sábado, 4 de fevereiro de 2017

A dúvida de Moisés

Christian Bale (2014) interpretou um Moisés recrutado quando Deus precisava de um general

Esse artigo foi construído sobre o modelo de Mark JJ, na bibliografia. Os recheios e confeitarias são obra minha.

Moisés é considerado um dos líderes religiosos mais importantes da história. Ele é reivindicado pelas religiões Judaísmo, Cristianismo, Islamismo e Bahai como um importante profeta e o fundador do monoteísmo. A história de Moisés é contada nos livros bíblicos de Êxodo, Levítico, Deuteronômio e Números, mas ele continua sendo referenciado em toda a Bíblia e é o profeta mais citado no Novo Testamento. No Alcorão, também é uma figura que alternadamente representa a natureza divina ou humana, sendo a pessoa mais citada: 115 vezes, enquanto Maomé é referido por nome apenas 4 vezes.

Moisés é mais conhecido pelo Êxodo e o Alcorão como o legislador que encontrou Deus cara a cara no monte Sinai para receber os 10 Mandamentos, depois de liderar os Hebreus desde a escravidão no Egito para a "terra prometida" de Canaã. A história do Êxodo só é encontrada no Pentateuco (os 5 primeiros livros da Bíblia) e no Alcorão, que foi escrito mais tarde. Nenhuma outra fonte antiga corrobora a história e nenhuma evidência arqueológica segura existe. Isso levou muitos estudiosos a concluir que Moisés era uma figura lendária - como Hércules, para os gregos - e a história do Êxodo, um mito cultural.

Moisés é mencionado por uma série de escritores clássicos, todos baseados nas histórias da Bíblia ou similares. Ele pode ter sido um personagem mitológico, com sua lenda contada e recontada, ou pode ter sido uma pessoa real ligada a eventos sobrenaturais, precisamente como retratado no Pentateuco e no Alcorão. Datar a vida de Moisés e o Êxodo é difícil, sempre havendo necessidade de fazer isso em conjunto com outros livros da Bíblia construídos sobre o próprio Pentateuco, o que cria uma pesquisa circular! É perfeitamente possível que a história do Êxodo tenha sido escrita por um escriba hebreu em Canaã, que desejava fazer uma distinção clara entre seu povo e os assentamentos antigos dos Amorreus na região. A história de um povo liderado até Canaã desde o deserto serviria bem a esse propósito.

MOISÉS NA BÍBLIA

O Livro do Êxodo parte da narrativa do Gênesis (capítulos 37-50) sobre José, filho de Jacó, que foi vendido como escravo por seus irmãos ciumentos e se tornou autoridade no Egito. José interpretou com precisão o sonho do faraó prevendo uma fome que se aproximava. Ele comandou os preparativos para os tempos de fome, sucedeu brilhantemente e trouxe sua família para o Egito. O Êxodo inicia-se com os descendentes de José tornando-se numerosos a tal ponto que o faraó, temendo uma tentativa de tomar o poder, resolveu escravizá-los.

Moisés aparece no 2º capítulo do livro, depois que o faraó (não identificado), preocupado com a crescente população dos israelitas, decreta que todo filho homem fosse morto. A mãe de Moisés o esconde por 3 meses, mas depois, com medo de ser descoberta, o deixa à deriva numa cesta de papiro no Nilo, onde ele flutua para o lugar em que a filha do faraó se banhava. A criança é tirada do rio pela princesa que o chama de "Moisés", alegando que ela escolheu o nome porque "o tirou da água" (Êxodo 2.10), pois "Moisés" significa "tirar". Mas desde o séc. 19, com a decifração da língua egípcia, sabemos que "Moisés" na verdade significa "filho de", o que mostra que o autor de Êxodo (supostamente o próprio Moisés) desconhecia tal idioma.

