“Todo homem carrega no peito um vazio do tamanho de Deus”, escreveu Dostoiévski.
Certo dia, pensando, deparei com um significado perverso dessa frase, mas que não deixa de ser real: nós esperamos/exigimos que Deus nos complete. Quem tem fome, vê em Deus aquele que lhe dará comida - sem comida, sem Deus. Quem aprendeu a conviver com um pai severo, vê em Deus aquele que lhe completará com a severidade que ele não acha na ausência do pai. Quem sente-se culpado por fazer algo, vê em Deus aquele que lhe tira a culpa (muito útil em algumas situações que eu não gostaria que vocês soubessem) ou que justifica essa culpa. Quem não identifica a origem da culpa, por definição essa origem é Deus. Aquele que presencia uma violência, olha para o céu e procura o Deus que parará aquilo ou que ameaçará o violento de alguma forma que ele mesmo se julga incapaz de fazer. Onde está o Deus que dá comida, que exige com severidade, que perdoa os erros que vamos propositadamente fazer, que castiga os erros que fizemos despropositadamente, que desarma o ladrão, que apavora os violentos?
Muitas vezes não achamos esse Deus Meu, e nos questionamos se Ele (o Deus Verdadeiro) existe mesmo. Mas parece que são dois seres! Deus diz a Isaías que os ídolos são assim: nada fazem, nada dizem, nada vêem, nada sabem. Será que esse Deus do qual temos conhecimento (pois se nos é interior, se está encaixado no buraco de nosso peito) não é simplesmente um ídolo? Jesus fez o possível para escapar desse buraco-no-peito onde tentaram enfiá-lo: andou com os excluídos da sociedade, mostrou amor especial por aqueles que desobedeciam a sua doutrina, sujeitou-se a sofrer perante um poder político não-reconhecido; ao mesmo tempo afirmava intimidade com o Deus soberano. Jesus não quis ser aplaudido por ninguém, mas queria que todos o conhecessem. Era algo de dar nó nas cabeças dos judeus de ontem, de hoje, de todas as religiões. Até mudar o nome das pessoas ele mudou. Ele simplesmente recusou os lugar onde os homens tentaram colocá-lo.
Se você perguntar a muitas pessoas sobre como elas pensam que é a personalidade de Deus, certamente terá respostas variadíssimas. Ensine-as a ler a Bíblia, e mesmo assim haverão tantas quanto as igrejas cristãs, judias e islâmicas no mundo. Cada um dá ao que lê seu significado próprio... não haveria como ser diferente. De um modo ou de outro, tentamos enfiar Deus no nosso buraco-no-peito quando grifamos aquela passagem que mais nos inspira, deixando as outras entregues ao “quase” esquecimento. Tentamos extrair da Bíblia ou do líder religioso o Deus Meu, pois não nos contentamos com outro: falhando nisso, mudamos de igreja, ficamos com o Deus Meu em casa mesmo.
Há diversas vantagens no Deus Meu que não estão no Deus Verdadeiro. O Deus Meu é controlável: ele se lembra de me punir ou exaltar quando eu me lembro disso, e faz sempre de forma que eu veja; ele também é da minha intimidade: eu sei dizer exatamente o que mais lhe desagrada ou agrada. Portanto, é alguém em quem eu confio. Confiar no Deus Verdadeiro é bem mais difícil, pois Ele pode virar o rosto quando você Lhe oferecer algo (Jr 14.12, Is 59.1-2), ele pode te punir ou ajudar de formas que você jamais saberá (Jó 24, Jr 5.1-5), é um Deus que você pode ficar sem conhecer, se não distinguir O Caminho que Jesus afirmou ser Ele próprio (Jo 1.18, Jo 14.6). É preciso verdadeira fé para confiar nesse Deus Verdadeiro, bem mais desconhecido de nós do que o Concorrente (Ez 33.17).
