domingo, 13 de novembro de 2011

A dúvida de João


Um ótimo texto copiado com esmero do Alex Carrari por causa de um surto inato de falta de criatividade. Por excesso de ativismo e inquietação, entretanto, esse texto foi mastigado, roído, esculpido e escarrado. Desculpem o mal jeito.

Parece insensato, provocante, mero capricho, mas tenho que dizer; nesse caso, acho que fé, ou isso que chamamos fé, não existe. Caso exista, João Batista é o mais infeliz dos homens, pois, francamente – e não sem amargura – desconfia de suas próprias e certeiras previsões. Forçar o coração a admitir como verdadeiro isso ou aquilo, e como falso o que não seja isso ou aquilo, é o que frequentemente classificamos como fé, mas que não faz qualquer sentido. Para no caso desse resistente herói das desérticas paragens, a fé não existir, é preciso que haja um sentimento tão elevado quanto, que preencha esse vácuo cheio das impressões do desamparo, que pode inclusive matá-lo por inanição espiritual – e ele sabe disso.

João encontrara antes aquele a quem ele chamara o Cordeiro de Deus, e teve a honra de batizar com água aquele que batizaria o mundo com fogo, sendo chamado por Ele mesmo como o maior no mundo dos homens.

Lc 3.19-22. Sendo, porém, o tetrarca Herodes repreendido por ele por causa de Herodias, mulher de seu irmão Filipe, e por todas as maldades que Herodes tinha feito, acrescentou a todas as outras ainda esta, a de encerrar João num cárcere.
E aconteceu que, como todo o povo se batizava, sendo batizado também Jesus. Orando ele, o céu se abriu, e o Espírito Santo desceu sobre ele em forma corpórea, como pomba; e ouviu-se uma voz do céu, que dizia: Tu és o meu Filho amado, em ti me comprazo. 

Enquanto a Galiléia celebrava a chegada do amado de Deus, o afamado filho de Davi, em sua prisão de Maqueronte¹, João, o triste João, esgotava-se entre quiméricas esperas e refreados anseios. Os ecos do sucesso daquele que pouco tempo atrás estivera se encurvando diante de si nas corredeiras do Jordão, e que ele próprio apontara publicamente como “o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”, chegaram até ele. Junto desses ecos a desconfiança, não de que ele talvez não fosse, mas de que, podia ser que fosse “o que há de vir”. Querendo saber da veracidade das coisas que ouviu que davam conta de que o Messias anunciado pelos profetas, o que resgataria Israel, havia chegado e que este poderia ser Jesus “o Cordeiro”, deu missão a dois membros de sua seita. 

Lc 7.16-20. E de todos se apoderou o temor, e glorificavam a Deus, dizendo: Um grande profeta se levantou entre nós, e Deus visitou o seu povo. E correu dele esta fama por toda a Judéia e por toda a terra circunvizinha. E os discípulos de João anunciaram-lhe todas estas coisas. E João, chamando dois dos seus discípulos, enviou-os a Jesus, dizendo: És tu aquele que havia de vir, ou esperamos outro? E, quando aqueles homens chegaram junto dele, disseram: João o Batista enviou-nos a perguntar-te: És tu aquele que havia de vir, ou esperamos outro?

No auge de sua fama, desempenhando feitos notáveis, Jesus é achado pelos dois discípulos, que ao notarem o ar de festa em torno dele, ficaram deslocados e surpreendidos. Acostumados a uma vida de rígido ascetismo, jejuns, orações, purificações, os dois encontraram um Galileu assíduo freqüentador de festas, que agradava seus ouvidos com boa música, seus pés com danças e o estômago com boa comida e os melhores vinhos. Na hora oportuna transmitiram a mensagem de seu mestre: “Tu és o que há de vir? Devemos aguardar outro?" Jesus, que a essa altura compreendia sem hesitação seu papel de Messias, não deu resposta categórica, porém, convocou o confuso profeta a fazer uma avaliação dos feitos que, em seu entendimento, assinalam a chegada do Reino de Deus entre os homens, pondo em ordem suas obras, seu indiscutível desempenho; cegos vendo, coxos andando, leprosos sendo purificados, surdos ouvindo, mortos ressuscitando, e pobres recebendo o evangelho.

Alguém que ouviu essa conversa escreveu alguns anos depois que Jesus acrescentou: “Esta é a resposta que ele não espera, mas que devem levar ao mestre de vocês”. E delicadamente envia à João também uma aguda advertência: “Bem-aventurado é aquele que não encontra em mim motivo de tropeço”.