Moisés foge do Egito para a terra de Midiã. Lá ele resgata as filhas do sumo sacerdote Reuel - o nome aparece em Êxodo 2.18, depois sendo substituído por Jetro, que significa “excelência”. Reuel casa Moisés com sua filha Zípora e ele vive em Midiã como um pastor, até o dia em que encontra um arbusto em chamas, mas que não era consumido. O fogo era um anjo de Deus dizendo que ele deveria retornar ao Egito para libertar seu povo. Moisés não estava interessado e, sem rodeios, diz a Deus "Por favor, envie outro" (Êxodo 4.13). Deus não aceita ser questionado e deixa claro que Moisés retornaria ao Egito. Deus também garante que tudo ficaria bem, que o irmão hebreu Arão o ajudaria a falar e que poderes sobrenaturais que o capacitariam a convencer o faraó. Em uma passagem perturbadora para os intérpretes, Deus também avisa que "endureceria o coração do faraó" contra a mensagem. Noutra passagem tão estranha quanto, Deus vai ao encontro de Moisés em algum ponto do caminho até o Egito para matá-lo por não ter circuncidado o filho, mas Zípora apazígua o Senhor reconhecendo sua descendência hebraica (Êxodo 4.24-26).

Após as 10 pragas e dividir o mar para que seu povo escapasse do Egito, Moisés encontra Deus face a face e recebe os 10 Mandamentos, as leis de Deus para seu povo. No monte, Moisés recebe também instruções para a arca da aliança e o tabernáculo, uma tenda elaborada. Lá embaixo, seus seguidores pedem a Arão para forjar um ídolo, derretem os tesouros que trouxeram do Egito e fazem um bezerro de ouro. Quando Moisés desce a montanha, ele se enfurece e destrói as tábuas dos 10 Mandamentos. Ele chama todos os que permaneceram fiéis (incluindo Arão!) e manda matar aqueles que forçaram Arão a fazer o ídolo. Êxodo 32.27,28 afirma que cerca de 3000 foram mortos pelos levitas de Moisés.

Moisés e os anciãos fazem uma nova aliança com Deus, que re-escreve os Dez Mandamentos em outras tábuas e estas são colocadas na arca da aliança, dentro do tabernáculo. O povo não poderia mais questionar Sua existência nem perguntar Seus desejos, pois através dos Mandamentos e outras instruções, tudo já estava bem claro. Além disso, Ele mesmo estaria no tabernáculo. Mas o povo ainda duvida e é decretado que aquela geração vagaria pelo deserto até morrer; a próxima geração veria a terra prometida. O próprio Moisés é proibido de entrar e apenas vislumbra a terra do outro lado do rio Jordão. Ele morre e é sucedido no comando por Josué, filho de Nun. As provações e os desafios de Moisés mediando entre seu povo e Deus, assim como suas leis, são descritos nos livros de Números, Levítico e Deuteronômio. Junto com Gênesis e Êxodo (supostamente escritos por Moisés) esses livros compõem o Pentateuco, presente na Torá Judaica e herdado pela Bíblia Cristã, em sinal de uma continuidade da relação com o deus Javé/Jeová através de Jesus.

ENTEÓGENOS À PARTE

Uma visão inédita de Moisés foi apresentada em 2008 por Benny Shanon. Estudioso dos efeitos de enteógenos (alucinógenos usadas em rituais religiosos) sobre a consciência humana, ele fez um estudo comparativo da experiência de Moisés no Sinai e dos rituais associados à Ayahuasca, uma combinação de infusões preparadas da trepadeira Banisteriopsis caapi com as folhas, do arbusto Psychotria viridis. Sua proposta é de que a fundação do monoteísmo por Moisés teria grandes similaridades com os cultos ameríndios baseados na Ayahuasca (como o Santo-daime).

Enquanto a P. viridis é rica no alucinógeno DMT (um dos mais poderosos conhecidos), a B. caapi bloqueia o processo digestivo para que tal substância seja absorvida. No cérebro, o DMT não apenas produz visões que a maioria das pessoas chamaria de sobrenaturais, mas cria uma sensação de religiosidade poderosa o suficiente para induzir conversões. Shanon encontrou um mecanismo semelhante na combinação da seiva rica em DMT da árvore Acácia (mais precisamente Acacia albida, A. lactea, A. tortilis, A. seyal e A. nilotica) com as folhas do arbusto Peganum harmala (harmal em árabe, significando "sagrado"), ricos harmina e harmalina, que bloqueiam a digestão do DMT. Ambas as plantas são encontradas no Oriente Médio, utilizadas pelo beduínos como plantas medicinais e a Acácia, em especial, foi escolhida como a madeira mais preciosa por Moisés, usada para fazer a Arca da Aliança e partes do tabernáculo (Êxodo 25.2-9). A Acácia também sagrada no Egito, de onde Moisés saiu. Shanon ainda compara a estrutura das descrições visuais de Moisés a respeito de Deus (Êxodo 24.9-11Êxodo 33.12-23) com relatos de usuários de Ayahuasca e suas próprias experiências com o P. harmala, apontando grandes semelhanças como a visão de luzes, um ser soberano sem rosto e a sensação de passagem acelerada do tempo que, para Moisés, seria o equivalente de um arbusto queimando sem ser consumido.

