Félix perguntou ao eremita onde existe Deus, pois fortemente se assombrava de não vê-Lo. O eremita respondeu que Deus está e existe em Si mesmo e em tudo o que existe, essencial e presencialmente. Como Deus não é coisa corporal, é invisível aos olhos corporais mas, como é coisa espiritual, é visível aos olhos espirituais.
(Ramon Lull, Félix o El Libre de meravelles, 1288)
Hoje, ainda existe um grande debate sobre a natureza dualista do ser humano. E provavelmente esse debate ainda durará muito, pois já se arrasta há milênios. Alguns de seus maiores expoentes certamente foram Platão (Atenas, 428-348 a.C.) e René Descartes (França, 1596-1650). Graças ao trabalho de Descartes, o homem mais ou menos deixou de ser um ser único formado por espírito e corpo unificados. Até então, esta união colocava as doenças como resultados de más ações individuais ou coletivas, o que em muito dificultou o desenvolvimento científico. Em algumas partes do mundo civilizado, por exemplo, era imperativo que o corpo fosse preservado para que alma pudesse chegar ao Céu. Após Descartes, a alma e a mente foram separadas como assunto para a religião, enquanto o corpo foi deixado como assunto para a ciência.
Apesar disso, é recente a constatação de que o dualismo mente-corpo colocou um viés nos tratamentos: enquanto a medicina e a ciência se ocupam das questões corpóreas, não é pequena a necessidade espiritual/mentalista dos pacientes, de forma que dificilmente um tratamento será satisfatório ao seu público alvo.
As pessoas ditas ‘dualistas’ acreditam que a realidade consiste de matéria e espírito. Quando aplicado a uma pessoa, elas acreditam que uma pessoa tem tanto um corpo material e um espírito não-material ou mente. Já as ‘materialistas’ acreditam que a realidade consiste apenas da matéria, que supostamente o espírito é ilusório ou é redutível à matéria, e que, portanto, uma pessoa é um corpo (incluindo o cérebro) somente. As ‘idealistas’ por sua vez acreditam que a realidade consiste apenas de espírito, que a matéria é ilusória ou é redutível ao espírito, e que, portanto, uma pessoa é apenas uma idéia (mais ou menos como a realidade virtual).
A esmagadora maioria dos leigos é dualista. Acreditam que as pessoas têm tanto um corpo físico, e uma mente não-física ou consciência. Muitos acreditam que as pessoas têm uma alma, o que também seria o Eu não-físico, que pode ou não ser um outro nome para a mente consciente. Os filósofos e cientistas, minoritariamente, tendem a ser quase sempre materialistas. Essa distinção, entretanto, inclui também pessoas de crenças metafisicamente neutras, as quais ressaltam que embora o mundo não-físico exista, apenas fenômenos materiais podem ser estudados cientificamente, e que todas as teorias, hipóteses, leis causais, experiências, etc, devem necessariamente ser redigidos em termos materiais. A realidade imaterial seria intangível e irrelevante para a ciência.
O idealismo é uma posição extremamente rara, tanto entre os profissionais como entre pessoas comuns. Muito disso se resume a semântica, no entanto. Existem teorias filosóficas e até práticas terapêuticas que soam fortemente idealistas, dependendo de como são interpretadas.
Mas vamos olhar um pouco mais de perto o dualismo mente-corpo, especificamente a versão que parece ser ‘senso comum’ para a maioria das pessoas. Como corpos e mentes supostamente interagem, se corpos são materiais e mentes não são?
1º ponto: UMA PESSOA É UMA MENTE, MAS TEM UM CORPO
A maioria dos dualistas afirma que a identidade pessoal reside na mente (ou consciência ou alma ou espírito, etc). Muitos dualistas acreditam que o espírito ou alma de uma pessoa sobrevive à morte, enquanto o corpo apodrece num caixão. A preservação da parte não-física seria a forma de a pessoa sobreviver à própria morte. Por outro lado, se você descobrisse que após você morrer a sua consciência estará perdida para sempre, mas o seu corpo permanecerá funcionando (mais ou menos como nos filmes de zumbis), você provavelmente não chamaria isso de sobreviver. Assim, a ‘vida’ poderia ser descrita como a parte ‘imaterial’, e não o corpo de alguém.