Se o recado chegou aos ouvidos de João a tempo antes de ser executado ninguém sabe. Se chegou, não temos qualquer indicio de sua reação. Teria ele morrido consolado com certeza de que acertara quando da indicação do “Cordeiro de Deus” à beira do Jordão? Quando a espada mirada na nuca e a bandeja no peito estavam para selar seu destino, teria ele se tranqüilizado, certo de que aquele a respeito de quem ele sentenciou “o que há de vir”, realmente veio? Ou teria conservado suas dúvidas sobre a missão de Jesus, morrendo inquieto na indômita solidão da suspeita, ansioso, querendo crer?

Como pode esse mensageiro, que era ninguém menos que Elias ressuscitado – segundo uma crença bastante difundida² – titubear depois de uma assertiva palavra a respeito de Jesus, e este Jesus agora se converter em fonte de suas preocupadas desconfianças?

Sugiro uma saída, e acho que, talvez, pode ter sido essa a única via transitável disponível para João não tombar de vez, cedendo à total descrença. Parafraseando Rilke; e se esse não foi o momento para compreender seu próprio desconsolo e ao mesmo tempo começar a mais valiosa e autêntica produtividade religiosa que, a bem da verdade, não tem em si mesma a capacidade de levar ao consolo, mas à honesta envergadura de dispensar todo e qualquer consolo?

Para, no caso de João a fé não existir, o que existe é o amor.

Tendo ficado marcado na lenda cristã, como foi na realidade, o austero indireitador das veredas, o melancólico pregador de obrigatórias penitências, Jpão morre sem ver esse Reino que anunciara com tanta audácia, arrebatado de paixão. Esse gigante das origens cristãs, comedor de gafanhotos e mel silvestre, despossuído de todos os luxos, esse bruto justiceiro foi, nas palavras de Ernest Renan, “o absinto que preparou os lábios para a doçura do reino de Deus, o degolado de Herodíades que inaugurou a era dos mártires cristãos; sendo a primeira vítima e testemunha de uma nova consciência” ³

Quem se investe da nova consciência dispensa as muitas concretizações, desobriga-se do cumprimento de certas esperanças, pode morrer desconsolado, sustentado somente pelo desejo de crer. João se arrisca a morrer na mais absoluta decepção, caso Jesus não fosse “o que há de vir”. Mesmo assim quer saber se ele é o tão aguardado libertador, ou deve ainda esperar outro. Melhor afundar em rude decepção do que mornar na branda ilusão. João não espera absolutamente o pior, nem o melhor, ele puramente quer crer, “porque aquele que espera sempre o melhor envelhece na decepção e o que aguarda sempre o pior mais depressa se gasta, mas o que crê conserva eterna juventude” [4].

Na prisão, no caso de a fé de João não existir e só existir o amor como propus, o que o conserva é um pressentimento acerca de um desconhecido, como tantos outros, que pede para ser por ele batizado, que antes disso já ouvira de sua própria boca: eis o Cordeiro de Deus... Não pela fé que desaparece quando mais deveria transbordar, mas, pelo amor que o levou a predizer o futuro daquele que seria chamado Filho de Deus, de quem se achou indigno de levar as sandálias, declarando que este que estava para vir, era maior que ele. Por ter se colocado acima do amor-próprio, esse áspero profeta é o mais honorável representante das origens cristãs; dos nascidos de mulher é o maior, declara inexplicavelmente Jesus, não fazendo mais caso de suas ofensivas dúvidas, porque sem amor ninguém nada é. Jesus mesmo predisse que quem deseja entrar no Reino dos Céus deve ser como criança. Uma interpretação possível é que isso signifique simplesmente DESEJOSO DE CONHECER, o oposto de SOBERBO em seu próprio entendimento.

1Co 13.1-3. Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine. E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria. E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria. 

João se esquece da esperança, suspeita da fé, porém, protege sua alma no amor, que desses três sentimentos é o maior. Só o amor tem a potência de fazer alguém querer crer, mesmo contra todas as provas circunstanciais.

1Co 13.13. Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior destes é o amor. 

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¹ Muitos fatos como esse não são mencionados na Bíblia, mas são contados pelo historiador romano Flávio Josefo, contemporâneo de João Batista e de Jesus, que narra também a derrota do exercito de Herodes na fronteira da Nabateia, pelo rei Aretas IV. Flávio Josefo refere também que o povo se reunia em grande número para ouvir João Baptista, e Herodes temeu que João pudesse liderar uma rebelião, mandando-o prender na prisão de Maqueronte, antes de matá-lo.

² Muitos Judeus acreditavam na reencarnação dos profetas. Alguns por isso achavam que João Batista era a reencarnação de Elias, outros depois creditaram esse título a Jesus. O próprio Senhor questionava seus discípulos sobre tais crenças comuns entre o povo "Quem dizeis que sou?", ou "Quem dizeis ser o Filho do Homem?". Hoje, os Espíritas preservam esse tipo de crença, creditando a João Batista ser uma reencarnação do profeta Elias.

³ ERNEST RENAN, Vida de Jesus.

[4] SÖREN KIERKEGAARD, Temor e Tremor

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