Eu vi uma criatura. Era uma mulher, mas não uma pessoa normal, nem um ser humano normal. Vi ela claramente, mas não vi seu rosto. Eu queria tanto ver seu rosto que implorei "por favor, por favor, mostre seu rosto para mim". Ela caminhou para frente, para longe, de costas para mim. Continuei implorando. Muito rapidamente ela virou a cabeça para trás. Foi tão rápido que eu mal pude ver, a única coisa que detectei foi um sorriso. Ela tinha sorrido de uma forma que era ao mesmo tempo benevolente e zombeteira, como se para indicar o quão pequeno eu era como um ser humano. E então ela continuou caminhando de costas para mim. (Shanon B, p. 61)

Deixando claro que seria muito improvável comprovar historicamente sua tese, pois a Bíblia não é clara quanto à definição de plantas e rituais antigos, ele também descreve propriedades provavelmente alucinógenas do ktoret ou ktoret ha-samim, o incenso usado no Templo, segundo o Talmude. Essa mistura de resinas do Oriente Médio é citada outras vezes no Antigo Testamento em associação com Moisés (Levítico 10.1,2, Números 16.16,17), possuindo tanto propriedades curativas quanto letais. Sem dúvida, a importância do incenso como conector com o divino é mostrada quando Jesus recebe tal oferta em Seu nascimento.

Segundo Shanon, alguns enteógenos (cujo uso religioso se perdeu e não foi devidamente registrado) podem ter sido envolvidos nas experiências de Moisés com Deus.

MOISÉS NO ALCORÃO

Moisés é mencionado muitas vezes no Alcorão como um homem justo, um profeta e um sábio. No Êxodo do Alcorão, Moisés é um servo devoto de Allah confiando na sabedoria divina. Em Sura 18.60-82, no entanto, uma história de cunho educativo mostra como mesmo um grande e justo ainda tem muito a aprender de Deus.

Depois que Moisés fez um sermão particularmente brilhante, um membro da platéia pergunta se há outro na terra entendido nos caminhos de Allah como ele; Moisés responde que não. Allah informa que sempre haverá aqueles que sabem mais em qualquer coisa, especialmente em relação ao divino. Moisés pergunta a Allah onde ele pode encontrar tal homem e Allah o instrui como chegar até Al-Khidr, a quem Moisés pergunta se ele poderia segui-lo e aprender dele. Al-Khidr responde que Moisés não entenderia nada que ele dissesse ou fizesse e não teria paciência. Após muita insistência, ambos saem juntos. No caminho, Al-Khidr encontra um barco à beira-mar, chuta-o e abre um buraco no fundo. Moisés protesta, clamando que os proprietários do barco não serão mais capazes de ganhar seu sustento. Al-Khidr lembra-o que prometera não fazer perguntas. Pouco depois, eles encontram um jovem na estrada e Al-Khidr o mata. Moisés pergunta por que um jovem tão bonito deveria morrer e Al-Khidr lembra-lhe de novo a promessa. No caminho novamente, passam por um muro de pedra que está caindo e Al-Khidr pára para reparar a construção. Moisés reclama que, como pagamento por aquilo, poderiam ter algo para comer.

