terça-feira, 17 de junho de 2014

Peneirando gente


Gene Kelly fazendo graça lá pelos idos de 1951

Em um mundo gerido pelo Senhor, certamente ficamos intrigados quando a situação é ruim para um bom servo de Deus, e mais ainda se isso se dá com nós mesmos (e não somos bons servos ???). Nessas horas, alguns de nós simplesmente questionam a existência de Deus; outros a rejeitam entristecidos como nem Jó ficou; outros loucamente loucamente se abraçam ainda mais ao Senhor, por improvável que pareça sua ação. Afinal, se “Deus é bom”, e “não abandona seus filhos” (o que de fato Lhe atribuiria menos bondade), onde está Deus quando um filho Seu sofre? Porque não o defende? Porque não o Todo Poderoso não salva os seus?

Apenas como início de conversa, os profetas do Velho Testamento morreram de formas variadas. Elias foi levado em vida aos céus, mas Isaías morreu serrado por ordem do rei Manassés. Outros morreram em paz e velhos, como Samuel. Dentre os seguidores diretos de Jesus, a coisa foi bem menos variada:

  • Pedro morreu entre 64 e 67 d.C., provavelmente em Roma, durante as perseguições de Nero aos cristãos. A tradição diz que ele foi crucificado de cabeça para baixo, após se dizer desmerecido de morrer como Jesus.
  • André, irmão de Pedro, foi martirizado em Achaia, sul do Grécia.
  • Tiago, irmão de João e filho de Zebedeu, foi decapitado em 44 d.C. por ordens de Herodes Agripa.
  • João, um dos evangelistas, discípulo amado de Jesus, irmão de Tiago e filho de Zebedeu (provavelmente o mesmo João que escreveu o livro de Apocalipse), foi o único a não ter sua morte conhecida.
  • Filipe (não o evangelista que batizou o eunuco) foi martirizado em Hierópolis, na Turquia.
  • Bartolomeu Natanael foi martirizado em Baku, atual Azerbaijão, ma margem oeste do Mar Cáspio.
  • Tomé seguiu para o Iraque e oriente, podendo ter chegado ao sudeste da Índia, na cidade de Madras. Não se sabe como ele morreu.
  • Mateus Levi, o antigo publicano e depois evangelista, foi martirizado na Etiópia, nordeste da África.
  • Tiago filho de Alfeu foi martirizado no Egito.
  • Judas Tadeu, irmão de Jesus e provável autor do livro de Judas, foi martirizado na Pérsia.
  • Simão Zelote foi martirizado na Pérsia.
  • Judas Iscariotes enforcou-se após tentar devolver seu pagamento ao Sinédrio.
  • Matias foi martirizado provavelmente na Etiópia.
  • Paulo de Tarso foi provavelmente executado em Roma.

Sem dúvida, é comum que os homens até clamem a Deus pela morte de outros homens. No livro dos Salmos, uma coletânea de orações feitas ao Senhor e de algumas respostas do Próprio, vemos algumas coisas como:

Quando tentei entender tudo isso [da prosperidade dos maus], achei muito difícil para mim, até que entrei no santuário de Deus, e então compreendi o destino dos ímpios. Certamente os pões em terreno escorregadio e os fazes cair na ruína. Como são destruídos de repente, completamente tomados de pavor! São como um sonho que se vai quando a gente acorda; quando te levantares, Senhor, tu os farás desaparecer. (Salmos 73.16-20)

Senhor, trata com bondade aos que fazem o bem, aos que têm coração íntegro. Mas aos que se desviam por caminhos tortuosos, o Senhor dará o castigo dos malfeitores. Haja paz em Israel! (Salmos 125.4-5)

Por outro lado, em diversas ocasiões Deus falou por intermédio dos profetas que não intencionava destruir aqueles que os homens queriam destruídos:

Teria Eu algum prazer na morte do ímpio? Pelo contrário, acaso não me agrada vê-lo desviar-se dos seus caminhos e viver? (Ezequiel 18.23)

Ao invés disso (e para exclamação geral), Deus descarregou sua fúria diversas vezes sobre Seu povo, arruinou cidades, afogou o mundo todo, mandou exércitos destruidores para tomarem as terras e escravizar, mas aos quais caberiam ameaças e profecias de destruição também acaso não atentassem para seu papel menor de “co-participantes”. Talvez Deus prefira fustigar os acreditam Nele, o que seria muito curioso, pois que isso tende (em se tratando de pessoas) a fazê-los mudar para o lado mais sossegado da coisa.

Entre os escritos de sabedoria que os sábios de Salomão deixaram, eis que temos uma chave para entender (ou cogitar) o que se passa na cabeça de Deus:

Discipline seu filho, pois nisso há esperança; não queiras a morte dele. O homem de gênio difícil precisa do castigo; se você o poupar, terá que poupá-lo de novo. (Provérbios 19.18-19)

Mas como assim, então estariam os seguidores de Deus sujeitos à sua vara e cajado? O profeta Isaías ousou repetir em outros termos a fórmula acima:

A vereda do justo é plana; Tu, que és reto, torna suave o caminho do justo. … Ainda que se tenha compaixão do ímpio, ele não aprenderá a justiça; na terra da retidão ele age perversamente, e não vê a majestade do Senhor. (Isaías 26.7-10)

E se considerarmos a visão de João em Patmos como um prenúncio do evangelho, lá vem de novo o mesmo recado insólito:

Eu [o Senhor] repreendo e disciplino aqueles que eu amo. Por isso, seja diligente e arrependa-se. Eis que estou à porta e bato. Se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei e cearei com ele, e ele comigo. (Apocalipse 3.19-20)

Entendamos bem que abrir a porta, aqui, é para alguém que chega com a vara na mão! O que levaria alguém a querer tal coisa? Pensando no imediato, nada. Ou talvez a fé que Ele traz algo maior consigo, o ensino de algo que Ele considera direito, bom e justo… mas nós não. Algo que Ele estranhamente chega trazendo sob a capa (e com a vara pronta para bater) para ser oferecido àqueles que Lhe abrirem a porta. Nada é mais assustador que a revelação de Naum - “O SENHOR é bom, um refúgio em tempos de angústia. Ele protege os que nele confiam (Naum 1.7)” - se tivermos em mente que a avalanche chegando é obra Dele próprio. Sobre quem ela virá? Todos, mas especialmente sobre os filhos, a quem Ele próprio assegura proteção, uma arca, um refúgio, uma fortaleza, casa sobre a rocha.

