Estado o direito de vigiar por essas igualdades entre os homens, uma vez que o Estado foi instituído por Deus. Dessa forma, ele criou um movimento anti-concentração de renda e anti-poderio abusivo de uns sobre os outros que inspirou a Teologia de Libertação. João XXIII, entretanto, não expôs mecanismos pelos quais as desigualdades já existentes seriam corrigidas, ainda mais sem movimentos de rebeldia.

À medida que os esforços da Igreja Protestante pelos pobres perdiam força e começavam a ser substituídos por uma reação Católica, o pastor Batista Martin Luther King Jr (1929-1968) assumiu essa frente de batalha quase isoladamente. Naturalmente um ativista pelos direitos dos negros, após a emenda constitucional de 1964 (que criava a igualdade racial na Constituição) ele se dedicou a movimentos pelos direitos das populações pobres. Infelizmente, a articulação política de King e seu isolamento como ativista religioso facilitaram seu assassinato em 1968.

TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO

Provavelmente influenciados pelo marxismo Guevarista e fortalecidos pelo Concílio do Vaticano sob João XXIII, diversos religiosos latinos se envolveram em ativismos sociais e luta contra a desigualdade de renda. Sua corrente de discurso acabou chamada Teologia da Libertação. Veja-se que seu levante ocorreu justamente quando, após uma avalanche de contato com o Socialismo através do herói Che Guevara, os países latino-americanos em geral recuaram para dentro de regimes militares. Dessa forma, os intelectuais Católicos agindo por igualdade entre as pessoas assumiram, aqui e ali, a figura de inimigos do governo. Vários tiveram de se esconder ou foram assassinados. Alguns nomes desse grupo foram Gustavo Gutiérrez e Samuel Escobar (Peru), Leonardo Boff (Brasil), Juan Luis Segundo (Uruguay), Jon Sobrino (Espanha), René Padilla (Equador) e Orlando Enrique Costas (Porto Rico). Os grandes pensadores foram Sobrino e Boff que, em pouco tempo, haviam formado uma legião de missionários para advogar pelos pobres no Brasil, África Ocidental, Índia, China e Polinésia.

Seu trabalho nos países onde passaram foi criar o ativismo político dentro da Igreja Católica, de forma que a mesma usasse sua influência nos governos em prol dos desfavorecidos. Além disso, tentaram trazer para os cuidados da Igreja, como no passado, as populações carentes. Dessa vez, no entanto, o movimento tinha claramente fins ideológicos e políticos, para criar na população uma consciência dos pecados associados com a desigualdade social. Pecado dos quais todos, de alguma forma, tomavam parte sem perceber.

JESUS CRISTO LIBERTADOR

No Brasil, uma obra poderosa dentro do círculo erudito da Igreja, feita para arrebanhar padres e bispos, foi o livro “Jesus Cristo Libertador” (1972), de Leonardo Boff.

“Basta vermos as imagens de Cristo nas grandes igrejas a partir do séc. 3. O Jesus de Nazaré, fraco no poder mas forte no amor, que renunciou à espada e à violência condenando-as, foi recalcado pelo Cristo político constituído pela Ressurreição em Senhor do Mundo. Seus representantes papas e bispos governam em seu nome e usam da força para destruir os ‘inimigos de Deus’. Esqueceu-se rapidamente nos escalões da igreja a violenta crítica movida por Jesus contra a forma [violenta] de exercício do poder no mundo antigo. (Mateus 20:25-28, Lucas 22:25-27, Marcos 10:42-45).”

“Cristo não começou pregando a si mesmo, mas o Reino de Deus. Que significa esse Reino de Deus que constitui indiscutivelmente o centro de Sua mensagem? Para os ouvintes de Jesus significava bem outra coisa que para os ouvidos de fiel moderno, para quem o Reino de Deus é a outra vida, o céu, o pós-morte. Reino de Deus - que ocorre 122 vezes nos evangelhos e 90 na boca de Jesus - significava para os ouvintes de Jesus a realização de uma esperança, no final do mundo, de superação de todas as alienações humanas, da destruição de todo o mal, seja físico, seja moral, do pecado, do ódio, da divisão, da dor e da morte.”