Nisto, Al-Khidr diz a Moisés que ele violou seu acordo pela última vez e seguiriam caminhos diferentes. Mas explica: ele destruíra o barco porque havia um rei capturando todos os barcos no mar e escravizando a tripulação. Se as pessoas boas que possuíam o barco tivessem saído com ele, teriam um fim ruim. Ele matara o jovem porque ele era mau e traria grande dor para seus pais e comunidade. Allah já preparara outro filho para seus pais. Ele consertara o muro porque havia um tesouro escondido debaixo dele, que dois órfãos deveriam encontrar. Se o muro tivesse ruído, o tesouro apareceria e seria roubado. Al-Khidr termina dizendo: "Essa é a interpretação das coisas sobre as quais você não mostrou paciência" e Moisés entende a lição.

Como com o Moisés bíblico, o Moisés do Alcorão tem forças e fraquezas de qualquer pessoa. Na Bíblia, a humildade de Moisés é enfatizada, mas seu orgulho em golpear (ao invés de ouvir a Deus) levam-no a ser punido. No Alcorão, sua fé em si mesmo o torna incapaz de confiar no mensageiro de Allah. Ambas as histórias ensinam que Deus tem um propósito para os seres humanos, o qual não deve ser desafiado, mesmo que nem um sábio possa entendê-lo.

O CAMINHO DO HERÓI

Estudiosos bíblicos sustentam que o Pentateuco foi escrito por diferentes pessoas em épocas diversas. A história de Moisés como relatada no Êxodo é a história do herói, como elaborada por Joseph Campbell em obras como “O herói com mil faces” ou “Transformações de mito através do tempo”. Embora Moisés tenha nascido Hebreu, ele é separado do seu povo pouco depois do nascimento e perde sua herança cultural. Ao descobrir quem realmente é, ele deixa a vida a que estava acostumado e viaja em busca do seu propósito de vida. Ele tem medo de aceitar o que deve fazer, mas o faz e realiza seu propósito. A história do Êxodo ressoa em todos nós porque toca em temas e símbolos universais de identidade pessoal, propósito e envolvimento do divino nos assuntos humanos.

A história de Moisés emprega o motivo da criança nascida de pais humildes que se torna (ou é sem saber) um príncipe. Bem antes do Êxodo, esta história já era conhecida no Oriente Médio e Oriente Próximo através da lenda de Sargão de Acádia. Sargão (2334-2279 a.C.) foi o fundador do império Acadiano, o primeiro império multinacional do mundo. Sua lenda (talvez ainda mais antiga) foi usada por ele mesmo, em vida, para alcançar seus objetivos. Em uma tabuleta de barro encontrada em Nínive, o antigo rei relata:

Minha mãe era sagrada [possivelmente uma sacerdotisa], meu pai eu não conheci;
O irmão de meu pai amava as colinas;
Minha casa era nas terras altas, onde as ervas crescem;
Minha mãe me concebeu em segredo, ela me deu à luz em oculto;
Ela me colocou em uma cesta de juncos;
Ela selou a tampa com betume;
Ela me lançou no rio, mas ele não se elevou sobre mim;
A água me levou até Akki, o carregador de água;
Ele levantou-me quando mergulhou seu jarro no rio;
Ele me tomou como seu filho, ele me criou;
Ele me fez seu jardineiro.

Sargão tornou-se o preferido do rei Ur-Zababa, senhor da mesma cidade-estado de onde saiu Abraão. Ele cresceu, ganhou respeito como líder militar (inclusive tomando a esposa de um rei poderoso da região) e depois derrubou o rei (assim como os reis vizinhos) para unir toda a Mesopotâmia sob seu governo. O conto de Sargão e sua origem humilde como jardineiro atraiu a classe trabalhadora, que o viu como um libertador e reformador. A elite, entretanto, só o aceitou como rei através da força militar.

A lenda de Sargão permanece até hoje, sendo re-encenada ocasionalmente em festividades do Iraque e região. A semelhança com Moisés é clara; o escritor de Êxodo também queria seu herói associado com Sargão. Outros estudiosos, como Rosalie David ou Susan Wise Bauer, aceitam a história do Êxodo como autêntica e sugerem que os personagens dele conheciam a lenda de Sargão, usando meios semelhantes para colocar o bebê Moisés no mesmo rumo de acontecimentos. Para esses estudiosos, a falta de registros do Êxodo e nenhuma evidência arqueológica para apoiá-lo pode ser explicado pelo embaraço que a partida dos israelitas teria causado ao faraó do Egito. As pragas demonstraram a impotência do panteão egípcio; o Nilo, sangue de Osíris, foi transformado em sangue sujo e venenoso; os sapos sagrados de Osíris tornaram-se pestes; o sol de Rá e Aton foi apagado pela escuridão. Estes não eram eventos que os egípcios iriam querer lembrar.