Para a maioria dos crentes em reencarnação, quando uma pessoa morre, o mesmo espírito ou alma anima um corpo diferente de um recém-nascido e assim por diante, através de diferentes vidas. E como se trata da mesma alma, todas essas vidas são a mesma pessoa. Para outros, essa alma ou mente é alojada em algum lugar distinto do corpo, e assim a pessoa continua viva, porém em outro mundo mais ou menos incomunicável com a nossa realidade material.
2º ponto: CORPOS EXISTEM NO ESPAÇO E NO TEMPO; MENTES EXISTEM APENAS NO TEMPO
A alma ou mente parece ser localizável no espaço apenas de uma forma muito vaga, imprecisa. Ela está associada a um determinado corpo, por exemplo, mas ‘onde’ ela está em relação ao corpo não é claro. A sua mente ocupa exatamente o mesmo espaço que o seu corpo? Está em algum lugar na sua cabeça? Se ela está ‘dentro’ de você, parece ser alguma metáfora espacial, não exatamente no sentido de ‘dentro’.
3º ponto: CORPOS PODEM SER DIRETAMENTE OBSERVADOS POR OUTROS; A MENTE SÓ É OBSERVÁVEL PARA SI MESMA
Você pode tocar, ver, ouvir, cheirar e provar o corpo de uma pessoa. Mas tudo o que você sabe ou pensa que sabe sobre a mente de uma pessoa só pode ser inferida a partir de coisas como o que ela diz e faz. Em outras palavras, a mente do outro é algo que a sua mente imagina.
4º ponto: O ESTADO DA PRÓPRIA MENTE PODE SER DEDUZIDO ERRONEAMENTE, ASSIM COMO DO PRÓPRIO CORPO
Aqui podemos citar a ‘síndrome do membro fantasma’, onde uma pessoa que teve um braço ou uma perna amputados sente dor ou coceira no membro amputado. Obviamente isso é impossível, mas algo bastante certo para a pessoa é ‘Eu sinto dor’, ou seja, o estado mental dela própria. ‘Eu sinto’ quase sempre é uma referência mentalista.
Por outro lado, ‘Eu estou feliz’ ou ‘Eu estou agressivo’ são estados mentais aos quais as pessoas se referem freqüentemente, mas que sabidamente são muito errôneos em suas aplicações práticas. Por causa desses erros, Freud chegou mesmo a construir o conceito de ‘inconsciente’, que nada mais é do que uma mente inacessível à própria mente. Assim, qualquer um pode estar feliz e não saber, ou agressivo, e isso seriam estados do ‘inconsciente’ aos quais a própria pessoa não tem acesso.
5º ponto: CORPOS ESTÃO SUJEITOS A LEIS CAUSAIS
Qualquer coisa desde descer as escadas até o padrão de neurônios disparando em seu cérebro pode, em princípio, ser explicada em termos de causa e efeito físicos. Mas a mente não está sujeita a leis causais (ou não haveria ‘livre arbítrio’), ou então se sujeita a leis causais não-físicas e desconhecidas pra a ciência.
COMEÇANDO A PENSAR
Tradicionalmente, existem dois problemas principais com este tipo de senso comum do dualismo mente-corpo, com os quais os filósofos se ocupam. A primeira é a relação entre mente e corpo. Como pode uma coisa não-física interagir com uma coisa física e vice-versa? Por exemplo, digamos que eu decida pegar uma bola e jogá-la em algum ponto da sala. Essa decisão, e qualquer deliberação que a precede, é mental, de acordo com o dualista. Mas, então, o ato de jogar a bola é, obviamente, físico e, em princípio, você pode traçar uma cadeia causal desde uma certa atividade do cérebro até o resultado em movimentos, passando pelos sistemas nervoso e muscular. Então, nós (mais ou menos) sabemos o que acontece no campo mental e no plano físico, mas como eles se conectam? Como é que uma decisão mental interfere na atividade do cérebro? Como pode um evento não-físico ou série de eventos saltar dos trilhos e causar um evento físico?