“O Êxodo refere que de 7 em 7 anos devia-se festejar o ano sabático (Êxodo 23:10-12, 21:2-6). Nesse ano todos deveriam sentir-se filhos de Deus e por isso todos se deveriam considerar como irmãos. Os escravos seriam libertados. As dívidas seriam perdoadas e as terras uniformemente distribuídas. Nenhum patrão deveria esquecer que cada homem é um ser livre para Deus (Deuteronômio 15:12-15). O Levítico (25:8-16) revela essa idéia social prescrevendo que de 50 em 50 anos se celebre o ano jubileu. Será um ano de graça do Senhor. Todos serão livres. Cada um voltará para sua terra que será restituída e para sua família. Esse ideal social, porém, jamais foi cumprido. O egoísmo e os interesses feitos sempre foram mais fortes. Por isso tornou-se aos poucos uma promessa para os tempos messiânicos (Isaías 61:1).”

Tal obra se constitui em um profundo estudo das bases teológicas modernas da Igreja Católica e foi muito influente entre o clero Católico latino, servindo de base para a atual política da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, por exemplo.

UM TAL JESUS

No campo popular, bem no começo dos anos 1980 surgiu a obra radiofônica “Um tal Jesus”, dos irmãos María e José Ignacio López Vigil, da Nicarágua. A obra, narrada aos capítulos, usa de muita pesquisa histórica e irreverência para refazer o cenário bíblico com um Jesus extremamente humano, tomado por dúvidas, mas apaixonado pela justiça. Ele inspira aos poucos um movimento de homens e mulheres livres, comprometidos com a construção do Reino de Deus. Desde o início, as autoridades religiosas condenaram o livro por sua “fuga da Bíblia” e o proibiram, com ameaças e até mesmo excomunhões. Entretanto o livro é legítimo representante do apelo popular que a Teologia da Libertação pretende, a obra sendo reproduzida largamente e logo se tornando um “livro proscrito”, compartilhado entre os fiéis. Sem dúvida, devido à poderosa mensagem de “apaixonar-se pelo que Jesus faz” que o livro passa.

“Foi na sinagoga de Nazaré onde Jesus anunciou pela primeira vez a mensagem de libertação a seus conterrâneos. Naquela ocasião Jesus descreveu os sinais que caracterizam essa libertação. Agora, depois de um tempo de atividade na Galiléia manda que digam a João que o anunciado começa a se cumprir. Até aquele momento, a atividade de Jesus havia sido o que hoje chamaríamos uma tarefa de “conscientização”. Com sinais e com palavras, Jesus havia despertado entre os pobres de Cafarnaum e das aldeias, a esperança de sua libertação e a consciência de sua dignidade. O Reino de Deus começa precisamente quando no coração do Homem se abre caminho para certeza de que todos somos iguais, de que as diferenças entre os seres humanos são contrárias à vontade de Deus, e a partir desta convicção, o homem acha forças para lutar por um mundo justo e livre. Antes de passar a qualquer ação libertadora, o cristão tem de tomar consciência desta mensagem, essencial ao evangelho. Não há ação libertadora sem uma prévia conscientização libertadora.” (cap. 45, Uma pergunta chegou da cadeia)