O ÊXODO COMO HISTÓRIA

Uma explicação mais simples, no entanto, é que os eventos descritos no livro do Êxodo não ocorreram - ou, pelo menos, não como descrito - e, portanto, não foram feitas inscrições relacionadas a eles. Os egípcios são famosos por seu registro e ainda não foram encontradas quaisquer referências à partida 600 mil homens a pé, além de mulheres e crianças (Êxodo 12.37, Êxodo 38.26). Mesmo que os egípcios escondessem o constrangimento de seus deuses, algum registro existiria de um movimento tão grande de uma população tão vasta, mesmo que esse registro fosse simplesmente uma mudança física da região. Há acampamentos sazonais da Era Paleolítica na Escócia e outras áreas que datam de 12.000 a.C. (como a fazenda Howburn) e estes locais não ficaram em uso tanto tempo como os 40 anos de acampamentos dos Hebreus em sua viagem à terra prometida.

Detalhes históricos contrariando a narrativa bíblica dessa grande migração não faltam. Por exemplo, entre 2000 e 700 a.C. (uma larga faixa de tempo de 13 séculos na qual supomos que o Êxodo teria acontecido) a terra de Canaã estava sob controle egípcio. Fugir do Egito para Canaã, mesmo atravessando o Mar Vermelho, significaria escapar das celas para o pátio da prisão. Ainda, apesar de o Êxodo dar a idéia de fatos muito antigos, entre 2000 e 1400 a.C., a origem (bíblica) mais apurada desses textos é do tempo dos profetas Ezequiel, Isaías e Jeremias (~ 700 a.C.) e não antes disso. Até então, tais estórias foram passadas boca a boca e não na forma de escrituras como conhecemos.

Estudiosos como David Rohl argumentam que o problema com as evidências do Êxodo são simplesmente uma divergência quanto a sua datação. O Êxodo sempre foi tradicionalmente colocado no reinado de Ramsés II (1279-1213 a.C.) baseado na passagem de Êxodo 1.11, onde afirma-se que os escravos Hebreus trabalharam nas cidades de Pithom e Ramsés, duas cidades que Ramsés II construiu. Rohl afirma que os eventos realmente ocorreram muito antes (ver O príncipe do Egito). O problema com a teoria de Rohl é que as evidências do período do Médio Império (2040-1782 a.C.) não substanciam fortemente a história do Êxodo.

Uma das evidências históricas mais citadas por Rohl é o Papiro de Ipuwer, encontrado no início do século 19 e datando do final do Médio Império. O papiro (com aproximadamente 50% das palavras ainda legíveis) é um pronunciamento ou carta ao rei, escrito por um egípcio chamado Ipuwer. Ele era provavelmente um sacerdote, descrevendo grandes sofrimentos no Egito, fome, seca, etc e morte em toda a terra. Ipuwer, ao final do que permanece legível, invoca o deus Rá como libertador do povo e destruidor de toda maldade humana. Rohl encontrou paralelos entre as desgraças pelas quais Ipuwer clama ao rei e as pragas descritas no Livro do Êxodo.

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Os paralelos do papiro de Ipuwer, segundo Rohl.
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Entretanto, uma leitura mais atenta do papiro dá a entender que o sangue, morte, etc se referem à guerra. Ipuwer fala da invasão do delta do Nilo por um povo do Oriente que desestruturou o poder do rei e gerou guerra civil, empobrecimento dos nobres e privação do Alto Egito dos mantimentos e produtos que chegavam de veleiros pelo rio. Sua preocupação com os nobres, o que pode revelar sua condição social favorecida, se revela em frases como “Os príncipes vivem em depósitos … Os ricos estão em luto. O homem pobre está cheio de alegria. Toda cidade diz: vamos suprimir os poderosos de entre nós.” A catástrofe agrícola parece real, mas pode ser um efeito climático e ela mesma ser a razão de um povo da Ásia se aventurar no Nilo. Bons candidatos para isso são os Fariseus, que já habitavam a área costeira do Sinai. Os semitas que Rohl afirma que viviam em grande número em Avaris dificilmente poderiam ser os Hebreus e, por fim, não há nenhuma evidência arqueológica ou literária de Moisés retirando seu povo do Egito; a única fonte continua sendo a narrativa bíblica.

