domingo, 3 de abril de 2011

O Segundo Alencar


Morreu o outro José de Alencar. O primeiro deles, o "Martinho", morreu em dezembro de 1877. Foi grande escritor, dramaturgo, deixou como descendentes Iracema (a virgem dos lábios de mel), Aurélia Camargo (um ícone do feminismo do século 19) e vários índios guaranis. É lembrado sempre pelos estudantes e amantes de literatura nacional. O segundo Alencar morreu em março de 2011. Foi comerciante, empresário e político. Sempre por detrás das cortinas, o povo pouco sabe o que ele fez em vida e, quando a imprensa parar de repetir a notícia de sua morte, talvez poucos se lembrem dele.

Esse 2º Alencar teve uma vida que não aparece nos livros, mas que muitos invejam. Nasceu em cidade pequena, ajudou o pai em seu negócio, revelou tino para as vendas e, de pouco em pouco, chegou a possuir uma grande loja de variedades (A Queimadeira), depois uma fábrica de macarrão e finalmente a Coteminas, gigante nacional dos tecidos e roupas. Liderou uma organização das indústrias e daí virou político, assumindo ministérios e chegando até a vice-presidência. Não foi pouco: desde que assumiu seu último cargo, o 2º Alencar já não aparentava ter força física para substituir Lula regularmente. Mesmo assim, confiaram nele. Não digo que o 2º Alencar fosse santo: nem o 1º Alencar (que foi ministro de D. Pedro II) era. A Coteminas foi acusada de auxiliar no desvio de R$ 12 milhões pelo PT, na época do Mensalão. Em agosto de 2010, questionado pelo Jô Soares sobre a paternidade de Rosemary de Morais, disse que a mãe dela era prostituta e que ele [José Alencar] freqüentou muito as zonas de meretrício, quando jovem.

"Eu às vezes me sinto culpado porque há seis anos e três meses sou vice-presidente da República e não fiz nada pela Saúde. É verdade que vice não manda nada, e, quando a causa é boa, pede. E pede com empenho. Eu não estou habituado às coisas fáceis. Eu sempre me deparei na vida com problemas difíceis e nunca deixei de enfrentá-los."

"…imagino como o povo do Brasil sobrevive sem uma assistência e atendimento hospitalar adequado – se minhas condições financeiras fossem diferentes, eu já teria morrido há muito tempo."

O que se falou da vida (bem-sucedida) do 2º Alencar não chegou perto do quanto se falou da sua morte, desde que ela começou a dar as caras. Talvez só a doença de Tancredo Neves tenha aparecido tanto nos noticiários. Vítima de um câncer agressivo, o 2º Alencar quase sempre aparecia na TV sendo internado às pressas, todo mundo aguardando quando noticiariam seu falecimento, e então recebendo alta. Foram 17 repetições ao vivo dessa notícia, o povo brasileiro já estava acostumando com o Alencar entrando em estado grave e depois saindo do hospital comentando de futebol e do trabalho. Para nossa gente conhecedora dos hospitais para onde as pessoas vão e não voltam, ele já parecia o homem-de-ferro. Alencar era expert em driblar a doença mais temida de todos.

Oficialmente, era católico como o 1º Alencar. Extra-oficialmente, comentou-se que freqüentava a IURD. Quando teve chance de falar sobre Deus em público, o 2º Alencar impressionou os brasileiros com o que ficará gravado para sua posteridade:

"Estou preparado para a morte como nunca estive nos últimos tempos. A morte para mim hoje seria um prêmio. Tornei-me uma pessoa muito melhor. Isso não significa que tenha desistido de lutar pela vida."

"Ando um pouco e já me canso. Tenho consciência de que o quadro é, no mínimo, dificílimo - para não dizer impossível, sob o ponto de vista médico. Mas, como para Deus nada é impossível, estou entregue em Suas mãos."

"Está tudo ótimo: pressão, temperatura, coração e memória. Tenho apetite, inclusive - só não como torresmo porque não me servem. Faço o máximo de esforço para trabalhar normalmente. O trabalho me dá a sensação de cumprir com meu dever. Mas, às vezes, preciso de ajuda. Quando estou em uma reunião, por exemplo, digo que vou ao banheiro, chamo um enfermeiro e o que tem de ser feito é feito e pronto. Sem drama nenhum."

"Pensando bem, o sofrimento é enriquecedor... Um dia desses me disseram que, ao morrer, iria encontrar meu pai, falecido há mais de 50 anos. Aquilo me emocionou profundamente. Se for para me encontrar com mamãe e papai, quero morrer agora. A esperança de encontrar pessoas queridas é um alento muito grande - e uma grande razão para não ter medo do momento da morte."

"Eu costumo dizer que ninguém tem nada a ver com a câncer do Zé Alencar, mas todo mundo tem a ver com o câncer do vice-presidente da República. Isso é um fato, então eu tenho sido transparente. Eu não tenho medo da morte, eu já falei isso. Eu tenho certeza que vou morrer um dia, como todos nós temos. Mas, se Deus quiser me levar agora, Ele não precisa de câncer para isso. E se Ele não quiser que eu vá, não há câncer que me leve, e tudo indica que Ele não quer me levar agora."

Lembro do dia que vi essa última, na televisão. Entrevistado depois de muito apanhar do câncer, o 2º Alencar disse para todo mundo que confiava mais em Deus do que na doença. Usou a sinceridade dos idosos que falam verdades sem medo, falou para ser ouvido, disse que Deus o fazia um domador de monstros. Difícil é ter essa bravura, na boca do leão! Como a lembrança da sua vida ficou para a família e para os mais íntimos, que os ensinamentos de sua morte fiquem para o povo brasileiro.

Os que buscam a Deus não são santos. Ainda há quem nos ensine sobre Deus com seu exemplo.

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