“O texto profético de Isaías no qual Jesus baseou sua missão (Is 61, 1-2) falava de cegos, de surdos, de mortos... Uma interpretação que reduz os sinais do Reino Messiânico a simples e isoladas curas com as quais Jesus demonstrava quanto poder tinha, falseia o evangelho. Cegos eram os que não viam, os que Jesus – com sua capacidade de fazer com que o homem se supere – fez com que voltassem a ver. Mas cego é, também, o pobre que, mergulhado na injustiça e vítima dela, não vê como sair dessa situação e chega a se cegar, quando pensa que sempre foi assim, assim será sempre. Surdo é o que não escuta com seus ouvidos e mais ainda o pobre que não escuta as vozes que falam de libertação, porque sua dor o fez perder as esperanças de que tudo possa mudar. Surdo é o que acaba se tornando fatalista e passivo. Mortos estão os que nunca viveram uma vida humana e só suaram e choraram, oprimidos por outros homens que os trataram como animais. Quando estes cegos vêem, estes surdos são capazes de ouvir e estes mortos se levantam de suas tumbas de miséria, o Reino de Deus está chegando. Porque o evangelho é uma boa notícia de libertação. Uma libertação integral que irá mais além desse mundo, libertando-nos da própria morte, mas que começa já nesta terra.” (cap. 45, Uma pergunta chegou da cadeia)

“Assim como Jesus nos ensinou em sua vida e com suas palavras que não há oposição entre ação e oração, entre amor a Deus e amor ao irmão, não devemos criar nenhuma oposição entre o trabalho de evangelização e o de promoção humana, como se a promoção fosse uma tarefa horizontal, de menor categoria para o cristão por ser “política”, e a evangelização fosse superior, mais pura, por ser vertical e relacionar-nos diretamente com Deus. Esta oposição é falsa, pois entre evangelização e promoção humana há uma contínua inter-relação. Evangelizar o homem é anunciar-lhe a boa notícia de sua dignidade de filho de Deus e em nome desta mesma dignidade infinita o homem deve ser libertado da fome, da falta de cultura, da dependência econômica... Promover o homem é abri-lo a todas as realidades físicas, intelectuais, políticas... Também à realidade da fé, pois a dimensão religiosa é essencial ao ser humano. Não existe nenhuma contradição. Ambas as tarefas estão profundamente relacionadas.” (cap. 60, De dois em dois)

COMISSÃO DE LAUSANNE

O lado Protestante moveu-se bem menos que o Católico, no sentido de produzir mudanças sociais. Apesar disso, uma poderosa ação teve lugar em Lausanne/Suíça. Formou-se uma Comissão para a Evangelização Mundial, composta por delegados de 150 países e organizada pelos famosos pregadores Billy Graham e John Stott. O encontro fundador, em 1974, estabeleceu o comprometimento de Jesus com as populações pobres e a necessidade de intervenção da Igreja em casos de injustiça contra os homens. Além disso, a Comissão admitiu que as influências culturais locais sobre a Igreja no 3º Mundo não eram menos perturbadoras que as influências grega e romana na Europa, de forma que as culturas locais deveriam ser usadas como vias de Cristianização e não combatidas pela Igreja.

“Primeiro, o próprio Jesus se identificava constantemente com os pobres e os fracos. Aceitamos a obrigação de seguir suas pegadas nesse assunto, como em todos os demais. Pelo menos, através do amor que ora e dá, pretendemos fortalecer nossa solidariedade para com eles.”

“Porém, o que Jesus fez foi mais que uma obra de auto-identificação. Em seu ensinamento, bem como no dos apóstolos, o corolário das boas novas aos oprimidos foi uma palavra de juízo contra o opressor (p. ex. Lucas 6.24-26; Tiago 5.1-6). Confessamos que, em situações econômicas complexas não é fácil identificar os opressores, a fim de denunciá-los, sem cair numa retórica estridente que não leva a lugar algum. Não obstante, concordamos em que há ocasiões em que nosso dever de cristãos é falar, de alto e bom som, contra a injustiça, em nome do Senhor que é o Deus da justiça tanto quanto da justificação. Nele procuraremos a coragem e sabedoria para agirmos assim.”

