terça-feira, 12 de julho de 2011

Abortando a família


texto de Lélia Almeida

Hoje eu sei que o medo é frio. Como que metálico. Como devem ser os trilhos por onde deslizava o trem que levava as mulheres da família para fazer o procedimento do outro lado da linha divisória, na fronteira. O procedimento sempre se faz longe de casa, que é pra não se deixar pistas. É assim desde que o mundo é mundo. E não vai mudar. Voltaram sempre quebradas, todas elas, o corpo dobrado no movimento desencontrado da cólica de um caracol vazio, as almas secas. É assim que todas sentem, hoje sei, embora não se fale muito no assunto. É frio, eu dizia, o medo. É gelado. Como os trilhos que são como os objetos cortantes usados no procedimento.

Quando acordei vi um crucifixo na parede branca e cheguei a pensar que estava no céu. Uma freira se aproximou, me alcançou um absorvente, disse que eu podia ir e que a receita estava dentro da minha mochila. Desejou-me boa sorte. O ferro da cama antiga e os objetos cortantes, os trilhos, o medo é frio e metálico.

Minha amiga me esperava dentro do carro. Abriu a porta com cuidado e me ajudou a sentar e a colocar o cinto. Quando a casa ficou para trás eu disse que assim que eu tivesse o dinheiro... Ela respondeu que eu não me preocupasse, a gente sempre faz isso por alguém, essa é a paga, é assim que a gente paga, ela explicou. Chá de macela, o comprimido, cama e um frio que não passa. Sonhei nesse mesmo dia que você era uma menina, desde então quando penso em você, penso numa menina, por causa do sonho, deve ser. Minha mãe e minha avó não tiveram a mesma sorte na viagem de volta do procedimento. Sacolejaram no trem, mortas de dor e tiveram que dar a janta para as crianças e para os maridos e continuar a fazer a vida andar. Uma vida tão cheia que elas mal lembram, agora, e que talvez seja por isso que elas fiquem sem saber o que me contar sobre aquele dia. E sobre todos os outros que se repetiram ao longo de uma vida, quando elas tomavam o trem sem saber se voltavam ou não para preparar o jantar. Era assim naquele tempo, elas me dizem. E o tom da voz da minha mãe fica mais baixo, e o da minha avó, mais metálico.

Ao contrário do que aconteceu com elas, depois do procedimento fui de carro pela mesma estrada para a casa onde vivem agora o meu Pai e os cães de guarda. Fui para lá para descansar. Há mato sobre os trilhos e a máquina está enferrujada perto da estação. Diga que é cólica menstrual, essa é sempre uma boa explicação. E assim você vai pra cama sem muita conversa, ela me orientou, a minha amiga. O tempo passa e o procedimento é sempre o mesmo. Desde as agulhas de tricô e crochê atravessadas, chás, raspagens mal feitas, óbitos. 

É frio o medo. E ácido. Não reconheço o cheiro do meu corpo. Suo e tremo de frio. Meu pai toma o mate na frente da lareira enquanto uma voz grave, de homem, despeja monótona o noticiário na Rádio Belgrano de Buenos Aires. Meu pai dormita ao pé do fogo. Abro a porta e saio na noite gelada enrolada na ruana grossa. O céu imenso, o campo que parece um mar, a figueira. Sento perto do balanço quebrado e choro baixinho.

Os cães começam a latir. Cuscos de merda, meu Pai sempre diz, um dia ainda matam um vivente e me encrencam. Estão furiosos. Começo a suar frio sob o peso da ruana e sinto o líquido quente escorrendo entre as minhas pernas, lembro que pensei, a bolsa estourou, pensei que você ia nascer, um delírio como uma estrela cadente jogada naquela imensidão, o campo. Você que não existia mais. O sangue que escorria era você não sendo. Comecei a chorar então e o que saía de mim era como um miado e isso deixou os cães mais loucos ainda. Foi então que ouvi a voz do meu Pai, Onde você está, minha filha? Ele perguntou, entre brabo e assustado. Eu disse, Tenho medo dos cães, tenho medo de morrer. Ele disse, Vamos pra casa, e fique quieta que então eles vão sossegar também. Mal podia andar. E a dor que parecia um trem veloz sobre mim. Mas a voz do meu Pai me assegurava que se eu ficasse quieta tudo ia ficar bem, que os cães iam se acalmar.

Quando lembro daquela volta pra casa, ao lado dele, tenho uma sensação estranha, minha filha. Se é que posso lhe chamar assim. A de que um silêncio tomou conta da minha vida, como quando a gente abaixa o som da TV num filme de terror ou de suspense, pra não sentir medo. E de que tudo ficou bem então. Os latidos dos cães foram diminuindo dentro de mim e a minha vida foi se enchendo de silêncio. E de tudo o que o silêncio pode guardar, culpa, vergonha, medo, essas coisas de mulher. E de uma saudade que nem eu entendo. Uma vida sem os seus barulhos, minha filha.

Uma vez que outra sonho com os trilhos e com os objetos do procedimento que ora brilham ora não, como relâmpagos, no escuro. E aí lembro que um dia você esteve aqui. E para que tudo fique em paz outra vez, volto a dormir e esqueço. Meu pai tinha razão, posso lhe dizer isso agora, o silêncio é um santo remédio. Um remédio que faz a gente se acalmar e ter a certeza de que a gente não vale nada.

