quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Nostalgia


Esse texto abaixo, do Paulo Brabo, chamava-se "A ansiedade das coisas".
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Em tempos mais sãos do que o nosso, um homem começava a sentir nostalgia quando estava avançado na terceira idade, entrevendo já a última curva da vida. Hoje em dia a nostalgia é motivo de ansiedade para todos, democraticamente; até mesmo os adolescentes, garantem-me, tem já saudades sentidas e irresistíveis dos tempos idos da infância.

Não é na verdade coisa de se admirar, porque em tempos de mudança acelerada como o nosso muita coisa pode mudar nos três ou quatro anos informes que separam a adolescência da infância. Nostalgia é o clamor por pontos de referência que não existem mais, e na vertigem do século, inúmeras referências perdem-se, transformam-se ou são substituídas em um ano ou dois, às vezes menos.

Um adolescente pode olhar ao redor e constatar lucidamente que os programas de televisão são outros, o tipo aprovado de música é outro; os brinquedos, os filmes, os heróis – que tudo mudou desde a sua infância recente, pela qual passa a sangrar de nostalgia tão sincera quanto precoce. O mesmo é ainda mais válido para quem passou dos vinte ou trinta anos de idade; quem sobrevive vinte anos num mundo de mudança vertiginosa como o nosso é obrigado a encarar que a realidade mudou tanto a ponto de se tornar meramente reconhecível. Os pontos de referência ruíram, o vento levou, o gato comeu, e a mudança torna-se motivo de ansiedade, a velhice chega antes do meio da vida e a nostalgia consome e oprime.

O motivo desta nota é lembrar, com inevitável nostalgia, dos tempos em que não era assim. Houve tempo em que o mundo girava sem se fazer notar e as manchas solares não causavam perturbação maior. As pessoas, conta-se, paravam para conversar e comer. Faziam coisas insensatas como serenatas e bilboquês. Nesta galáxia distante de que estou falando, os seres humanos eram tão pouco materialistas que podiam dar-se ao luxo de apegar-se a coisas e, para que não tivessem que se preocupar muito com elas, as coisas eram feitas para durar.

Com cinqüenta anos de idade um homem ganhava o relógio ou o violino do avô, e orgulhava-se de poder colocá-los em uso imediato; com setenta anos, o sujeito usava ainda a caneta ou o serrote que tinha sido do seu pai. Coisas como bengalas, máquinas de escrever, escrivaninhas e panelas, abridores de cartas e até mesmo roupas tinham a sua utilidade prolongada por gerações. Os mecanismos eram menos complexos e as coisas podiam ser eficazmente consertadas. As pessoas lubrificavam as coisas, trocavam seus cabos, lixavam e poliam.

Como não saltavam na nossa cara exigindo serem trocadas, as coisas tinham um status menor e não eram motivo de ansiedade. Como sobreviviam às pessoas, algumas coisas transcendiam a sua condição e ficavam para sempre ligadas a um ser humano em particular: as pessoas acenavam com “o facão do meu bisavô”, “a poltrona da minha avó”.

Hoje em dia, e sem qualquer hipérbole necessária, um sujeito de vinte anos já perdeu a conta de quantas vezes trocou de modelo de telefone celular: o seu próprio telefone celular. Salvo como curiosidade, nada sobrevive a uma geração; nada com mais de dez anos é concebivelmente útil.

O paradoxo é que, como tudo que está disponível é tão irreversivelmente novo, tudo torna-se obrigatória e imediatamente velho. Mais do que nossos bem-intencionados avós poderiam imaginar, a abundância do novo deixou-nos cercados de coisas invariavelmente velhas e envelheceram as nossas almas. Das velhas fotografias, eles nos olham com peles e olhos mais jovens do que jamais chegaremos a ter.
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O Brabo fala de uma ansiedade DAS COISAS, que QUEREM ser trocadas. Para os instrumentos de trabalho, talvez sempre tenha sido assim, porém numa escala de oferta bem mais alargada no tempo. Faz alguns anos que estamos no ano mais rápido dos nossos tempos, em se falando de tecnologia. No entanto as  pessoas, cremos nós, não se renovam assim tão rápido.

