domingo, 26 de abril de 2015

Game of Thrones versão bíblica - parte 1

As portas de Ishtar, em Babilônia

Nossa história começa em 627 a.C., no 13º ano do reinado de Josias em Judá, que recuperou as escrituras de Moisés. Nesse ano, o profeta Jeremias recebe o anúncio de uma destruição que viria sobre a cidade:

E veio a mim a palavra do Senhor segunda vez, dizendo: Que é que vês? E eu disse: Vejo uma panela a ferver, cuja face está para o lado do norte. E disse-me o Senhor: Do norte se descobrirá o mal sobre todos os habitantes da terra. Porque eis que eu convoco todas as famílias dos reinos do norte, diz o Senhor; e virão, e cada um porá o seu trono à entrada das portas de Jerusalém, e contra todos os seus muros em redor, e contra todas as cidades de Judá. (Jeremias 1.13-15)

Jeremias ainda teria muitos anos até ver a profecia se cumprir. Josias ficaria ao todo 31 anos no poder, até ser morto a flechadas numa batalha contra o faraó Neco II. Seu filho Jeoakim assumiria o trono pelos 11 anos seguintes. Quando Jeoakim morreu e seu filho Jeconias assumiu, ele logo viu os reinos do norte chegarem, como Jeremias havia previsto. Mas as profecias de Jeremias haviam colocado o profeta contra os nobres, que o mandaram prender.

Os caldeus vieram do norte, sob o comando de Nabucodonosor, Jerusalém foi tomada e seus mais renomados cidadãos foram levados para viver na cidade de Babilônia. Informado das previsões de Jeremias sobre sua chegada, Nabucodonosor ordenou que ele fosse solto e colocou-o em situação privilegiada:

Os babilônios incendiaram o palácio real e as casas do povo, e derrubaram os muros de Jerusalém. ... Mas Nabucodonosor, rei da Babilônia, deu ordens a respeito de Jeremias a Nebuzaradã, o comandante da guarda imperial: "Vá buscá-lo e cuide bem dele; não o maltrate, mas faça o que ele pedir". Então Nebuzaradã, o comandante da guarda imperial, Nebusazbã, um dos chefes dos oficiais, Nergal-Sarezer, um alto oficial, e todos os outros oficiais do rei da Babilônia mandaram tirar Jeremias do pátio da guarda e o entregaram a Gedalias, filho de Aicam, filho de Safã, para que o levasse à residência do governador. (Jeremias 39.8-14)

Nabucodonosor era um poderoso líder militar e atento ao que o faria comandar aquelas terras: ele voltou para Babilônia levando consigo nem tanto as riquezas de Jerusalém, mas carregou também Jeconias e os nobres, assim como os sábios do reino, dentre eles o profeta Jeremias. O rei de certa forma continuou rei, mas agora de um povo expatriado. Em Jerusalém, Zedekias, o irmão mais novo de Jeoakim, foi empossado rei de uma cidade roubada, subjugada e pagando impostos aos caldeus.

NABUCODONOSOR E OS CALDEUS

As terras dos caldeus ficavam entre os rios Trigre e Eufrates. Ao norte do Tigre, haviam contínuos conflitos com a Assíria (oeste), Média e a Pérsia (leste). Ao sul, em Canaã, havia um duelo de forças com o Egito. Os reinos entre o norte e o sul, como Judá e Israel, inevitavelmente ficavam mudando suas alianças políticas entre a Assíria e o Egito, respectivamente, de forma que o reino mais poderoso os protegesse do concorrente. Nesse período, Judá e Israel haviam estabelecido um pacto com a Assíria, de forma que eram inimigos do Egito.

Os caldeus eram aparentados com os medos e a relativa paz era garantida por casamentos entre a nobreza de ambos os reinos. Nabopolassar, rei dos caldeus, então quis tomar os territórios do Egito e mandou muitos soldados para o sul, onde travou-se uma batalha violenta com os exércitos do faraó Neco II, que foi derrotado sob o comando de seu filho. Após a guerra, o rei Josias morreu e Nabopolassar mesmo voltou ferido, morrendo pouco depois. Seu filho Nabucodonosor II assumiu os territórios conquistados pelo pai, enriquecendo sobremaneira o reino com impostos. Ele quebrou a submissão aos reinos do norte do Tigre e transformou a capital Babilônia, nas margens do Eufrates,  em uma cidade lindíssima, com os famosos jardins suspensos (construídos para sua esposa, princesa da Média) e enormes portais de pedra azul para a deusa Ishtar. Entre os territórios dos quais ele se ocupou estavam Israel e Judá.