A CORDA NA HORA DA TORMENTA

Talvez um dos pontos mais fundamentais de Deus em sua ameaçadora oferta seja a necessidade da fé em Sua proteção. As alternativas são estarrecedoras:

O nome do Senhor é uma torre forte; os justos correm para ela e estão seguros. Já a riqueza dos ricos é a sua cidade fortificada, eles a imaginam como um muro que é impossível escalar. Antes da sua queda o coração do homem se envaidece, mas a humildade antecede a honra. (Provérbios 18.10-12)

Por fazerem o meu povo desviar-se … Virá chuva torrencial, e derramarei chuva de pedra, e rajarão ventos violentos. Quando o muro desabar, o povo lhes perguntará: "Onde está a caiação que vocês fizeram?” (Ezequiel 13.10-12)

Maldito é o homem que confia nos homens, que faz da humanidade mortal a sua força, mas cujo coração se afasta do Senhor. Ele será como um arbusto no deserto; não verá quando vier algum bem. Habitará nos lugares áridos do deserto, numa terra salgada onde não vive ninguém. (Jeremias 17.5-6)

Atualmente, a maior fortaleza humana é sem dúvida o dinheiro. Nós vemos e acreditamos que os ricos e poderosos são mais resistentes, mais amparados, mais bonitos, mais legais e menos sujeitos às agruras [de Deus] que os mortais com quem trombamos nas ruas. Salomão encontrou um reino fortificado, organizado, rico e invejável. Em meio à sabedoria que ganhou, ele manteve-se fiel ao Senhor. No entanto, até ele tombou à tentação de mulheres, paz e reinos (que trazia junto a frouxidão moral e culto aos deuses estrangeiros).

Nos tempos de Jesus, seu primo João Batista (talvez o único a quem Jesus se referiu sempre com os mais esmerados elogios) encontrou uma saída curiosa a esse dilema: desprezar todos os prazeres humanos, comendo insetos e mel no deserto, dormindo sob o vento, ficando à parte das cidades como profeta para Deus não tivesse nada que lhe tirar, exceto a liberdade e a vida. Jesus, como representante do Mais Alto, contudo, de certa forma riu-se de João e não teve como acompanhá-lo, chegando até a ser questionado por dois discípulos de João (talvez um deles o André que veio a segui-lo).

SIMPLESMENTE JESUS

Para o rabi de Nazaré, ser rico e ganancioso não era conduta especialmente corrupta ou perversa - estava mais para o imbecil. Porque, ele ousava argumentar, correr atrás do material impedia justamente de desfrutá-lo. O mais rastaquera lírio do campo ostentava guarda-roupa mais exuberante que o de Salomão; pássaros banqueteavam-se com mais gosto que Herodes. Diria Ele talvez que um pão de queijo no pé da serra desbancasse o mais irretocável boeuf bourguignon, que uma caminhada ao lado de quem se ama sobrepuja o banco do passageiro vazio de uma Ferrari e um pé descalço é mais feliz do que o que calça Mr. Cat. Talvez dissesse isso em rede nacional.

A ganância é idolatria porque é essencialmente mentirosa - promete segurança e poder quando quando ambos são derramados sem qualquer pré-requisito por Deus. O mundo de Jesus é seguro não porque os cofres e celeiros estão cheios, mas porque Deus é Pai. A ganância é mentirosa porque promete embalar e entregar, a seu preço, aquilo que Deus dá de graça.

Jesus, enfim, propôs o grande paradoxo de desfrutar sem possuir. Tomando Sua vida de olhar os lírios do campo, jantar em várias casas, distribuir peixes e pães, copos de vinho (e odres inteiros, se a festa fosse pra valer), banquetes com fariseus e publicanos, onde mais feliz que o convidado só o anfitrião, era preciso não viver para a riqueza no sentido de não viver por ela em sentido algum. Não cobiçá-la como o jovem rico e nem maldizê-la como João Batista, mas viver sem que ela faça diferença. Ele propunha fazer uso descarado do que Deus lhe deu, e dar a César só a ninharia que é de César.

Talvez dançar na chuva não seja má idéia, nem dormir num barco embalado pelas ondas de uma tempestade.

"Porque ele me ama, eu o resgatarei; eu o protegerei, pois conhece o meu nome. Ele clamará a mim, e eu lhe darei resposta, e na adversidade estarei com ele; vou livrá-lo e cobri-lo de honra. Vida longa eu lhe darei, e lhe mostrarei a minha salvação." (Salmo 91.14-16).

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PODE ATÉ CULPAR DESSES AÍ

J. B. Phillips - Questions about the New Testament - Morte dos apóstolos
Bispo Salomão, The Book of the Bee, 1222, tradução de Earnest A. Wallis Budge.
Paulo Brabo - Em 6 passos o que faria Jesus, Ed. Garimpo, 2009

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