Naturalmente, acontece a mesma coisa na outra direção. Nós certamente podemos traçar uma cadeia causal de eventos físicos no contato da minha mão com um objeto quente, produzindo determinada atividade nervosa e uma atividade cerebral correspondente. Mas, segundo os dualistas, ‘dor’ não é uma atividade cerebral. Ela está correlacionada com a atividade do cérebro, e pode ser causada por essa atividade cerebral, mas não é a atividade cerebral. É uma sensação desagradável puramente mental. Mais uma vez, como uma cadeia física de eventos pula as barreiras em algum lugar do cérebro e tem impacto causal sobre uma substância completamente diferente e não-física?
A pesquisa neurológica não ajudou os dualistas aqui, e até os prejudicou. Experimentos revelaram, por exemplo, que a atividade do cérebro que resulta em um determinado comportamento muitas vezes acontece antes da ‘decisão’. Isto é, primeiro o processo para responder a um outro motorista com um gesto obsceno é iniciado em seu cérebro e, uma fração de segundo mais tarde, quando a mensagem nervosa já está viajando através de seu sistema nervoso para a sua mão, você decide: ‘Quer saber? Eu vou dar àquele idiota o que ele merece!’
Os dois eventos estão tão próximos que você acredita que sua decisão vem primeiro, mas realmente a sua ‘decisão’ é, na verdade, uma racionalização que ocorre após o fato. Isso parece reduzir a relevância da mente ainda mais, sem resolver em absoluto o problema de como uma mente e um corpo podem interagir causalmente.
A segunda questão é o problema das ‘outras mentes’. Clássico: Se só temos acesso direto a nossa própria mente, como sabemos sobre outras mentes, ou mesmo que elas existem? A resposta superficial é que é fácil de inferir a existência e estado de outras mentes. Você sabe que tem uma mente, você vê os outros seres que são muito semelhantes a você do lado de fora, então, por analogia, você conclui que o que está acontecendo dentro deles é bastante semelhante ao que está acontecendo dentro de você.
O problema com esse raciocínio, porém, é que ele é muito fraco. Em primeiro lugar, você está raciocinando a partir de apenas um caso - o seu próprio. Não é como se você tivesse acesso a milhares de mentes, examinasse todas elas e tirasse conclusões sobre outros casos dos quais você só pode ver o exterior. Você tem um só uma amostra. Em segundo lugar, nenhuma das suas inferências podem jamais ser confirmada, o que é difícil de aceitar pelo lado científico. Você não pode aprender com a experiência sobre o que se passa dentro de outras pessoas. Na milésima vez que você faz este tipo de inferência, a evidência ainda é virtualmente zero, como na primeira vez.
Por essas e outras razões, a maioria dos filósofos e cientistas se afastaram do tradicional dualismo corpo-mente. No meio do caminho ficaram alguns considerando o raciocínio lógico como um processo corporal e o raciocínio emocional como um processo puramente mental; contudo, as evidências dessa separação são fracas e de fato se reduzem progressivamente. No entanto, a maioria leigos ainda acredita no dualismo e, de fato, provavelmente, consideram isso tão evidente que nem podem imaginar como está sendo questionado.
E A IGREJA COM ISSO?