O SACERDOTE EGÍPCIO

O historiador egípcio Manetho (século 3 a.C.) conta a história de um sacerdote egípcio chamado Osarsiph, que liderou um grupo de leprosos numa rebelião contra os desejos do rei que queria bani-los. Osarsiph rejeitou o politeísmo egípcio em favor de um monoteísmo e mudou seu nome para Moisés. Ele não teria atribuído nenhum nome ao seu deus, daí Moisés (filho de) ao invés de algo como Ramsés (Rá-moisés; filho de Rá). Ao que parece, ele se dizia filho de um deus vivo cujo nome os seres humanos nunca poderiam - ou deveriam - proferir.

O relato de Manetho foi perdido, mas é citado extensamente pelo historiador romano-judeu Flavius ​​Josephus (37-100 d.C.) e pelo romano Tacitus (56-117 d.C.). De acordo com Josephus, o faraó Amenophis III (1386-1353 a.C.) queria "ver os deuses", mas foi dito por um oráculo que ele não poderia, a menos que purificasse o Egito dos leprosos. Ele baniu os leprosos para a cidade de Avaris, onde foram unidos sob a liderança de um sacerdote monoteísta chamado Osarsiph. Osarsiph se rebelou contra Amenophis, instituiu o monoteísmo e convidou os Hiksos (provavelmente um nome para os Amorreus) de volta ao Egito. Na versão de Tacitus, o rei egípcio é chamado Bocchoris (o nome grego para o rei Bakenranef, 725-720 a.C.) e ele exila um segmento de sua população afligida com lepra para o deserto. Os exilados permanecem no deserto "em um estupor de dor", até que um deles, Moisés, os reúne e conduz a outra terra. Tacitus prossegue dizendo que Moisés ensinou ao povo uma nova crença em um deus supremo e "deu-lhes uma nova forma de adoração, oposta a tudo o que é praticado por outros homens".

Na verdade, sabemos que os Hiksos foram expulsos do Egito em 1570 a.C. pelo faraó Ahmose I, de Thebas, e nada indica que voltaram. Apesar dessa incongruência de Manetho, sua história é um relato muito antigo e levou estudiosos (entre eles Sigmund Freud e Joseph Campbell) a afirmarem que o Moisés da Bíblia não era um Hebreu criado em palácio egípcio, mas um sacerdote egípcio envolvido na revolução religiosa do faraó Amenophis IV (1353-1336 a.C.). Essa faraó mudou seu nome para Akhenaton e estabeleceu o monoteísmo do deus Aton, sua própria divindade. Tal movimento pode ter sido um impulso religioso genuíno ou uma reação contra os sacerdotes do deus Amon, ricos e poderosos. Ao estabelecer o monoteísmo e proibir todos os velhos deuses do Egito, Akhenaton efetivamente eliminou qualquer ameaça à coroa por parte dos sacerdotes. A teoria de Campbell e outros é que Moisés era um sacerdote de Akhenaton que liderou os seguidores de Aton para fora do Egito após a morte do faraó, quando seu filho Tutancâmon (1336-1327 a.C.) restaurou os antigos cultos. Outros estudiosos comparam Moisés com o próprio Akhenaton e vêem a história do Êxodo como uma representação mitológica da tentativa de Akhenaton de reformar a religião.