“Este Conselho expressou sua preocupação sobre o sincretismo nas igrejas do Terceiro Mundo. Mas não nos esquecemos de que as igrejas ocidentais caem no mesmo pecado. De fato, a forma mais insidiosa de sincretismo no mundo de hoje talvez seja a tentação de mesclar um evangelho privatizado de perdão pessoal com uma atitude mundana (ou mesmo demoníaca) para com a riqueza e o poder. Não estamos nós mesmos isentos de culpa nesse assunto. Mas desejamos ser cristãos integrados, para os quais Jesus seja realmente Senhor de tudo. De maneira que nós, que pertencemos ao Ocidente, ou somos oriundos dele, precisamos examinar a nós mesmos e procurar nos libertar do sincretismo ao estilo ocidental.”

De qualquer forma, os anos 1980 do Brasil viram despontar a riqueza e o poder econômicos das igrejas Neo-pentecostais, dentro do setor Protestante. Até os anos 2000, mais e mais líderes Neo-pentecostais foram admitidos nos círculos de poder financeiro e político, a ponto de constituir um grupo específico dentro do Senado Federal. Obviamente, tal enriquecimento não se refletiu em qualquer melhora da situação social no país, de forma que a Igreja Protestante brasileira, está, até o momento, descompromissada com as questões sociais. Não é essa a realidade dos EUA, por exemplo.

FRANCISCO I

Em 2013, os conflitos políticos que levaram à abdicação do papa Bento XVI também deram voz, dentro da Igreja Católica, a uma ala esquerdista que, embora não seja filiada à Teologia da Libertação, advoga por causas semelhantes, como uma atenção maior da Igreja aos problemas políticos que produzem a injustiça social. Em sua 1ª Encíclica, o papa Francisco I escreveu:

“Assim como o mandamento “Não matarás” estabelece um claro limite para salvaguardar o valor da vida humana, hoje também temos que dizer “Não farás” a uma economia de exclusão e desigualdade. Essa economia mata. Como pode ser que não noticiem quando um idoso morre de exposição ao frio, mas seja notícia que o mercado de ações perdeu dois pontos? Este é um caso de exclusão. Podemos ficar parados quando a comida é jogada fora e pessoas estão morrendo de fome? Este é um caso de desigualdade. Hoje tudo vem sob as leis da competição e a sobrevivência do mais forte, onde os poderosos se alimentam dos impotentes. Como conseqüência, massas de pessoas se encontram excluídas e marginalizadas: sem trabalho, sem possibilidades, sem qualquer meio de fuga.

Os seres humanos são considerados bens de consumo para serem usados ​​e depois descartados. Criamos uma cultura de “jogar fora” que agora está se espalhando. Não se trata mais simplesmente de exploração e opressão, mas de algo novo. Em última análise, a exclusão tem a ver com o que significa ser parte da sociedade em que vivemos; os excluídos não são mais a parte inferior da sociedade ou os que vivem nas suas bordas - eles não fazem mais parte dela. Os excluídos não são os “explorados”, eles são as “sobras”.

Neste contexto, algumas pessoas continuam a defender teorias que se traduzem em que o crescimento econômico, encorajado por um livre mercado, terá sucesso inevitável em trazer maior justiça e inclusão no mundo. Esta opinião, que nunca foi confirmada pelos fatos, exprime uma crua e ingênua confiança na bondade daqueles que exercem o poder econômico, e no funcionamento sagrado do sistema econômico vigente. Enquanto isso, os excluídos ainda estão esperando. Para manter um estilo de vida que exclui os outros, ou para manter o entusiasmo por esse ideal egoísta, uma globalização da indiferença se desenvolveu. Quase sem ter consciência disso, acabamos sendo incapazes de sentir compaixão pelo clamor dos pobres, chorar pela dor de outras pessoas e sentir necessidade de ajudá-los, como se tudo isso fosse responsabilidade de outra pessoa e não nossa. A cultura da prosperidade nos amortece. Estamos muito satisfeitos se o mercado nos oferecer algo novo para comprar. Nesse meio tempo, todas essas vidas atrofiadas por falta de oportunidade parecem um mero espetáculo; eles não conseguem nos mover.”