Jeremias foi levado para Babilônia entre os primeiros cativos. Ao contrário dos assírios, seus concorrentes, a política babilônica era de anexação de terras, não de destruição. Os deportados até gozavam de grande liberdade em sua nova morada; com o tempo, a nova cidade também tornou-se tão próspera que, muito tempo depois, quando foram libertos, muitos judeus não quiseram retornar a Jerusalém.

Nabucodonosor, rei de Babilônia, levou em cativeiro a Jeconias, filho de Jeoiaquim, rei de Judá, e os príncipes de Judá, e os carpinteiros, e os ferreiros de Jerusalém, e os trouxe a babilônia. … Considero como esses figos bons os exilados de Judá, os quais expulsei deste lugar para a terra dos babilônios, a fim de fazer-lhes bem. Olharei favoravelmente para eles, e não os trarei de volta a esta terra. Eu os edificarei e não os derrubarei; eu os plantarei e não os arrancarei. Eu lhes darei coração capaz de conhecer-me e de saber que eu sou o Senhor. Serão o meu povo, e eu serei o seu Deus, pois eles se voltarão para mim de todo o coração. (Jeremias 24)

Oprimido pelos impostos dos caldeus, Zedekias refez as alianças com o Egito e organizou uma rebelião contra Nabucodonosor. Enfurecido, foi então que o rei caldeu enviou seus exércitos de volta a Jerusalém e arrasou a cidade, destruindo tudo o que podia, inclusive o Templo de Salomão. Todos os objetos valiosos da cidade, incluindo os objetos rituais do Templo, dessa vez foram levados para Babilônia. E a quase totalidade da população também foi levada, dessa vez para diversas grandes cidades do reino.

A cidade foi mantida sob cerco até o 11º ano do reinado de Zedequias. No 9º dia do 4º mês, a fome na cidade havia se tornado tão severa que não havia nada para o povo comer. Então o muro da cidade foi rompido, e todos os soldados fugiram de noite pela porta entre os dois muros próximos ao jardim do rei, embora os babilônios estivessem em torno da cidade. Fugiram na direção da Arabá, mas o exército babilônio perseguiu o rei e o alcançou nas planícies de Jericó. Todos os seus soldados o abandonaram, e ele foi capturado. Foi levado até o rei da Babilônia, em Ribla, onde pronunciaram a sentença contra ele. Executaram os filhos de Zedequias na sua frente; depois furaram seus olhos, prenderam-no com algemas de bronze e o levaram para a Babilônia. … O comandante Nebuzaradã levou a todos ao rei da Babilônia, em Ribla. Lá, em Ribla, na terra de Hamate, o rei mandou executar todos os nobres. (2ª Reis 25)

Zedequias permaneceu preso até sua morte. Nabucodonosor II reinou por 43 anos, transformando a capital Babilônia em uma jóia cercada por poderosos muros. Jeconias (ou Jeokim II) foi solto por Evil-Merodaque, sucessor de Nabucodonosor, e de prisioneiro que era, passou a gozar de grandes privilégios, sentando-se à mesa do novo rei dos caldeus.

Entre os novos deportados estavam Daniel e Ezequiel, na época, dois adolescentes. Daniel era membro da nobreza e foi educado para servir diretamente ao rei da Caldéia em seu palácio.

Então o rei [Nabucodonosor] ordenou que Aspenaz, o chefe dos oficiais da sua corte, trouxesse alguns dos israelitas da família real e da nobreza; jovens sem defeito físico, de boa aparência, cultos, inteligentes, que dominassem os vários campos do conhecimento e fossem capacitados para servir no palácio do rei. Ele devia ensinar-lhes a língua e a literatura dos babilônios.