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Esse texto foi encontrado entre os seixos do caudaloso rio http://mujerdepalabras.blogspot.com/2010/10/medo-dos-caes-meu-pai-lelia-almeida.html#links. Ele mostra, à primeira lida, as sensações de uma jovem que praticou aborto e delira, conversando com a filha que nem nasceu. Lendo-o várias outras vezes, deparamos com uma freira que auxilia o processo. "Peraí, mas aborto é ACEITO pela mesma igreja que fala contra o uso de preservativos?" Tomemos essa como uma "freira renegada".

Ao lado da jovem, o pai. Talvez um "pai renegado" também, pois parece conivente com a enorme sequela física e psicológica feita sobre filha. Infelizmente, não faltam estórias de pais que até forçam tal situação, ou tomam aquela formidável e heróica ação de expulsar da casa a filha que se descobre grávida. Melhor a cicatriz (nela), melhor a morte da integridade humana (dela) do que ele aparecer aos olhos do sagrado bando de amigos com uma filha mãe-solteira, desonrada. Realmente, o exemplo da dignidade farisaica que de que Jesus falou:

Mt 23.27. Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! pois que limpais o exterior do copo e do prato, mas o interior está cheio de rapina e de iniqüidade. Fariseu cego! limpa primeiro o interior do copo e do prato, para que também o exterior fique limpo. Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! pois que sois semelhantes aos sepulcros caiados, que por fora realmente parecem formosos, mas interiormente estão cheios de ossos de mortos e de toda a imundícia. Assim também vós exteriormente pareceis justos aos homens, mas interiormente estais cheios de hipocrisia e de iniqüidade.

Um mais exaltado talvez questione se a Bíblia aprova o sexo e a gravidez fora do casamento. A verdade é que não aprova, como não aprova o próprio Homem da forma como é. Nem a jovem, nem seu pai, nem a freira, nem eu ou você. Pela Bíblia, ai de nós! Sem o perdão de Jesus, fomos todos já abortados do céu. Graças e Ele, contudo, podemos falar com Deus e chegar em Sua casa. Esse mesmo Deus que nos fez, e que fez quase nada para mostrar que realmente "a gente não vale nada": ele só realizou milagres inúmeros e veio aqui mesmo para MORRER por nós. Esse Deus impediu que pudéssemos mudar o passado, mas nos deu a chance de escolher seguir a Ele para um mundo bem diferente desse aqui, e que não se entenda disso a necessidade de morrer. Jesus designou sua mensagem para apóstolos vivos, que teriam de propagá-la aqui mesmo. Agora, Jesus seria conivente com um aborto desses?

Nessa estória aborta-se muito mais que uma criança. Aborta-se a integridade de uma jovem, aborta-se a igreja como auxiliadora dos necessitados, como ensinadora da palavra de Deus, aborta-se a família como cuidadora e protetora. Na estória, mães e avós passam pela mesma sina, sofrem caladas, seguem suas vidas como se nada importante tivesse ocorrido. Dizem isso para si mesmas, dizem isso para a família que talvez esperem AGRADAR com isso. Espie a tabela abaixo:

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retirado de Diniz e Medeiros, Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna, Ciência & Saúde Coletiva, 15(Supl. 1):959-966, 2010

Assustadoramente, 15% das mulheres brasileiras parecem se enquadrar no texto acima. Recentemente, tem aparecido nos noticiários uma forma de aborto pouco conhecida até então: mães que parem os filhos na rua e LIVRAM-SE deles em latas de lixo, enterram, etc. Afinal, que desgosto aparecer perante a família e a sociedade com uma criança a quem Jesus prometeu o Seu reino. Penso que associação existe no fundo da alma de tais mães para ligar os abençoados por Ele com peso, com desgosto, e finalmente com lixo... A família protetora talvez tenha deixado há tempos de acolher.

No mesmo trabalho, vê-se mais uma tabela curiosa:

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Fazendo as contas, as mulheres que já fizeram aborto têm hoje mais de 25 anos (são adultas!) e realizaram a prática a partir dos 17 anos (eram sexualmente ativas, porém não adultas). É um quadro bem triste, de jovens que ficam grávidas sem planejamento disso, que moram com os pais e de repente juntam-se a essa estatística de dor e mostras de que a família está bem distante daquilo que Jesus ensinou. Certamente, a mensagem de Jesus não está nessas casas. Remetendo ao nosso próprio grupo, 13% das mulheres evangélicas já abortaram, tendo praticamente a mesma contagem das sem religião, umbandistas, esotéricas, etc.

Somos mesmo sal da terra? Ensinamos mesmo algo diferente do mundo que Jesus condenou?

Sl 127. Se o SENHOR não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam; se o SENHOR não guardar a cidade, em vão vigia a sentinela. Inútil vos será levantar de madrugada, repousar tarde, comer o pão de dores, pois assim dá ele aos seus amados o sono. Eis que os filhos são herança do SENHOR, e o fruto do ventre o seu galardão. Como flechas na mão de um homem poderoso, assim são os filhos da mocidade. Bem-aventurado o homem que enche deles a sua aljava; não serão confundidos, mas falarão com os seus inimigos à porta.

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