O filósofo de ciência Thomas Kuhn defendia que um paradigma (ou seja, a imagem mental que nós fazemos do mundo) só muda quando as pessoas educadas nele morrem. Eu entendo disso que a nossa mudança dificilmente poderia ser tão rápida quanto a tecnologia e, eu mesmo me pego assombrado com a facilidade das gerações mais novas em substituir suas tecnologias e, inevitavelmente, seus gostos. Há uma velocidade humana que talvez não tenha mudado nessa rapidez toda e vai fazer você também se admirar das outras gerações, alguma hora.

Esse descompasso talvez tenha uma ligação séria com nossa falha em interagir com as novas gerações. Não podemos ser tão rápidos nos jogos que eles gostam, porque os nossos jogos eram inegavelmente mais lentos e simplificados. Não podemos entender uma forma de ler que não condiz com aquele velho folhear dos livros. Para nós, isso leva à falha em ensinar-lhes o nosso comportamento, que somos sisudos em dizer que é o certo - na verdade, é só o que temos. Para eles, oferecemos poucos atrativos em termos de ensino. E, porque essa velocidade de renovação aumentou, também oferecemos bem menos atrativos que nos foram oferecidos noutro tempo. Junto com a ansiedade das coisas, vem a frustração dos homens e o abandono dos garotos.

Um dia, um amigo me perguntou: será que não estamos andando rápido demais? Se isso prejudica que as novas gerações sejam como nós, certamente talvez. Se isso força elas a aprenderem por si mesmas mais do que nós aprendemos por nós mesmos, é certo que estamos perdidos. Em verdade eu vos digo que poucos de nós - desse nosso paradigma antigo - acham motivo nas suas ações que possam ser úteis às outras gerações. As coisas QUEREM ser trocadas, mas isso só importa porque nós é quem QUEREMOS trocar elas. Catastroficamente, nós somos diferentes das nossas próprias coisas: ansiamos por NÃO sermos trocados.

A lógica disso é que nossa única saída está em sermos desvinculados das coisas o quanto possamos. Que nunca nos confundamos com elas! Como no texto, usamos ferramentas dos nossos pais que eram úteis, e nossos pais podiam se dar a facilidade de confundir-se com esses objetos que eles sabiam manusear bem. Hoje, o facão do avô foi trocado por uma calculadora com gráficos 3D, depois por um iPad, depois por um iPhone 2, que ao vovô soa como mágica desconhecida e que qualquer um da nova geração aprende a manusear sozinho muito rápido. Bem mais rápido do que vovô aprendeu a usar o facão. Vinculado ao facão, vovô virou nostalgia.

Quem tem mais de 30 anos está numa geração que necessita desse desapego às antigas funções. Nossa sobrevivência funcional dependerá do que possamos ensinar sobre aquilo que ainda resta do outro tempo, tendo sido ensinados por quem folgava se baseando nas coisas. Quem sabe isso explica porque, hoje, tanto se fala sobre religião e tantas crenças afloram em tantas cabeças (mas certamente não além disso, pelo que eu sei). Por terem sobrevivido ao muito tempo, as religiões dizem ser extratemporais o suficiente para se agarrem aqueles que são mais lentos que o tempo, e que querem continuar funcionais. E são tão mais atrativas quanto forem antigas! Como cristão, sou levado a buscar respostas na Bíblia para problemas típicos do confronto das gerações mais atuais, crendo que um Deus inspirador de tantas histórias dê ao Seu livro a invulnerabilidade ao tempo necessária para isso.

Lá do fundo, minha razão grita para Deus: isso é possível? Que Ele nos ajude respondendo que sim.

Fabrizio

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