O rei designou-lhes uma porção diária de comida e de vinho da própria mesa do rei. Eles receberiam um treinamento durante 3 anos, e depois disso passariam a servir o rei. Entre esses estavam alguns que vieram de Judá: Daniel, Hananias, Misael e Azarias. O chefe dos oficiais deu-lhes novos nomes: a Daniel deu o nome de Beltessazar; a Hananias, Sadraque; a Misael, Mesaque; e a Azarias, Abede-Nego. Daniel, contudo, decidiu não se tornar impuro com a comida e com o vinho do rei, e pediu ao chefe dos oficiais permissão para se abster deles. E Deus fez com que o homem fosse bondoso para com Daniel e tivesse simpatia por ele. (Daniel 1.3-9)

Em uma comunidade mais pobre estabelecida longe de Babilônia, num canal ligando duas partes do rio Eufrates,  próximo a terra natal de Abraão (Ur dos caldeus), foi morar o jovem Ezequiel.

Foi no 5º ano do exílio do rei Joaquim [Jeconias], no 5º dia do 4º mês. A palavra do Senhor veio ao sacerdote Ezequiel, filho de Buzi, junto ao rio Quebar, na terra dos caldeus. Ali a mão do Senhor esteve sobre ele. (Ezequiel 1.2-3)

Fui aos exilados que moravam em Tel-Abibe* [a 'montanha da primavera'], perto do rio Quebar. (Ezequiel 3.15)

GRANDES MUDANÇAS NO REINO

Nabucodonosor fortaleceu seu império através de grandes generais, e não foi surpreendente quando eles quiseram tomar parte do poder concedido ao soberano. O mesmo se deu com Alexandre da Macedônia e Júlio César, de Roma. Apenas um Jeremias já velho descreve a sucessão do trono de Nabucodonosor, mas Daniel viveu para descrever o governo de Dario da Média, que reinaria em Babilônia depois da queda dos caldeus.

Obviamente, Jeremias, já famoso entre a corte de Judá e levado na 1ª deportação, era um nome conhecido entre os exilados. Daniel fala sobre ele muito tempo depois:

Dario, filho de Xerxes, de origem meda, foi constituído governante do reino babilônio. No 1º ano do seu reinado, eu, Daniel, compreendi pelas Escrituras, conforme a palavra do Senhor dada ao profeta Jeremias, que a desolação de Jerusalém iria durar 70 anos. (Daniel 9.1-2)

O governo de Evil-Merodaque não pareceu tão forte quanto o do pai Nabucodonosor, e isso foi desculpa para que uma conspiração se formasse entre os militares caldeus. O historiador Berosus descreve ainda que Evil-Merodaque violava as leis do reino. Ele acabou assassinado por seu cunhado Neriglissoorus, apenas 2 anos após sentar-se no trono. O usurpador também morreu de causas misteriosas 4 anos depois, deixando o trono ao seu filho Laborosoarchodus, então uma criança.

Em meio à turbulência que transparecia a fraqueza política no governo da Caldéia, o pequeno rei foi vítima de uma revolta organizada e executado 9 meses depois de coroado. Um novo usurpador, Nabonidus, chefe dos revoltosos, assumiu o trono. Em menos de 7 anos após a morte de Nabucodonosor II, outra dinastia se iniciava e os judeus exilados se deparavam com um rei tão político como Nabucodonosor (a ponto de ser confundido com ele), que manteve as boas relações com os povos exilados e se tornou propagador de polêmicas reformas religiosas na Caldéia.

--------------------------------
* A cidade israelense de Tel Aviv fica na costa do Mediterrâneo, muito longe do rio Eufrates. Ela foi fundada em 1909 e recebeu seu nome como homenagem à cidade citada pelo profeta Ezekiel, onde viviam os deportados israelitas.


LEIA O PASSADO

Constable TL, Notes on Ezekiel, 2015 edition
Cory IP, Ancient Fragments, 1832, Berosus from Josephus
Daniel (biblical figure) - wikipedia
Kings of Judah - wikipedia
List of kings of Persia - wikipedia
Nebuchadnezzar II - wikipedia

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe um comentário!