O Novo Testamento foi escrito com um conceito fortemente dualista (vide ‘Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito’ em Lucas 23.46), isto é, tomando por base que os homens são parte material e parte mental/espiritual. Jesus, por exemplo, fala em uma criação das falas no pensamento antes que sejam ‘tornadas materiais’:
Raça de víboras, como podem vocês, que são maus, dizer coisas boas? Pois a boca fala do que está cheio o coração. O homem bom, do seu bom tesouro, tira coisas boas, e o homem mau, do seu mau tesouro, tira coisas más. (Mateus 12.34-35)
E, naturalmente, é forte a descrição de uma realidade espiritual, tão semelhante à realidade material que Jesus a descreve com paralelismo surpreendente:
Na casa de meu Pai há muitos aposentos; se não fosse assim, eu lhes teria dito. Vou preparar-lhes lugar. E se eu for e lhes preparar lugar, voltarei e os levarei para mim, para que vocês estejam onde eu estiver. (João 14.2-3)
Dessa forma Paulo também traça toda uma luta entre o corpo e a mente, ou entre a ‘carne’ e o espírito, de forma que ambos nem ao menos andam em paralelo, mas são causadores independentes (e dissidentes) do comportamento humano.
A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA PARA OS MATERIALISTAS
Como dito antes, é uma marca do pensamento materialista a capacidade de testar teorias, o que pouco ou nada se aplica ao universo mentalista. Dessa diferença, naturalmente que o passar dos anos e o desenvolvimento tecnológico e filosófico favorecem o crescimento do que se sabe a respeito de questões materiais e em escala muito menor contribui para as questões espirituais ou mentais, que dificilmente podem ser testadas, a não ser cada um testando-as em seu próprio universo. Além disso, a correlação entre fenômenos mentais e a estrutura cerebral estão se tornando cada vez mais fortes nos últimos anos.
Sem dúvida, existem regiões cerebrais associadas com a experiência religiosa. Afinal, as emoções, sensações e ações relacionadas ao sagrado não são fundamentalmente diferentes das experimentadas nos eventos cotidianos; apenas são direcionadas a um propósito ou relacionadas a uma causa espiritual. Assim, são respostas orgânicas comuns produzidas por uma fonte não mensurável e que supostamente possuem um desenrolar também não mensurável. Embora a parte espiritual não seja observável de forma científica, a parte material certamente é.
Dependendo da cultura estudada, entre 20 e 60% das pessoas comuns relatam experiências religiosas, o que não pode passar despercebido. Em ordem de freqüência, essas experiências são (1) seqüências de eventos não controláveis pela pessoas, organizados de forma significativa e aparentemente intencional; (2) sensação da presença de uma entidade superior; (3) resposta a uma oração; (4) sensação de estar sendo vigiado ou guiado por uma entidade; (5) sensação da presença de um espírito humano invisível; (6) sensação de uma força dispersa no ambiente ou na natureza; (7) sensação de uma presença maléfica; (8) sensação de que todas as coisas estão conectadas. Há pelo menos 50% de semelhança nas experiências religiosas de gêmeos idênticos criados separados, de forma que um background orgânico nessas experiências é bastante plausível. Por exemplo, o ítem 8 é bastante relatado por pacientes com atividade muito superior no hemisfério cerebral direito. Os pacientes de epilepsia também relatam freqüentemente experiências religiosas intensas, e os relatos associando anomalias da atividade cerebral são consistentes mesmo com os relatos de religiosos e epiléticos famosos em toda história, desde Paulo de Tarso, Maomé, Joana d’Arc, Dostoievsky, Van Gogh, etc.
As experiências de quase-morte, tão aclamadas como provas do mundo espiritual/mental raramente são aceitas como experimentos científicos, dada sua natureza não reprodutível. Ainda, alguns estudos reunindo narrações dessas experiências indicam que a maioria delas conta com forte reorganização cognitiva após os eventos, de maneira que a experiência relatada por alguém é contada de forma diferente com o passar do tempo. Enquanto as experiências recém-ocorridas geralmente têm narrativas de paz, luz e um ambiente estranho, as mesmas pessoas tendem a adicionar tempos depois sensações de felicidade, sentidos amplificados, mudança na percepção do tempo e compreensão maior. Dessa forma, justamente os ‘aprendizados’ ou a parte não-sensorial gerados por tais experiências acabam vistos não como fruto direto delas, mas como uma ilusão gerada a partir de reestruturações incomuns da memória. Na experiências de epiléticos, também há fortes indícios dessa reestruturação.