Seria muito fácil dizer a alguém para abandonar o Deus Meu em troca do Deus Verdadeiro. Jesus recriminava os ricos e fariseus por terem dificuldade de fazê-lo. Mas isso significa, realmente, seguir um Deus que não preenche o peito. é um Deus que pode deixar com fome, permitir a violência, o sofrimento, não te dar suporte psicológico nessa pessoa que você é. Os amigos de Jó se reuniram para entender o Deus Verdadeiro, e terminaram corrigidos por Ele. Numa visão simplista, é um Deus que não se importa com você. Mas então, porque tantas intervenções na história, porque tanta insistência conosco?
Jeremias fala de um povo que desconhece o Senhor. Setecentos anos mais tarde, Lucas relata Jesus contando sobre um Reino de Deus que cresce e vem entre as pessoas, em auxílio dos enfermos até, sem ser muito visível aos homens. Nós realmente não vemos o Deus Verdadeiro e Seu Reino porque Ele não é o Deus Meu. Vemos a parte dele que se assemelha ao Deus Meu, e só*.
Jesus coloca uma necessidade interessante a Nicodemos, um líder entre os fariseus. Ele diz que é necessário ao espírito do homem nascer de novo da água e do Espírito, para que veja o Reino de Deus. Nascer da água significa o batismo - mesmo Jesus foi batizado. Todo homem pode querer o batismo e ser batizado. Nascer do Espírito, por outro lado, significa literalmente que “Deus precisa chamar o teu nome”. É mais ou menos ou menos como sentar no banco de uma repartição pública e esperar bastante para ser chamado, sem que haja um ordem ou fila para isso. Você já foi até lá (isso é o batismo), mas não resolverá nada sozinho. Paulo fala aos coríntios que você pode ir ajudar os enfermos, dar sua fortuna e se sacrificar sem que isso nada valha (1Co 13). Por outro lado, João escreveu uma carta às igrejas de Éfeso salientando que o amor é uma qualidade do Deus Verdadeiro que aparece nas pessoas que O conhecem (1Jo 4.8). Realmente, não pode alguém gerar amor em si.
Os frutos do Espírito sobre os quais Paulo fala em Gl 5.22 não seriam “do Espírito” se pudessem ser produzidos por nós mesmos. Podem, claro, ser falsificados perante os olhos mais espertos (e talvez você mesmo julgue errado vê-los nos outros). Podem (e são) falsificados em nós até com algumas justificativas que aplaquem o Deus Meu.
“Eu sou bom. Dou tudo o que ele precisa. Me enche a paciência e torra os nervos fazer isso, mas eu faço. E ninguém retribui.”
Os fariseus eram hábeis em maquiar-se de bons! Mas esses frutos não podem ser Verdadeiros se não forem produzidos pelo Deus Verdadeiro. Jesus falou que o Espírito gera seus filhos como um vento: onde quer, sem que ninguém saiba onde ele vai (Jo 3.8). Eis a medida da nossa submissão necessária ao Deus Verdadeiro e que não temos pelo Deus Meu: precisamos orar para que Ele nos chame, ainda que Ele tenha pregado uma placa bem grande dizendo que nos quer em Seu Reino (Jo 3.14). Como o filho pródigo (Lc 15), o Pai já nos perdoou e nos quer, mas não temos direito de entrar em sua propriedade, e os próprios irmãos nos repelem com a justiça.
Você sabe que Deus chamou o seu nome quando vê nascer os frutos do Espírito em si. Até lá, esperemos no banco e oremos, pois o Deus Verdadeiro não se molda em nossos corações. Antes, podemos pedir que Ele de Sua própria vontade molde o nosso coração a Si, para que possamos ver Seu Reino*.
Olhe para você mesmo. Talvez Ele esteja fazendo isso, nesse exato momento.
Fabrizio
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*S. Freud, B.F. Skinner e mesmo R. Dawkins discursaram muito acertadamente sobre o universo próprio que nós construímos em nossas mentes. Ele não é o universo real, mas é um desenho dele feito por nós mesmos. Por estranho que pareça, é nesse desenho certo ou errado (e não no universo real) que baseamos os nossos pensamentos.
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