domingo, 26 de março de 2017

Cristãos fora da casinha


Ilustração de Gustave Doré do canto 19 da Divina Comédia, retratando a região do inferno onde habitam os que vendem dons espirituais

Certas vezes nos deparamos com alguns eventos difíceis de digerir. Foi assim com o assassinato ocorrido na Nicarágua em 21 a 28 de fevereiro desse ano. Noticiado em diversas partes do mundo, a Sra. Vilma Trujillo García, 25 anos, mãe de duas crianças (o mais velho com 5 anos) foi queimada viva em um ritual de exorcismo, sendo depois atirada na encosta de um rio, de onde foi socorrida e levada a um hospital, morrendo 7 dias depois. Não seria chocante saber que isso aconteceu num período de guerras, quando a brutalidade humana aflora, mas espanta saber que ocorreu esse ano, promovido por um pastor evangélico e quatro seguidores. Espanta mais ainda saber que, ao invés de impedir tal ato, os membros da igreja local se voltaram contra os familiares da vítima, ameaçando-os de morte.

A Sra. Garcia estava desde 15 de fevereiro na casa pastoral, onde delirava por alguma enfermidade, identificada como possessão demoníaca por haver adulterado. No dia do ritual, o pastor da igreja havia se trancado na igreja com ela e mais 11 membros a orar por ela, quando uma fiel recebe a revelação de acender uma fogueira, para que o demônio saísse de seu corpo e se lançasse ao fogo. Nalguns depoimentos à polícia, o pastor teria dado ordens de queimar a mulher para expulsar o demônio, noutros ela havia se jogado sozinha na fogueira. Como ela estava amarrada e a família passou a sofrer perseguições, parece claro qual é a versão correta.

Sempre penso se, fora do círculo religioso, longe da influência coletiva e da situação ritual, as pessoas racionalizam sobre o que fazem. Embora seja comum pensarmos em delírio religioso, frenesi, revelações feitas em transe, Paulo continuamente nos adverte sobre um culto racional a Deus, que significa mais ao que pensamos e fazemos do que à situação do culto em si. Paulo, apesar disso, afirmava que seu conhecimento (validado pelos que estiveram lado a lado com Jesus) fora dado por revelação. Jesus, mais ainda, dificilmente pode ser associado a uma situação de transe e revelação mística, fora da racionalidade. Pelo contrário, quem dormia e se entregava a simplesmente seguir o coletivo eram seus discípulos, frequentemente repreendidos. Jesus simplesmente sabia e punha em prática.

Os episódios mais místicos da vida de Jesus provavelmente foram o aparecimento de Moisés e Elias num monte (não identificado), quando ele estava em companhia de Pedro, Tiago e João e as revelações da última ceia, à qual seguiu-se um discurso no olival de Getsêmani (Gat -Shmanê, em aramaico, significa “prensa de azeite”). O aparecimento de Moisés e Elias, apesar disso, não é relatado pelo próprio João, um Judeu extremamente ciente do valor que Moisés e Elias tinham para seu povo. A descrição da última ceia segundo Mateus, Marcos, Lucas e Paulo é a revelação de que o pão e o vinho simbolizariam Jesus até seu retorno; segundo João, é uma lavagem dos pés dos discípulos como sinal de humildade. O discurso no Getsêmani é, segundo os sinóticos, um desabafo sofrido de Jesus ao Pai; segundo João, é uma longa oração encomendando ao Pai seus seguidores. Em outras palavras, os momentos em que Jesus revela o mundo espiritual e suas ligações com os homens são bem menos místicos na fala daquele discípulo que não apenas participou deles, mas também era o preferido do Messias. Nessa visão do ensino de Jesus, da qual obviamente compartilho, Ele não apresenta enigmas ou conhecimentos secretos, mas ações simples que poderiam ser imitadas.

O demônio, segundo João, não se encarcera nas pessoas para sacudi-las, fazer que esbravejem ou que rosnem. O próprio Jesus é chamado de possuído, por estar desafiando a autoridade dos Fariseus... O demônio de João inspira as pessoas a realizarem ações egoístas, em favor próprio e contra seus semelhantes.