O largo uso de substâncias químicas como potencializadores ou produtores de experiências religiosas também fala a favor de uma concepção materialista. Afinal, de que forma meras substâncias químicas poderiam modificar o funcionamento de uma mente ou espírito não-material? Tais substâncias são facilmente controláveis e neutralizáveis em laboratórios, de forma que as experiências associadas a elas podem mesmo ser impedidas com uso de outras drogas, apesar de todo o conteúdo cultural ou social relacionado a tais experiências.
O ARGUMENTO DUALISTA
Um dos maiores defensores do dualismo foi René Descartes. Em seu famosos argumento, ele afirmava que sabia e sentia a sua própria existência, mas poderia estar errado quanto à existência do seu corpo. Dessa forma, Descartes afirmava que a sua mente e seu corpo eram entidades distintas. Esse argumento, naturalmente, sempre deixa a fresta de que a própria existência de alguém - ou sua mente - seja de fato uma ilusão neurológica. Afinal, o fato de se auto-avaliar já coloca um funcionamento (contemplativo e analítico) diferente na mente, de forma que ninguém poderia, de fato, descrever-se com exatidão.
Muitas críticas dualistas apresentam fenômenos que não podem ser medidos fisicamente, como a consciência humana. Embora válido, esse é um argumento arriscado, pois sempre há avanços tecnológicos, o que significa que muito do que observamos hoje não podia ser observado tempos atrás, e nem por isso deixam de ser fenômenos físicos. Hoje falamos sem problemas em medicamentos de ação neural, estimulação cerebral, competição entre os hemisférios cerebrais, etc, o que era inconcebível no passado. Portanto, ainda que não exista uma explicação física da consciência humana, estamos a cada dia mais próximos disso e podemos até reproduzir tal consciência nas máquinas ‘pensantes’ com as quais convivemos no nosso dia a dia. Não é por acaso que os sistemas digitais trabalham com dois bancos de dados, um de estocagem e outro de processamento rápido. Nosso cérebro também funciona assim.
Embora a Bíblia seja bastante explícita quanto à existência de um mundo espiritual (que raramente é mostrado), devemos observar que a maioria dos ‘milagres’ relatados ocorre de forma claramente material. Isso vai desde uma Sara idosa gerando filho, a abertura do Mar Vermelho (por um vento impetuoso), a água brotando de um veio na rocha, leprosos sendo curados (pela destruição imediata de bactérias e regeneração dos tecidos danificados), cegos enxergando (por restauração de alguns tecidos nos olhos, supostamente o cristalino), paralíticos andando (por crescimento muito rápido de terminações nervosas), água se tornando em vinho (pelo surgimento de substâncias químicas) ou pães e peixes se multiplicando (pela formação de matéria). Não são eventos no mundo espiritual, são modificações diretas e assombrosas - da matéria tendo uma causa não materialmente possível, mas um desenrolar bem observável por olhos humanos.
Entre as obras puramente espirituais/mentalistas de Deus, poderíamos citar a manipulação de povos inteiros (que guerrearam ou fugiram sem motivo), as ressurreições (se assumirmos, claro, a natureza dualista dos homens), a cura de endemoniados (que são referidos como possuídos por espíritos imundos), a conversão de Saulo, etc. Evidentemente, controlar os espírito dos homens também não parece ser difícil a Deus, mas dado o caráter descritivo da narrativa bíblica (ou seja, são contados os feitos e ações, não as intensões ou pensamentos das pessoas), é de se esperar a pobreza justamente dos relatos mentalistas que favoreceriam um estudo espiritual do ser humano.
A fala de Jesus ‘Deus é espírito, e é necessário que os seus adoradores o adorem em espírito e em verdade’ (João 4.24) é bastante categórica em definir a natureza espiritual de Deus, sem que no entanto isso limite sua ação no mundo material.