CONCLUSÃO AFINAL

Tendo alcançado os dias atuais, não há muito mais o que dizer. Somos uma Igreja partida entre Católicos, Protestantes e Ortodoxos, cada qual com seus subgrupos. Ao longo desses 2019 anos, deixamos para trás um Jesus preocupado com o sofrimento de seu povo não tanto nas mãos dos romanos, mas do egoísmo de uns pelos outros. O Jesus que dizia aos ricos para abandonarem tudo foi seguido por fiéis coletores de ajudas para a comunidade, como Paulo e Estevão; organizadores de ritos dominicais para alimentar os famintos, como Justino; intelectuais pregando pela administração justa do dinheiro como Agostinho e João Crisóstomo. E mesmo assim tivemos uma igreja fazedora de fortunas e subserviente aos nobres em Bizâncio, que via com assombro os Waldenses e Franciscanos escolherem andar entre os pobres. Foi uma igreja que arrecadou dinheiro para fazer escolas, hospitais e orfanatos, mas que também gerou as Casas de Trabalho para explorar aqueles que se sacrificam por comida. Foi uma igreja que se aliou ao poder do Nazi-fascismo, mas que também o desafiou com o custo da vida. Que pregou o Socialismo Cristão nos palanques, que desenhou um Evangelho Social para que os Cristãos ajudassem seus necessitados.

Na 2ª metade do séc. 20, enquanto os Católicos promoveram um Concílio, a Teologia da Libertação e estruturas administrativas como a Congregação Nacional dos Bispos do Brasil, hoje protegida por Francisco I, os Protestantes não avançaram além da antiga YMCA com seus dormitórios coletivos e a Comissão de Lausanne, que pouco fez além de reconhecer o tamanho do problema que tinha nas mãos. Enquanto isso, o segmento Neopentecostal fez sua opção pelo poder político, ajudando mesmo no erguimento de estruturas opressoras de poder. Ao ver isso, acabamos pensando: “Porque só uma parte dos Cristãos se importa com fazer o que Jesus fazia? Porque perderam tanto da coragem de fazer coisas simples como Ele e Paulo faziam pelo próximo?” É como se fôssemos uma sombra distante, enfraquecida por tantos anos à deriva no tempo. Na verdade, mal nos lembramos de Jesus e engolimos os mesmos deuses cruéis de metal que os mais vis dos homens disputam entre si.

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*Hoje, é quase impossível desvincular o nome YMCA da música do grupo Village People (1978). A música fala debochadamente sobre a estadia em um grande hotel, frequentado por pessoas de todos os tipos e lugares. De fato, essa foi uma forma bastante comum, nos EUA dos anos 1950-1980, de apresentação do YMCA. Tratavam-se de pensões muito baratas, construídas originalmente para servirem de moradia para aqueles que vinham do campo para a cidade. Nos anos 70-80, porém, as pensões passaram a ser ocupadas principalmente por pessoas que perderam suas casas por hipotecas. Até 2006, haviam muitas dessas instalações nos EUA.

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JÁ FOI O TEMPO DE LER

Gladden W, The Christian Way, Dodd, Mead & Company, NY, 1877.
Hull House - wikipedia
O EVANGELHO E A CULTURA, Relatório da reunião de Consulta realizada em Willowbank, Somerset Bridge, Bermudas, entre 06 e 13 de janeiro de 1978. Patrocinada pelo Grupo de Teologia e Educação de Lausanne. ABU Editora e Visão Mundial.
Rauschenbusch W, A Theology for a Social Gospel, The Maximillan Company, NY, 1917.
Social Gospel - wikipedia
Um tal Jesus - Radialistas.net
Walter Rauschenbusch, christianitytoday.com, Christian History
YMCA - wikipedia

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