sábado, 20 de dezembro de 2014

Deus do possível


Trato aqui mais de uma reflexão filosófica do que de um tema novo, algo que estava corroendo para falar. Muitos que costumam habitar as igrejas já devem estar até anestesiados com esse tema, de tanto ouvir ou cantar "Deus do impossível", de tanto procurar Deus em tudo aquilo que não pode ser explicado, de curas que envolvem a retirada da aorta a alguém fazendo barulhos estranhos a paletós derrubando multidões.

Nos tempos do Velho Testamento, o inexplicável era a colheita, os animais, a origem dos povos. Homens guerrearam e morreram para defender suas concepções quanto a isso, para defender que eram o povo escolhido ou até descendente de Deus, de titãs mitológicos, das estrelas que fosse. Muitos séculos mais tarde, após valiosos ensinamentos babilônicos e persas sobre agricultura, com o Egito exuberando organização urbana e os gregos trazendo a ciência astronômica, plantar e colher já não era crítico. Haviam alimentos, estradas, navios para levar tudo até os confins do mundo conhecido. O Novo Testamento então vem com os mistérios do comportamento humano sondados por Jesus, a alma humana escrutinada e aconselhada por Paulo. Esse era o desconhecido, era onde Deus agora agia: no coração insondável dos homens.

Quando Roma se retirou de suas terras na Europa, os povos viram o mundo organizar-se sob o poderio militar e depois desorganizar-se. As populações tribais viraram cidades e as pragas apareceram (não diferente do que houve no Oriente Médio, mas eles aprenderam a se lavar, afastar os leproso, evitar alguns alimentos, etc), e não havia meios eficientes para tratá-las. Deus agora estava na segurança dos caminhos cheios de saqueadores, na saúde do corpo, Quem ousasse curar estaria usurpando o lugar do Divino. O comércio cresceu, os poderes políticos surgiram, e Deus então foi colocado na influência dos nobres, nas mãos abençoadas e infalíveis dos mais poderosos e magnânimos monarcas.

O Deus do séc. 19 foi parar nas conquistas militares, no séc. 20 ele foi deixado aos sobreviventes das guerras ou da concentração de renda em algumas nações, para desespero de todas as outras. Hoje, no 3º Mundo, Deus está nas curas impossíveis, que os desventurados sistemas públicos de saúde negligenciam. No 1º Mundo, Ele está nos improváveis testemunhos de fé de quem não precisou dela para ter a boa vida que tem. Jogamos Deus para um lado e para o outro, de acordo com o que queremos e não conseguimos alcançar. Deus do nosso impossível. No entanto, o mais heterodoxo Senhor foi quem disse:

Observem as aves do céu: não semeiam nem colhem nem armazenam em celeiros; contudo, o Pai celestial as alimenta. Não têm vocês muito mais valor do que elas? Quem de vocês, por mais que se preocupe, pode acrescentar uma hora que seja à sua vida? Por que vocês se preocupam com roupas? Vejam como crescem os lírios do campo. Eles não trabalham nem tecem. Contudo, eu lhes digo que nem Salomão, em todo o seu esplendor, vestiu-se como um deles. Se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada ao fogo, não vestirá muito mais a vocês, homens de pequena fé? Portanto, não se preocupem, dizendo: ‘Que vamos comer?’ ou ‘que vamos beber?’ ou ‘que vamos vestir?' Pois os pagãos é que correm atrás dessas coisas; mas o Pai celestial sabe que vocês precisam delas. (Mateus 6.26-32)

E se o Pai não fechar os olhos às necessidades de seus filhos, eis que O teremos menos no impossível do que no possível, no que recebemos todos os dias. No salário que ganhamos com nosso trabalho, na comida que preparamos com o que temos na cozinha, nas pessoas que conhecemos pelos caminhos que nós andamos. Mas então, não são os nossos braços e pernas e pensamento que fazem tudo isso? Não seríamos todos peças magistralmente movimentadas por um Deus que não vemos, de tão presente em tudo?

Fica o texto enigmático do Brabo, agora contorcido por estas palavras.

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