Freud escreve "Muitos autores reconheceram Moisés como um nome egípcio; podia-se esperar que pelo alguém considerasse a possibilidade de o portador de um nome egípcio ser, ele mesmo, um egípcio. … Eu me arrisco agora a tirar a seguinte conclusão: se Moisés era egípcio e se ele transmitiu aos judeus sua religião, então essa era a religião de Akhenaton”. Segundo Freud, Moisés foi assassinado por seu povo e a memória desse ato criou uma culpa comunitária que infundiu a religião do Judaísmo e caracteriza esse sistema de crenças, bem como das fés monoteístas que vieram depois. Tão interessante quanto a teoria de Freud, assim como outras dele mesmo, é que ela se baseia numa suposição nunca provada, mas sobre a qual ele continua a construir seus argumentos. Susan Wise Bauer escreve: “Isso não tem absolutamente nenhuma base histórica e na verdade é incrivelmente difícil de parear com qualquer data mais provável do Êxodo. A teoria parece ter-se originado com Freud, que certamente não era um estudioso imparcial em seu desejo de explicar as origens do monoteísmo, negando ao Judaísmo sua singularidade.”

Bauer trabalha com uma "data provável" para o Êxodo em torno de 1446 a.C. baseada em uma leitura direta de 1ª Reis 6.1 alegando que 480 anos se passaram entre o Êxodo e a construção do templo de Salomão. Mas essa datação bíblica se complica pela passagem de Êxodo 7.7 que afirma que Moisés tinha 80 anos quando se encontrou pela primeira vez com faraó; o nascimento de Moisés é dado pelo Judaísmo rabínico como 1391 a.C., levando ao Êxodo por volta de 1300 a.C. E existem várias outras possibilidades.

O ÊXODO COMO LITERATURA NARU

O problema com todas as especulações sobre o Êxodo decorre da tentativa de ler a Bíblia como uma história retilínea, em vez do que é: literatura e, especificamente, escritura. Os escritores antigos não estavam tão preocupados com os fatos como modernos, mas certamente estavam interessados ​​no efeito de seus textos. Isso é exemplificado pelo antigo gênero da literatura Mesopotâmica conhecido como Naru. Nesse tipo de estória, uma figura, geralmente alguém famoso, desempenha um papel importante em uma aventura da qual eles realmente não participaram.

Os melhores exemplos da literatura Naru referem-se a Sargão de Acádia e seu neto Naram-Sin (2262-2224 a.C.). Na famosa história "A Maldição de Acádia", o deus Enlil cansa-se da cidade de Acádia e passa a ignorá-la, proibindo outros deuses de agirem em seu favor. Naram-Sin ora repetidamente a Enlil e, ignorado, destrói seu templo. Este ataque, claro, provoca a ira não só de Enlil, mas dos outros deuses que enviar os Gutianos, "um povo que sem inibição, com os instintos humanos, inteligência canina e civilidade de macacos" para invadir Acádia. Há fome generalizada, os mortos apodrecem nas nas ruas e casas, a cidade fica em ruínas. De acordo com a lenda, a cidade e o império eternos terminam como vítimas da arrogância de um rei perante os deuses. Mas não há registro de Naram-Sin fazendo qualquer coisa assim, enquanto há uma grande quantidade de provas de que ele era um rei piedoso que honrou Enlil e os outros deuses. Neste caso, Naram-Sin teria sido escolhido como personagem principal por causa de sua fama e usado para transmitir uma verdade sobre o relacionamento da humanidade com os deuses; em especial, a atitude apropriada do rei em relação ao divino. É o equivalente antigo das fábulas com animais (tipo a famosa “O lobo e o cordeiro”) de La Fontaine.

Da mesma forma, o Livro do Êxodo e as outras narrativas sobre Moisés contam uma história de libertação física e espiritual usando Moisés - uma figura previamente desconhecida na literatura - como mediador entre o homem e Deus. Os escritores bíblicos firmam seu relato na história, para mostrar Deus trabalhando através de eventos reais, da mesma forma que os autores da literatura Naru escolheram grandes reis para transmitir sua mensagem. Pelo menos no caso dos textos Naru, sabemos que não é história, mas isso não tira seu valor. Insistir em histórias como o Livro do Êxodo como histórico nega ao leitor uma experiência mais ampla do texto, a de transmitir seu ensino sapiencial e cultural.