Por que a minha linguagem não é clara para vocês? Porque são incapazes de ouvir o que eu digo. Vocês pertencem ao pai de vocês, o diabo, e querem realizar o desejo dele. Ele foi homicida desde o princípio e não se apegou à verdade, pois não há verdade nele. Quando mente, fala a sua própria língua, pois é mentiroso e pai da mentira. No entanto, vocês não crêem em mim, porque lhes digo a verdade! (João 8.43-45)

Não vemos Jesus matando ou tentando se sobressair aos demais. De fato, isso iria bem contra a idéia de lavar os pés dos próprios seguidores. Tomando o caso da Sra. Garcia, vem, claro, a pergunta sobre como um seguidor de Jesus poderia ordenar que se queime alguém vivo, especialmente para expulsar o demônio. Ou que se ameace de morte uma família em ruínas. Escapando desse caso em particular, como Jesus poderia apoiar discriminações dentro de um grupo de fiéis? Como veria o favorecimento de uns (mais ricos ou influentes) em detrimento de outros (que não tem riquezas a oferecer)? Ou como veria grupos religiosos que centram seu tempo em práticas rituais e místicas ao invés de prover a mais simples ajuda material e social aos que carecem dela?

Jesus também não fez milagres dentro de templos. Sua realização sobrenatural mais “entre paredes” talvez tenha sido produzir vinho a partir de água em uma festa de casamento (também, apenas João registra isso). No templo e nas sinagogas que frequentou (pois sim, Ele era Judeu), Jesus se prestava a ensinar sobre as escrituras. Nada de purificação dos fiéis, êxtases de cheios de revelações estranhas ou mesmo curas impossíveis para seu tempo. As curas Ele fazia e era famoso por isso, mas fazia em qualquer lugar onde as pessoas estavam, ou mesmo à distância. Como disse Padre Beto, “o extraordinário, o milagroso, a presença de Deus se fazia de uma forma muito mais cotidiana do que a imaginação humana desejava”.

Por mais estranho que possa parecer, o “modelo John Wesley de culto”, com diversas demonstrações chamativas e estranhas de ação do Espírito Santo sairiam bem estranhas aos 1os discípulos se andassem pelo mundo de hoje. Essas demonstrações estão mais próximas de uma interpretação particularmente difundida da escritura de Paulo (1ª Coríntios 12.8-11), dirigida a um povo grego que tinha como base religiosa os oráculos e sacerdotisas/pitonisas. Esse modelo de culto ainda se apoia em chamar de divino tudo aquilo que a própria razão esconde, e encontra espelhos em tradições nativas da Ásia e das Américas, às vezes empregando o uso de álcool, alucinógenos, etc para atingir o êxtase necessário ao contato dos homens com o sagrado. Isso certamente contribuiu muito para sua disseminação... Apesar da alta popularidade dessa forma no culto Cristão pelo menos desde o séc. 4, não encontramos nada semelhante a isso nos relatos bíblicos sobre Jesus. 

Também não há nada condenando tal forma, que pode até ser a fonte do texto de Apocalipse. Mas podem haver resultados concretos e catastróficos dessa “suspensão da racionalidade” sobre as pessoas. Algumas vezes, fiéis são estimulados a distorcer muito o “amor ao próximo” pregado por Jesus, fazendo um "eu te amo forçando você a ser como eu". Noutras situações, os fiéis são levados obedecer cegamente revelações ou instruções questionáveis, tais como queimar viva uma mulher. Ou ainda, pessoas simples podem se reconhecer profetas de um Cristianismo totalmente novo, do que levam pouco mais que o nome.

Quem poderá dizer: "Purifiquei o coração; estou livre do meu pecado?" (Provérbios 20.9)

Que ainda sejamos capazes de agir na simplicidade de ajudar ao próximo naquilo que ele nos pede ajuda, sem esquecer que estamos aqui como "cartas de Deus aos homens", e não para governar ou fazê-los tomar o rumo desgovernado da nossa própria imaginação.

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NOTÍCIAS ALARMANTES

Pe Beto, O milagre está fora das igrejas, Caros Amigos, 22/mar/2017

Um comentário:

  1. A vida sem o doar-se aos que precisam não tem sentido,vazia se torna,pois o bem que nos faz ajudar e maravilhoso,e não venha me dizer que não tem nada para doar,pois todos nos temos algo para doar,nao precisa ser dinheiro,mas pode ser,o saber escutar,o estender a mao,o acarinhar,etc Sempre que puder ajude,e vc vera que o ceu pode ser aqui na terra também

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