No Velho Testamento, o ser humano era dividido em Basar (o aspecto exterior das pessoas), Nephesh (ou alma, a identidade dos seres) e Ruach (ou espírito, podendo significar também vento ou sopro, o que corresponderia ao nosso conceito de ‘vida’). No entanto, o Velho Testamento também faz uso de suposições grosseiras sobre os aspectos físicos do homem, como atribuir a propriedade da reflexão aos rins (a tradução NVI corrigiu tais divergências substituindo ‘rins’ por ‘coração’) e as emoções aos intestinos (também corrigida).
A tradução das Escrituras para o grego no período inter-testamentário (420 a.C. a 70 d.C.) encontrou uma linguagem mais sofisticada para as descrições e também uma preocupação maior com detalhamentos metafísicos. Por isso, o Novo Testamento oferece uma descrição mais apurada do que se poderia considerar o espírito humano.
Platão considerava o homem formado por Nous (mente), Psiqué (alma) e Soma (corpo), com a mente sendo a estrutura principal e comandante das demais. Reparemos que embora Paulo fosse grego e usasse largamente o pensamento grego em suas divagações, ele não segue a divisão de Platão senão pelas palavras semelhantes, dividindo o homem em Soma (corpo), Psiqué (os aspectos psicológicos da pessoa) e Pneuma (ou espírito, força de vida). Essas duas divisões usando os mesmos nomes com sentidos diferentes já foi causa de grandes confusões: por exemplo, Platão considerava a mete como o aspecto mais superior do homem; já Paulo a chama de psiqué e a coloca como sujeita ao espírito. Nos tempos de Santo Agostinho, os grandes pensadores cristãos logo perceberam que a língua latina criava confusões ao analisar termos gregos e simplificaram essa divisão - para propósitos práticos - em corpo e espírito, ambos corrompidos pelo pecado original.
O Novo Testamento coloca o espírito e a mente mais ou menos como uma única entidade responsável pela vida do corpo, além da vontade.
Pois a palavra de Deus é viva e eficaz, e mais afiada que qualquer espada de dois gumes; ela penetra ao ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e julga os pensamentos e intenções do coração. (Hebreus 4.12)
Assim como o corpo sem espírito está morto, também a fé sem obras está morta. (Tiago 2.26)
Paulo em especial diferenciava o espírito (ou ‘vontade’) da mente pensante (ou ‘racional’), que ele considerava sujeita ao espírito (a vontade racional) ou ao corpo (a ‘carne’, ou vontade natural), de forma semelhante aos Id e Super-ego de Freud.
Então, que farei? Orarei com o espírito, mas também orarei com o entendimento; cantarei com o espírito, mas também cantarei com o entendimento. (1ª Coríntios 14.15)
Durante a Reforma, a corrupção do espírito humano pelo pecado original foi tratada de forma bastante drástica: eliminava-se o espírito, tornando o homem não diferente de um objeto em meio a vários outros, sem vontade própria, para que então o Espírito Santo substituísse o espírito antigo. Durante muito tempo e provavelmente até hoje, essa foi uma forma muito usada de educação cristã.
Embora o Espírito Santo seja fundamentalmente diferente do espírito humano, a Bíblia (e outras tradições religiosas também) coloca ambos como reais e relacionados de forma que um possa tomar o lugar do outro.
O próprio Espírito testemunha ao nosso espírito que somos filhos de Deus. (Romanos 8.16)
POR ACASO VALE LER ISSO TAMBÉM?
Charland-Verville V, Jourdan JP, Thonnard M, Ledoux D, Donneau AF, Quertemont E, Laureys S, Near-death experiences in non-life-threatening events and coma of different etiologies, Frontiers in Human Neuroscience, v.8, n.203, p.1-8, 2014.
Mehta Neeta, Mind-body Dualism: A critique from a Health Perspective, Mens Sana Monographs, v.9, n.1, p.202–209, 2011.
Philo Gabriel, Humanities 360º, Mind body dualism, fev. 2010, http://www.humanities360.com/index.php/mind-body-dualism-28902
Saver JL, Rabin J, The neural substrates of religious experience, The Journal of neuropsychiatry and clinical neurosciences, v.9, p.498-510, 1997.Tripartite theology - wikipedia
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