Ao longo da narrativa bíblica, Moisés medeia entre Deus e o povo, mas não é completamente santo nem secular. Ele aceita a ordem de Deus relutantemente e constantemente questiona Deus, mas tenta fazer detalhadamente a vontade do Senhor até que golpeia uma pedra para produzir água em vez de falar com ela como Deus havia instruído (Números 20.7-11). Deus já havia dito a Moisés que golpeasse a rocha para obter água (Êxodo 17.6). O local era o mesmo: Meribá (tentação), onde haviam fontes no deserto. As ações de Moisés aqui (mas não um homem que ele matou no Egito) impedem-no de entrar na terra prometida de Canaã, pois comprometeu seu relacionamento com Deus. Seria possível que as mesmas pessoas, no mesmo local, fossem reprovadas duas vezes? Além de uma estória parecer eco da outra (como várias passagens bíblicas, incluindo a escritas dos Mandamentos), é possível que servissem a um propósito comum: ensinar a fidelidade a Deus, apresentando o erro de antepassados. E voltamos à contenda de Naram-Sin com o deus Enlil; o que importa, no fim, é ensinar o relacionamento adequado dos homens para com o divino.

CONCLUSÃO

Ao longo do Novo Testamento, Moisés é citado mais do que qualquer outro profeta ou figura do Antigo Testamento. Moisés é visto como o Legislador e exemplifica um homem de Deus. Para citar apenas uma referência a ele, Moisés é enaltecido na famosa parábola de Jesus sobre Lázaro e o homem rico em Lucas 16.19-31. Nesta parábola, um pobre chamado Lázaro (único nomeado nas parábolas de Jesus) e um homem rico vivem na mesma cidade. Ambos morrem no mesmo dia. O homem rico acorda no submundo e vê Lázaro com Abraão no paraíso. Ele pede ajuda, mas é lembrado por Abraão que, na terra, viveu delícias enquanto Lázaro sofreu; lá, os papéis foram invertidos. O homem rico então pede a Abraão para enviar alguém para avisar sua família. Abraão responde: "Eles têm Moisés e os profetas, que os escutem. Se eles não ouvirem Moisés e os profetas, tampouco ouvirão se alguém ressuscitar dos mortos". Nesta história, Moisés é apresentado como o paradigma da verdade de Deus. Se as pessoas aceitassem o exemplo e as palavras de Moisés, poderiam evitar a separação de Deus na vida após a morte. A história enfatiza como os ensinamentos de Moisés fornecem tudo o que alguém precisa saber sobre a vida e como desfrutar de um pós-vida com Deus.

Moisés também aparece na transfiguração de Jesus em Mateus 17.1-3, Marcos 9.2-4 e Lucas 9.28-30, juntamente com Elias, quando Deus anuncia que Jesus é seu filho. Nessas passagens e noutras do Novo Testamento, Moisés é apresentado como um exemplar e representante da vontade de Deus.

Não sabemos se houve um líder religioso na história chamado Moisés, que levou seu povo do Egito e iniciou uma compreensão monoteísta do divino. As crenças individuais ditarão se alguém aceita a historicidade de Moisés ou o considera como uma figura mítica mais do que qualquer evidência histórica - ou a falta dela - jamais poderá mudar. De qualquer maneira, a figura de Moisés mudou a história do mundo. O monoteísmo atribuído a ele cresceu com os professores da fé do Judaísmo, produzindo a atmosfera em que o Cristianismo surgiu e onde nasceu mais tarde o Islã. Todas as três grandes religiões monoteístas no mundo afirmam que Moisés é seu e ele continua a servir como um modelo do relacionamento da humanidade com o divino.

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ANOTADO NOS CANTOS DE UM PERGAMINHO

Gardiner AH, The admonitions of an egyptian sage, Georg Olms Verlag, 1969 (tradução do papiro de Ipuwer)
Jethro, http://biblehub.com
Mark JJ, Moses, 28 set 2016, http://www.ancient.eu
Mark JJ, Sargon of Akkad, 2 set 2009, http://www.ancient.eu
Rabbi Becher M, The ten plagues - live from Egypt, www.ohr.edu 
Rodrigues F, Ciência e religião, O poder das religiões - edição especial temática da revista Caros Amigos, ano 18, nº 71, nov/2014.
Shanon B, Biblical entheogens: a speculative hypothesis, Time and mind: the journal of archaeology, consciousness and culture, v.1, n.1, p.51-74, 2008.

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